I
Aufer a nobis, quaesumus, Dómine, iniquitátes nostras: ut ad Sancta sanctórum puris mereámur méntibus introíre. Per Christum Dóminum nostrum. Amen - (Afastai de nós, Senhor, Vos imploramos, as nossas iniquidades, para que mereçamos entrar no Santuário com as almas purificadas. Por Cristo, Nosso Senhor. Amen).
Pente erguido. O cabelo molhado exala o odor do cosmético em promoção. A camisa alva de colarinho escrupulosamente castigado pelos vapores cálidos do ferro, eliminando, desse modo, as rugas impeditivas da desejada aprovação do crivo social. Sulco lavrado no flanco esquerdo do crânio redondo com a precisão de um Niemeyer, sem régua e esquadro, porém. O cabelo negro e lustroso distribuído lateralmente ao longo da cabeça. Pó de talco nas axilas para ocultar os odores indesejados, indigestos e insalubres. As bactérias perecendo, incapazes de produzir os excrementos que induzem a populaça à execução, no autocarro laranja, da manobra da clareira, que o deixa isolado, qual tronco de Auto da Fé. Borbulhas mutiladas pela lâmina cega, em segunda mão. O pus a brotar convocado pelo álcool do composto químico perfumado. Dor reprimida. Um homem não chora, ainda que tenha começado a ceifar o bigode ralo há escassas duas semanas, que a Isabelinha manifestara desagrado pelo perfil hirsuto. Ou terá sido antes enfado? Calças vincadas, o prurido da fazenda em contacto com a pele. Suplício. Os sapatos trocados. Bofetada maternal, meia cara ruborizada para o resto da manhã. O pai espera e exaspera-se. O motor a ruminar gasolina. Os três, finalmente, no interior da máquina, hirtos para não amarrotar as vestes engomadas de domingo. Janelas hermeticamente encerradas, para evitar a dispersão do cheiro maternal de lavanda.
II
Dómine, nom sum dignos, ut intres sub tectum meum: sed tantum dic verbo, et sanábitur ánima mea - (Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada. Mas dizei uma só palavra e a minha alma será salva).
Por que motivo não falas comigo? Trato-te com todo o respeito que me mereces, sabendo de antemão que és omnipresente e ente omnisciente. Não começo a urinar sem espreitar atrás da sanita, que estás em todo o lado, sempre alerta como os escuteiros das meias de lã com berloques rubros, que eu não pude envergar por causa da bronquite asmática. Dedico-te fervorosas orações pela manhã, repetindo-as ao deitar. Verifico se me persegues, sorrateiro, quando me isolo na casa de banho com a revista das porcarias, que compro no quiosque do fim da rua. Por que motivo não falas comigo?
A minha mãe está sempre a dizer que castigas. Castigas porquê? Por causa da revista? Por causa da urina que salpica o rebordo da sanita? Ou castigas porque és um chato? Um velho barbudo como o senhor horroroso a quem dou cinco escudos todas as manhãs, ao sair porta fora, porque a mãe diz que recompensas. Recompensas? Ainda não dei por nada. Não falas comigo e, mais grave ainda, não me recompensas por dar cinco escudos ao maltrapilho.
Devo acrescentar que há mais coisas que contribuem para baralhar as ideias que nutro a teu respeito. Aquela história da comunhão, por exemplo. O padre ergue no ar o vaso das hóstias, retira uma daquelas bolachas insonsas com os dedos polegar e indicador da mão direita, tipo pinça, e apresenta o petisco como o "cordeiro de Deus". Cordeiro? Devo dizer que há aqui algo que não bate certo, definitivamente. A catequista, pálida como o recheio de um coco e com pelos grossos como cerdas nas canelas, fez-me saber que S. João - num dos momentos de inspiração luminosa que é comum aos senhores que escreveram o Novo Testamento - escreveu "se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o Seu sangue, não tereis a vida em vós". Afinal, onde é que entra o cordeiro nesta história toda? É cordeiro ou é pessoa, como naquele filme que a televisão exibiu, que eu vi, parcialmente, por entre os dedos das mãos sobre o rosto. Tudo isto é muito complicado. Por que motivo não falas comigo?
III
Vere dignum et justum est, aequum et salutáre: Te quidem, Dómine, omni témpore (...) - (É verdadeiramente digno e justo, racional e salutar, que Vos louvemos sempre).
Jesus Cristo, chegada a altura de expirar na cruz, exaurido pela dor, não foi racional. É normal. O sofrimento atroz - é sabido - não inspira a racionalidade. Ninguém pode ponderar o discurso com os pulsos e os pés cravados com pregos em madeira maciça.
O filho do carpinteiro José terá proferido sete "palavras" na cruz. As frases, balbuciadas durante o suplício, são, há muito, um dos pilares fundamentais da fé cristã. Se nos primeiros momentos do pós-crucificação temos um Cristo magnânime, capaz de articular a frase "Perdoa-lhes ó Pai, porque não sabem o que fazem" (Lc. 23.34), alguns (presumíveis) hurros de dor depois, temos um homem aparentemente despojado de toda a fé inabalável que pergunta "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?" (Mt. 27.46; Mc 15.34).
A arquelogia revelou, há relativamente pouco tempo, elementos que permitem avaliar, parcialmente, o horror inerente à morte por crucificação. Junto às muralhas de Jerusalém, num túmulo do século I d.C., os arqueólogos desenterraram os restos de um homem crucificado. O homem teria sido executado por ter participado activamente numa revolta, no ano 6 d.C, contra o ocupante romano. As ossadas do condenado haviam sido guardadas num ossário com a inscrição do seu nome: Yehoanan (João). Os pés de João encontravam-se, ainda, cravados num pedaço de madeira com um prego de onze centímetros a trespassar os calcanhares. As pernas do mártir foram esmagadas com uma pancada violenta, prática comum entre os carrascos romanos que visava apressar a morte, por via do acréscimo de peso da vítima. Os pulmões eram, assim, esmagados pela pressão. Os braços de João terão sido fixados, pelos pulsos, com pregos. Ao contrário daquilo que nos é dado a observar pela maior parte das ilustrações da morte de Cristo - "A Crucificação", de Lorenzo Monaco (1370-1423), é um excelente exemplo -, os braços eram fixados à cruz com pregos nos pulsos e não nas palmas das mãos.
Perante um sofrimento tão atroz, Jesus não teve dúvidas em reconhecer que Deus o abandonara. Por outras palavras, o carpinteiro questionou a existência do Deus que defendera tão abnegadamente e pelo qual decidira morrer. E decidira morrer, certamente, convicto de que o Pai, todo-poderoso, não permitiria a mais pequena dose de sofrimento sobre o seu corpo.
A vacuidade da fé reside no facto de se tratar, essencialmente, de um monólogo. Deus nunca responde. Deus não impede o sofrimento de nenhum ser humano. Deus não impediu a execução de milhões de judeus, nem tão pouco obsta à pobreza dos povos africanos. Deus não dá alimento. Deus não é um analgésico sempre disponível. Posto isto, a definição de Deus aventada pela Igreja Católica Apostólica Romana, ou qualquer outra confissão religiosa, é falaciosa. Esse Deus não existe, para não dizer, simplesmente, que nenhum Deus existe para lá do fértil imaginário humano.
IV
Súscipe, sancte Pater, omnípotens aetérne Deus hanc immaculátam hóstiam, quam ego indígnus fámulus tuus óffero (...) - (Recebei, ó Pai santo, Deus omnipotente e eterno, esta hóstia imaculada, que eu, vosso indigno servo, Vos ofereço).
O padre põe o cálice prateado a descoberto. Toma nas mãos a patena com o pão, a consagrar em breve. O acólito, solene, dirige-se à credência e retira o vinho e a água, transportando-os, seguidamente, até ao altar.
Que chatice. Esta maçada nunca mais acaba. Olha! Lá está ela, a Isabelinha. Caramba, estou na missa, não posso pensar nestas coisas, que Deus castiga e se castiga não recompensa e se não recompensa vou ter de dar mais moedinhas ao pedinte lá da rua e deixar de comprar as revistas das porcarias, de me esgueirar, cauteloso, até à casa de banho.
O padre desenha, com a patena, o sinal da cruz sobre o altar. A hóstia simboliza o sacrifício da cruz.
A Isabelinha. Olha para mim, vá lá. Se soubesses o que me vai na cabeça, coravas como um tomate. Deus: por que motivo não falas comigo? Ajuda-me a afastar estes pensamentos. Recompensa-me, que eu porto-me invariavelmente bem. Sabes o que seria bom? Bom seria se tu, em vez de um velho chato e barbudo, sempre a lançar trovões e a bater com o bastão, zangado por causa da urina no rebordo da sanita, fosses uma mulher loira com um imponente par de mamas, como as senhoras das revistas que compro no quiosque do fim da rua.
Nota explicativa: escrevi estas linhas em Abril de 2001; espantosamente, foram publicadas pelo "Diário de Notícias" na sua rubrica "DN Jovem". Numa altura em que a queima dos derradeiros cartuchos papais traz para a primeira linha os (também) omnipresentes revisionistas da História, sempre prontos a barrar personagens com sabão azul e branco, pareceu-me apropriado ressuscitar (é o termo) este texto simpático.