O Sedentário

sexta-feira, outubro 31, 2003

A "LESTE"... NADA DE NOVO

Esta tarde, imbuí­do desse alento inquebrantável que só a perspectiva de um desconto induz, desloquei-me, apressado, ao certame do Livro Usado, no olissiponense Mercado da Ribeira.

No espaço de uma hora - impregnada de um muito pouco literário cheiro a peixe -, adquiri os seguintes "compêndios":

Proudhon, P.-J. - "Do Princípio Federativo e da Necessidade de Reconstruir o Partido da Revolução"; Edições Colibri (5 euros);

Polianski, Nicolas - "M.I.D. - 12 Anos nos Serviços Diplomáticos do Kremlin"; Publicações Dom Quixote (5 euros);

Havel, Vaclav - "Cartas a Olga"; Livros do Brasil (5 euros);

Acevedo, Enrique - "Descamisado - Memória da Guerrilha na Sierra Maestra"; Campo das Letras (2.50 euros);

Prieto, Abel E. - "O Humor de Misha - A Crise do 'Socialismo Real' na Anedota Política"; Campo das Letras (2.50 euros);

Gontchar, Oles - "Os Porta-Bandeiras"; Edições Avante! (1 euro);

Lefort, Claude - "A Complicação - Repensar a História do Comunismo"; Editorial Notícias (5 euros).

Conclui-se que, em determinadas facetas do bivalve, se regista uma "mudança na continuidade".

SEGUNDO FÔLEGO (GÉNESIS II)

Algo se modificou por entre as conchas fortificadas do bivalve. A concha entreabriu-se, o que ofereceu à criatura dormente um primeiro vislumbre do globo. No globo policromático - com feliz predominância do azul celeste -, respiram os seres portadores da luz. O bivalve, ainda envergonhado, não se furta à luz; os anos de clausura ditam, porém, que os seus olhos se quedem ofuscados. É uma questão de tempo...

Prossegue o esforço de demolição das amuradas, que se querem meras ruí­nas sepultadas nos sedimentos. Mas a luz já entrou. E o efeito ameaça ser perene.

O bivalve ensaia a transmutação para réptil e procura expurgar a pele ressequida pela necrose - a necrose do âmago empedernido e precocemente anquilosado. Não encetou o processo sem dor, que fique lavrado em acta e reconhecido com a chancela do Olimpo. Reconheceu, por fim, que a insistência era sinónimo incontornável de falência. Mudou de via.

Para traçar a carvão denso a via que quer percorrer, o bivalve pilha, qual bandoleiro, as considerações do Dalai-Lama, que enuncia o trilho outrora palmilhado:

"Porque achamos nós tão difí­cil ser feliz quando é tão simples? Infelizmente, embora a maioria de nós se considere uma pessoa compassiva, temos tendência para ignorar estas verdades de senso comum e não enfrentarmos as nossas emoções e pensamentos negativos. Contrariamente ao agricultor que obedece às estações e não hesita em cultivar a terra quando chega o momento, desperdiçamos muito tempo em actividades inúteis. Ficamos profundamente afectados por coisas triviais como perder algum dinheiro, mas não fazemos o que é genuinamente importante e isso não nos afecta minimamente. Em vez de nos deleitarmos com a oportunidade que temos de contribuir para o bem-estar alheio, contentamo-nos em buscar o prazer onde podemos (...) Corremos de um lado para o outro a fazer cálculos e telefonemas, achando que isto é melhor do que aquilo. Fazemos uma coisa a pensar que, se um determinado acontecimento ocorrer, seria preferí­vel fazer outra (...) Consideramo-nos muito espertos, mas em que é que usamos essa esperteza? A maior parte das vezes usamo-la para enganarmos os vizinhos, para nos aproveitarmos deles e beneficiarmos à sua custa. E quando as coisas não funcionam, convencidos que temos razão, acusamos os outros das nossas dificuldades"(1).

Excessivo, o retrato da via agora negligenciada? O bivalve bem gostaria, honestamente, de poder garantir que jamais chafurdou nos charcos acima descritos. Não pode. Poucos podem.

Regressei. Sei o que quero. Vou buscá-lo.

(1)Dalai-Lama - "Ética para o Novo Milénio"

sexta-feira, outubro 24, 2003

CRÓNICA DO PRIMEIRO VOO II (GÉNESIS)

23 e 24 de Outubro

I
A caminho da Guarda, com o motor do carro a resfolegar com o frio cortante, senti um í­mpeto irresistí­vel, um chamamento... Assim, de um momento para o outro - da mesma forma que, de um momento para o outro, decidi fazer-me à estrada. Dou por mim a rumar à Serra do Açor, berço dos Santos Neves de que resultei. Comprometo os meus planos, bem sei. Esqueço o Norte que visei. Mas preciso de ver a aldeia da minha avó. E não sei explicá-lo.

II
O xisto é frio. Não é de uma temperatura tangí­vel pelo tacto que aqui se escreve. Se fosse esse o caso, o xisto seria frio quando a estação do ano o propiciasse. Não. O xisto é frio porque é desprovido de alma, geologicamente amputado da robustez granítica ou da sedução marmórea. Enfim, é frio porque é escuro, caro ao necrólatra prostrado perante a perda, necrológico na forma tumular como brota do solo das serranias agrestes que esmagam os sentidos. O xisto não é, na realidade, uma rocha de indefectível nobreza. Os seus exemplares desagregam-se, repartindo-se em sucessivas lâminas até à completa ausência de resistência. O xisto está aqui, apenas isso. É neutro. Só a recorrente tendência, muito humana, de emprestar um conceito poético ao meio circundante lhe adivinha uma certa beleza, porém envergonhada, velando eternamente por uma existência recatada, furtando-se à interpelação alheia. Certos pedaços da rocha arriscam produzir matizes de relativa complexidade, demarcando-se do cariz monocromático que impera. No entanto, mesmo os pedaços que ousam desafiar o lugar-comum nunca excedem as combinações de duas ou três tonalidades. O xisto é frio e está aqui, apenas isso.

A imponência das elevações é estonteante. As serras entrecruzam-se, comungando desta grandeza que induz à combinação do fascí­nio com o temor reverencial. Somos infinitamente pequenos e insignificantes até ao constrangimento. São as montanhas que procuram indagar dos homens e não o oposto - "Como te arrogas o direito de aqui permanecer, de vencer o acidentado terreno que te reservo e o frio que castiga os teus ossos?". Os homens encetam aqui um peleja insana de séculos. As montanhas não os desejam, contorcem-se e revoltam-se contra a sua permanência. Erguem-se escarpas, os vales afundam-se no infinito, a pedra escura eleva-se em lâminas ameaçadoras e os rigores do tempo acentuam o ambiente de rejeição. Os homens, porém, persistem.

A região compreende as margens do rio Alva, companheiro devoto do Mondego, e as serras da Lousã e do Açor. Emergem, por aqui, outras "serras", salpicadas pelos pinheiros bravos e pelas mimosas: Monte Frio, Catraia, Vale Grande, Picoto. Os homens chamam-lhe, de modo singelo, serra, reunindo todas as denominações numa só. O solo recebe o sumo fertilizante de ribeiras como as de Celavisa, Folques ou Pomares.

Os homens conquistaram o seu espaço a pulso, ceifando os densos matagais, verdadeiros crivos da capacidade de perseverança. Semearam as suas casas ao longo dos í­nfimos vales que vislumbro - como se fosse o primeiro vislumbre - da estrada que serpenteia cá no alto por entre a Serra do Açor. Roubaram-lhe a pedra gélida, erguendo as casas de espessas paredes numa geometria perfeita e de obtenção difí­cil, que o xisto não se presta aos esboços rectilí­neos.

Os pequenos aglomerados de casas escuras eram parte integrante das montanhas. Casas e serra eram uma e a mesma coisa, irmãs de sangue que se confundiam na paisagem. Rasgaram carreiros, revolveram as fracções de terra que a serra permitiu e semearam-lhe o ventre, criaram animais, enfim, ficaram. A seu tempo, o cimento cobriu a beleza simples das paredes. Vieram os brancos ofuscantes, a exuberância excessiva das cores berrantes com as quais os que aqui tornaram da labuta exterior pintalgaram o reboco descaracterizador. As pesadas lajes cederam à novidade da telha. Casas e serra deixaram de ser uma e a mesma coisa.

III
O motor do carro vem quente, depois de percorrida a metade da colossal subida, Serra acima por entre pinheiros, xisto e o abismo à distância de um erro de condução. As curvas sucedem-se, balançando até ao limiar da náusea o corpo dormente e castigando a borracha dos pneus. A Serra impõe, í­ngreme, o seu cariz exigente à máquina logo após a passagem por Coja.

A vila é um regalo para os olhos daqueles que nada conhecem para além da paisagem cinzenta da urbe, que agrilhoa na sua frieza. Aqui convivem as águas da Ribeira da Mata e do Rio Alva. A ponte, o aglomerado de casas, tudo se conjuga numa harmonia deliciosa...

Coja, povoado oferecido por Fernão Peres de Trava a D. Teresa em 1122, foi posteriormente doada à Sé de Coimbra. A vila é antiquí­ssima e transpira História nas suas casas do século XVIII e belí­ssimas imagens góticas na Capela de Santo António. Chegou a sede de conselho no reinado de D. Afonso V, mas sucumbiu à engrenagem dos tempos, definhando até à perda de autonomia por alturas de 1855. Restou-lhe a beleza.

IV
A aldeia, Castanheira da Serra, é singela. Em cada pormenor, em cada recanto, adivinhamos a pureza do meio e das gentes. O ar invade, encorpado, os pulmões profanados do forasteiro citadino. O dia de trabalho no campo rege-se pelas regras, por aqui ainda imutáveis, da natureza. Impera o relógio biológico. E o homem integra em plenitude a trajectória da Terra, obediente perante o dia e a noite. Aqui, os desmandos dos relógios mecânicos não encontram grande respeito.

O pequeno aglomerado de casas e currais foi edificado no sopé de um monte que se eleva, como um filho protegido, por entre as montanhas. O reboco e o xisto, obrigados a um casamento sem amor, comungam do espaço envolvente. As ruelas são de um piso áspero, xistoso, o que nunca impediu que pés descalços as calcorreassem em tempos idos de uma sobrevivência defendida a pulso e paga com o suor dos justos. Rostos que, na sua maioria, rumaram a outras paragens, sobre e sob a terra.

O acesso à aldeia faz-se por uma estrada estreita que desce do alto da Serra, há poucos anos coberta de alcatrão com o dinheiro dos emigrados. Os castanheiros ocupam a berma da estrada, como guardiões do povoado, impondo o respeito que a idade merece.

A partir do aglomerado primordial, estende-se um carreiro amplo que contorna parte da "barriga" da montanha. As casas são cada vez mais raras, à medida que o percorremos. O largo da aldeia é de uma beleza simples - uma fonte antiga, de onde escorre uma água cristalina e gélida, indiferente às estações do ano; uma mesa de pedra que convida à tertúlia de fim de tarde, sob o abraço de dois castanheiros; paredes de xisto de esquadria perfeita; o som longí­nquo dos chocalhos de um rebanho de cabras que mal se avista, ao fundo do vale; o som de um sossego que nos esmaga.

quarta-feira, outubro 22, 2003

CRÓNICA DO PRIMEIRO VOO

21 de Outubro

Isto de buscar a liberdade tem o que se lhe diga. Questiono-me se estarei a ser demasiado ambicioso. Cheguei a uma Viseu outonal, logo fria, há cerca de duas horas. De então para cá, pouco mais fiz do que desenterrar argumentos para não zarpar de imediato para Lisboa. Dou por mim assaltado pelo medo - o medo de ousar. Não quero saber. Vou ousar.

Estou alojado, pelo menos por uma noite, na residencial "Bela Vista". Modestíssima, esta estalagem cristalizada algures em 1980. Da bela vista nem sinal. Mas estou confortável. Tenho uma televisão que ainda não testei, quase por pudor intelectual. Posso usufruir de uma casa de banho frugal, porém impecavelmente cuidada e apetrechada com as inevitáveis "águas quentes e frias".

Admito que isto de buscar a liberdade é mais fácil e confortável sob o chapéu da irresponsabilidade inerente à mente fértil. Ainda assim, a praxis não é má de todo.

A "Bela Vista" localiza-se na Rua Alexandre Herculano, que desemboca num Rossio de árvores frondosas, água translúcida e pombos em revoada; um "Graal" a dois passos.

Ainda hesitante, comprei, logo à chegada, um exemplar - delgado e pouco prometedor - do "Diário Regional de Viseu".

Gostaria de encetar um percurso a partir de uma base. Qualquer lugarejo - o que não é o caso - pode ser uma base, desde que diste mais de 200 quilómetros do ninho. Amanhã, bem cedo, vou agitar o destino. Hoje falta-me a coragem. Vou ver se a arrendo à Lua beirã que aguardo...

Quando o Sol sai de cena

Agora o registo é outro. A tinta escorre impulsionada pelas estrelas, que parecem preencher o céu ao jeito das hordas de Viriato. Que bonito céu, este; incómodo porque incomum.

Fiz-me aos passeios pétreos de Viseu com a curiosidade que, confesso, pensava ter abandonado a uma sorte incerta. Mas ainda respira, a curiosidade. Transpor a porta de alumínio da "Bela Vista" é difícil. No crepúsculo beirão, o rosto é açoitado por um frio que julgamos inclemente. Erro crasso. É o frio que buscava e logrei encontrar. É o frio que o monóxido de carbono ainda não sufocou.

Caminho com o vagar de quem quer saborear as fachadas laboriosas, o granito sólido, a frescura nocturna da praça ladrilhada, os rostos que não conheço, a pronúncia cortante que não fere, embriaga. Caminho sem sinal da via sacra que a locomoção bípede me induz no quotidiano oco. "Era capaz de me habituar a isto", proclamo com o cérebro. Devo seguir, porém. Ainda é cedo para lançar a âncora recém-recolhida.

Caminho imbuído da paz que só a liberdade faculta. Subitamente, recebo um sinal de vida, um lembrete necessariamente "asséptico e inócuo". Respondo com a secura possível e arrepio caminho, ao arrepio da memória.

Calcorreio a pedra que medeia entre os monumentais edifícios. Como é bela, a Sé. "Era capaz de me habituar a isto", insisto.

Atraco numa "Caçarola" que me serve carne tenra, temperada com o citrino que arrepia parcimoniosamente. "Era capaz de me habituar a isto"...

Adenda: agradeço ao Pedro, de Mangualde, a disponibilização do seu computador pessoal para a transcrição destas notas, ultimadas ontem à noite por entre um magnífico rosbife, uma Sagres preta e um café que me aqueceu os calcanhares gelados. Bastou perguntar-lhe se havia algum "cibercafé" por perto. Vê-se logo que Lisboa fica longe...

terça-feira, outubro 21, 2003

DESPEDIDA

Até breve. Ou talvez não...

segunda-feira, outubro 20, 2003

INDECISO

Recebo as tuas missivas inócuas e assépticas. Não sei o que pensar. Absorvo os teus relatos ocos e despreocupados. Não sei o que pensar. Hesito entre a tristeza e a raiva pura, aquela que ameaça deixar de ser contida. Preocupo-me.

domingo, outubro 19, 2003

RECUAR AO PÓS-BERÇO

No arranque dos anos 80, os meus pais, confrontados com a "ostra" que até então haviam criado, decidiram recorrer aos serviços de um "infantário-jardim-escola". Objectivo: tornar a criança problemática mais sociável. Ao cabo do primeiro ano lectivo - 1980/1981 - a pedagoga encarregue da missão hercúlea escrevia:

"É uma criança passiva, na aula. No recreio mostra tendências para actividades violentas.
Não mostra muito interesse pelas actividades propostas embora não se negue a participar. Com a educadora retrai-se um pouco, mas espontaneamente é bastante aberto.
Tem o vocabulário desenvolvido normalmente e pronúncia correcta.
Não é muito comunicativo.
É aplicado mas sem grande poder criador. É lento na execução de qualquer trabalho. Chora com facilidade e sem motivo".

Num regime nacional-socialista, a apresentação de semelhante relatório às autoridades vigentes resultaria, no mínimo, na incineração sumária do petiz.

sábado, outubro 18, 2003

PURGAÇÃO IV (A DOR TÉNUE)

O que senti por ti é agora uma fina poeira, alojada nos recantos do breu frio, por entre ventrículos e alvéolos. O que senti por ti permanece vivo, ainda que tenha reduzido o seu labor metabólico ao essencial. O essencial é seguir... em frente.

Sigo por estradas que não conheço, rotas de beduínos de tez escura e crestada. Rotas da seda macia que quis oferecer-te, como um rei prostrado perante um messias. Acreditei que vinhas morrer pelos meus pecados; morro eu, pelo contrário, pecaminoso. Pequei. Pequei por ousar tocar a gema preciosa, faminto. Não tenho astrolábio. E sem o instrumento não encontro as estrelas que deveriam orientar a balsa. Vogo ao sabor dos ventos, mas não tenho velas, tão-pouco remos. Vogo assim, perdido de uma raiva contida.

O que senti por ti é agora um animal moribundo em águas insalubres, uma pétala seca no coração de um romance poeirento - o livro sepultado na prateleira sob fina poeira. Fui coveiro na exéquia. Orei por nós, que nunca fomos. Enterrei-nos vivos.

Porque ainda sinto o que senti por ti; porque o que senti por ti permanece vivo, por vezes aninhado nas margens dos cursos amarelados da raiva contida - a raiva que me reservo. A raiva que, não raras vezes, nutro pela réplica que o espelho me devolve. Haverá outra?

Quando o céu me pinta o peito de cinzento, insisto em furtar a tua eterna Primavera. Evoco-te. Evoco os rarefeitos milagres que operaste. Mas não respondes. Não prevês o maremoto que ameaça derrubar a balsa em que vogo... sem astrolábio.

Não prevês porque não o disse. Digo-o agora: amo-te.

Sossega. Ainda não acabei de sacudir a poeira... Concluída a operação, fecharei de vez o livro que guarda a pétala. E nunca o saberás.

sexta-feira, outubro 17, 2003

E SE DEUS TIVESSE MAMAS?

I

Aufer a nobis, quaesumus, Dómine, iniquitátes nostras: ut ad Sancta sanctórum puris mereámur méntibus introí­re. Per Christum Dóminum nostrum. Amen - (Afastai de nós, Senhor, Vos imploramos, as nossas iniquidades, para que mereçamos entrar no Santuário com as almas purificadas. Por Cristo, Nosso Senhor. Amen).

Pente erguido. O cabelo molhado exala o odor do cosmético em promoção. A camisa alva de colarinho escrupulosamente castigado pelos vapores cálidos do ferro, eliminando, desse modo, as rugas impeditivas da desejada aprovação do crivo social. Sulco lavrado no flanco esquerdo do crânio redondo com a precisão de um Niemeyer, sem régua e esquadro, porém. O cabelo negro e lustroso distribuí­do lateralmente ao longo da cabeça. Pó de talco nas axilas para ocultar os odores indesejados, indigestos e insalubres. As bactérias perecendo, incapazes de produzir os excrementos que induzem a populaça à execução, no autocarro laranja, da manobra da clareira, que o deixa isolado, qual tronco de Auto da Fé. Borbulhas mutiladas pela lâmina cega, em segunda mão. O pus a brotar convocado pelo álcool do composto quí­mico perfumado. Dor reprimida. Um homem não chora, ainda que tenha começado a ceifar o bigode ralo há escassas duas semanas, que a Isabelinha manifestara desagrado pelo perfil hirsuto. Ou terá sido antes enfado? Calças vincadas, o prurido da fazenda em contacto com a pele. Suplí­cio. Os sapatos trocados. Bofetada maternal, meia cara ruborizada para o resto da manhã. O pai espera e exaspera-se. O motor a ruminar gasolina. Os três, finalmente, no interior da máquina, hirtos para não amarrotar as vestes engomadas de domingo. Janelas hermeticamente encerradas, para evitar a dispersão do cheiro maternal de lavanda.

II

Dómine, nom sum dignos, ut intres sub tectum meum: sed tantum dic verbo, et sanábitur ánima mea - (Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada. Mas dizei uma só palavra e a minha alma será salva).

Por que motivo não falas comigo? Trato-te com todo o respeito que me mereces, sabendo de antemão que és omnipresente e ente omnisciente. Não começo a urinar sem espreitar atrás da sanita, que estás em todo o lado, sempre alerta como os escuteiros das meias de lã com berloques rubros, que eu não pude envergar por causa da bronquite asmática. Dedico-te fervorosas orações pela manhã, repetindo-as ao deitar. Verifico se me persegues, sorrateiro, quando me isolo na casa de banho com a revista das porcarias, que compro no quiosque do fim da rua. Por que motivo não falas comigo?

A minha mãe está sempre a dizer que castigas. Castigas porquê? Por causa da revista? Por causa da urina que salpica o rebordo da sanita? Ou castigas porque és um chato? Um velho barbudo como o senhor horroroso a quem dou cinco escudos todas as manhãs, ao sair porta fora, porque a mãe diz que recompensas. Recompensas? Ainda não dei por nada. Não falas comigo e, mais grave ainda, não me recompensas por dar cinco escudos ao maltrapilho.

Devo acrescentar que há mais coisas que contribuem para baralhar as ideias que nutro a teu respeito. Aquela história da comunhão, por exemplo. O padre ergue no ar o vaso das hóstias, retira uma daquelas bolachas insonsas com os dedos polegar e indicador da mão direita, tipo pinça, e apresenta o petisco como o "cordeiro de Deus". Cordeiro? Devo dizer que há aqui algo que não bate certo, definitivamente. A catequista, pálida como o recheio de um coco e com pelos grossos como cerdas nas canelas, fez-me saber que S. João - num dos momentos de inspiração luminosa que é comum aos senhores que escreveram o Novo Testamento - escreveu "se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o Seu sangue, não tereis a vida em vós". Afinal, onde é que entra o cordeiro nesta história toda? É cordeiro ou é pessoa, como naquele filme que a televisão exibiu, que eu vi, parcialmente, por entre os dedos das mãos sobre o rosto. Tudo isto é muito complicado. Por que motivo não falas comigo?

III

Vere dignum et justum est, aequum et salutáre: Te quidem, Dómine, omni témpore (...) - (É verdadeiramente digno e justo, racional e salutar, que Vos louvemos sempre).

Jesus Cristo, chegada a altura de expirar na cruz, exaurido pela dor, não foi racional. É normal. O sofrimento atroz - é sabido - não inspira a racionalidade. Ninguém pode ponderar o discurso com os pulsos e os pés cravados com pregos em madeira maciça.

O filho do carpinteiro José terá proferido sete "palavras" na cruz. As frases, balbuciadas durante o suplício, são, há muito, um dos pilares fundamentais da fé cristã. Se nos primeiros momentos do pós-crucificação temos um Cristo magnânime, capaz de articular a frase "Perdoa-lhes ó Pai, porque não sabem o que fazem" (Lc. 23.34), alguns (presumíveis) hurros de dor depois, temos um homem aparentemente despojado de toda a fé inabalável que pergunta "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?" (Mt. 27.46; Mc 15.34).

A arquelogia revelou, há relativamente pouco tempo, elementos que permitem avaliar, parcialmente, o horror inerente à morte por crucificação. Junto às muralhas de Jerusalém, num túmulo do século I d.C., os arqueólogos desenterraram os restos de um homem crucificado. O homem teria sido executado por ter participado activamente numa revolta, no ano 6 d.C, contra o ocupante romano. As ossadas do condenado haviam sido guardadas num ossário com a inscrição do seu nome: Yehoanan (João). Os pés de João encontravam-se, ainda, cravados num pedaço de madeira com um prego de onze centí­metros a trespassar os calcanhares. As pernas do mártir foram esmagadas com uma pancada violenta, prática comum entre os carrascos romanos que visava apressar a morte, por via do acréscimo de peso da vítima. Os pulmões eram, assim, esmagados pela pressão. Os braços de João terão sido fixados, pelos pulsos, com pregos. Ao contrário daquilo que nos é dado a observar pela maior parte das ilustrações da morte de Cristo - "A Crucificação", de Lorenzo Monaco (1370-1423), é um excelente exemplo -, os braços eram fixados à cruz com pregos nos pulsos e não nas palmas das mãos.

Perante um sofrimento tão atroz, Jesus não teve dúvidas em reconhecer que Deus o abandonara. Por outras palavras, o carpinteiro questionou a existência do Deus que defendera tão abnegadamente e pelo qual decidira morrer. E decidira morrer, certamente, convicto de que o Pai, todo-poderoso, não permitiria a mais pequena dose de sofrimento sobre o seu corpo.

A vacuidade da fé reside no facto de se tratar, essencialmente, de um monólogo. Deus nunca responde. Deus não impede o sofrimento de nenhum ser humano. Deus não impediu a execução de milhões de judeus, nem tão pouco obsta à pobreza dos povos africanos. Deus não dá alimento. Deus não é um analgésico sempre disponível. Posto isto, a definição de Deus aventada pela Igreja Católica Apostólica Romana, ou qualquer outra confissão religiosa, é falaciosa. Esse Deus não existe, para não dizer, simplesmente, que nenhum Deus existe para lá do fértil imaginário humano.

IV

Súscipe, sancte Pater, omní­potens aetérne Deus hanc immaculátam hóstiam, quam ego indí­gnus fámulus tuus óffero (...) - (Recebei, ó Pai santo, Deus omnipotente e eterno, esta hóstia imaculada, que eu, vosso indigno servo, Vos ofereço).

O padre põe o cálice prateado a descoberto. Toma nas mãos a patena com o pão, a consagrar em breve. O acólito, solene, dirige-se à credência e retira o vinho e a água, transportando-os, seguidamente, até ao altar.

Que chatice. Esta maçada nunca mais acaba. Olha! Lá está ela, a Isabelinha. Caramba, estou na missa, não posso pensar nestas coisas, que Deus castiga e se castiga não recompensa e se não recompensa vou ter de dar mais moedinhas ao pedinte lá da rua e deixar de comprar as revistas das porcarias, de me esgueirar, cauteloso, até à casa de banho.

O padre desenha, com a patena, o sinal da cruz sobre o altar. A hóstia simboliza o sacrifício da cruz.

A Isabelinha. Olha para mim, vá lá. Se soubesses o que me vai na cabeça, coravas como um tomate. Deus: por que motivo não falas comigo? Ajuda-me a afastar estes pensamentos. Recompensa-me, que eu porto-me invariavelmente bem. Sabes o que seria bom? Bom seria se tu, em vez de um velho chato e barbudo, sempre a lançar trovões e a bater com o bastão, zangado por causa da urina no rebordo da sanita, fosses uma mulher loira com um imponente par de mamas, como as senhoras das revistas que compro no quiosque do fim da rua.

Nota explicativa: escrevi estas linhas em Abril de 2001; espantosamente, foram publicadas pelo "Diário de Notí­cias" na sua rubrica "DN Jovem". Numa altura em que a queima dos derradeiros cartuchos papais traz para a primeira linha os (também) omnipresentes revisionistas da História, sempre prontos a barrar personagens com sabão azul e branco, pareceu-me apropriado ressuscitar (é o termo) este texto simpático.

quinta-feira, outubro 16, 2003

VÁCUO

Isto de ser ignorado não é mau de todo. No fundo - bem lá no fundo, onde o astro não logra chegar -, até pode ser positivo. Se o silêncio - ou ausência de comunicação, conforme os desígnios do paladar... - pode ser considerado a mais vil forma de desprezo, também pode ser encarado como um elogio à nossa inteligência. Como? Recorrendo ao silêncio, a interlocutora - que nunca o foi verdadeiramente - poderá pretender demonstrar que confia em pleno nas nossas faculdades mentais. Cabe-nos, então, discernir o significado do silêncio. No caso presente, o silêncio de que sou alvo constitui, na sua essência (primaveril e de uma frescura quase enjoativa), um recado.

Cá o recebi. Porém, dias há em que me questiono: e se eu for estúpido?

Adenda: comecei a preparar o roteiro da minha viagem. Vou. Iluminado.

quarta-feira, outubro 15, 2003

A DEMOCRACIA EM ESTADO LARVAR (AINDA A ESPUMA)

Esse grande e pesado transatlântico que é o PS continua desgraçadamente à deriva, vogando, para júbilo da coligação no poder e de todos os conservadores encartados do rectângulo lusitano, em águas turvas e inquinadas. Ultimamente, o comportamento da cúpula socialista tem roçado a demência. O líder Ferro Rodrigues agrafa todo um partido e a sua própria liderança àquilo que diz ser o calvário judicial do deputado Paulo Pedroso. Ana Gomes assume-se como rosto e porta-voz do desnorte e arremessa granadas a torto e a direito; quando os engenhos não lhe explodem nas mãos, rebentam em pleno Largo do Rato.

A verdade é que o PS não sabe muito bem como se comportar ante as gravíssimas acusações que recaem sobre o braço direito de Ferro Rodrigues. Dirão as almas mais complacentes que não há bom senso que resista a um tsunami como aquele que se abateu sobre o Estado-Maior socialista. A brecha nesta tese é o facto de o partido de Ferro não ser o Bloco de Esquerda ou a Nova Democracia de Monteiro, não podendo, por isso, olvidar a sua condição de formação com vocação de poder.

No tocante ao caso de Paulo Pedroso, uma das derradeiras ilhas de elevação nas fileiras socialistas é... Paulo Pedroso. À sua volta, agita-se um mar de despudor e confusão. E nem o próprio deputado logra escapar por inteiro à voragem da lógica quase circense do seu partido.

Ao sair do Estabelecimento Prisional de Lisboa, Pedroso decide encaminhar-se para a Assembleia da República, um órgão de soberania que alberga os deputados da nação. Ali, é objecto de uma recepção a fazer lembrar os melhores momentos do PREC. O PS não resiste à tentação da orgia das câmaras das televisões e celebra – repito: na casa de um órgão de soberania - uma espécie de absolvição antecipada, arbitrária e sumária de um cidadão suspeito de nada mais nada menos que 15 crimes de abuso sexual de menores. Paulo Pedroso, ainda não refeito dos abraços apertados, dos aplausos histéricos e das lágrimas de Manuel Alegre e Almeida Santos, apressa-se a proclamar a sua intenção de regressar ao trabalho parlamentar. Nada na lei o impede, é certo. Mas o cidadão Paulo Pedroso, cuja presunção de inocência nunca esteve em causa, deveria compreender que, em determinados capítulos da existência, o já citado bom senso deve sobrepor-se a leis e regimentos. Não o compreendeu.

O que esperava o PS? Que as bancadas parlamentares da maioria acorressem aos corredores de São Bento para saudar, com lágrimas de alegria, a libertação do deputado socialista?

Era previsível que, uma vez ultrapassado o estupor inicial, as formações que suportam a coligação governativa viessem à liça para torpedear o PS. Assim o fazia adivinhar o dislate galopante que, a propósito do processo de pedofilia na Casa Pia, parece ter tomado conta do país. Guilherme Silva não se coibiu de comparar o comportamento socialista a uma tentativa de transmutação do Parlamento numa casa do “Big Brother”, empunhando uma moralidade que, estranhamente, passa ao lado do parlamentar social-democrata Cruz Silva, suspeito de corrupção na autarquia de Águeda.

Mas o PS conseguiu, mais uma vez, superar o seu próprio disparate. E lá veio a voluntarista Ana Gomes chafurdar ainda mais no charco da politização de um caso que à Justiça – e somente à Justiça – compete. Pudemos, então, ver a antiga diplomata arremessar as tais granadas de que tanto gosta ao Ministério Público e à Procuradoria-Geral da República, exortando Souto Moura a indagar sobre um artigo mais que nebuloso da revista francesa “Le Point” sobre um mais que suposto envolvimento de membros do actual Governo em actos de pedofilia.

O PS, pela voz do líder parlamentar António Costa, reagiu. Contudo, como em tantos casos da sua história recente, reagiu tarde. E somente agora vem alardear que o seu combate é o mesmo que a Justiça prossegue. O mal está feito.

A expensas da serenidade que se impõe num dos processos judiciais mais graves da História do país, agentes de todos os quadrantes, desde psiquiatras a figuras da Justiça, passando pela presidente da Comissão Nacional de Protecção das Crianças e Jovens em Risco e pela própria provedora da Casa Pia, multiplicam-se em declarações guerrilheiras. Os políticos, com o PS à cabeça, seguem-lhes os passos. Será esta vaga de estupidez desbocada um reflexo da menoridade do nosso regime democrático?

terça-feira, outubro 14, 2003

AVISO À NAVEGAÇÃO

Decidi partir. Assim, de um momento para o outro. A urbe macrocéfala traz-me enfadado, saturado de monóxido de carbono e luz. Estou cansado da luz de Lisboa; da bonita luz de Lisboa. Estou cansado de não ter espaço, de percorrer as capelas em busca do metro quadrado.

Parto para um périplo de vida. Na próxima segunda-feira, despeço-me da circular que dizem ser segunda e deixo que as velas se enfunem para Norte. Dar-me-ei oito dias para provar que consigo, que também sei plantar um embondeiro. Preciso de o fazer. Ou então pereço, como as folhas do plátano. Caio de maduro, seco numa morte de ocre.

Vou em demanda daquilo que dizem ser o que já fui. Pode ser que encontre, por fim, o meu torrão de terra fértil. Pode ser que regresse à urbe de mãos despidas, tal como parti. Mas terá valido a pena. Tenho alguma pena de partir; de ter de partir. Em busca do metro quadrado. Bem vistas as coisas - ou seja, observadas de todos os ângulos -, o que me prende por estas paragens? "O que faço aqui?", indagava a senha de Abril. Pouco. Ou nada.

No fundo, vou em busca da coragem que deixei escapar, algures entre uma secretária cinzenta e um café de maquinaria autómata. Parto só. Levo somente a mala delgada e as cassetes do James Taylor. "Something in the way she moves"... Também parto por isso. Pela forma como ela se move.

Roço o fim com uma fatia do imaginário de Olivier Rolin:

"Infinitamente só, sim. Dentro de um quarto branco, contemplando fixamente uma janela por trás da qual rodopia a neve. Há pouco deixaram-me sair, ir até à gare esperar por ela. Ela não veio. Talvez me tenha enganado no dia? É pena. Talvez ela já não venha... Isto aqui fica longe de tudo, evidentemente. Já não sei quantos dias são precisos para chegar a este fim de mundo...

Vou.

Adenda: durante oito dias, "O Sedentário" deverá ficar ao abandono. Ou talvez não...

segunda-feira, outubro 13, 2003

SUMÁRIA INCURSÃO NA ESPUMA

Há escassos minutos, dizia-me Guilherme Silva aos microfones da TSF que os socialistas transformaram o Parlamento numa espécie de casa do "Big Brother". Isto a propósito do despudorado banho de aplausos e abraços que Paulo Pedroso recebeu na passada quarta-feira. Tem razão, o deputado ilhéu. É a imaculada moral social-democrata! Essa mesma moral que o deputado Cruz Silva eleva ao expoente máximo...

domingo, outubro 12, 2003

VIRAR A PÁGINA NUM MICROCOSMOS?

Não sei muito bem o que escrever sobre "Good Bye Lenin!", de Wolfgang Becker. É por certo muito cedo para me pronunciar sobre o filme. Vi-o há pouco mais de uma hora, entalado numa cadeira exí­gua de um "Mundial" que congelou algures no final da década de 80. Precisamente. "Good Bye Lenin!" transporta-nos para a fervilhante Berlim do final da década de 80 e serve-nos uma abordagem pouco comum dos derradeiros suspiros do totalitarismo disfarçado de comunismo. Traduzo: o peido mestre dos regimes da foice e do martelo.

Daniel Brühl é Alex, o herói da trama. Alex é um "recém-adulto" cansado da RDA dos Trabant. Cansado de si mesmo, no fundo... A meio de uma carga policial na tumultuosa Berlim Leste, Alex é detido. De passagem pelo cenário de motim, a mãe de Alex (Katrin Sass) - privada de um marido dissidente e, por essa razão, fervorosa socialista educadora da classe operária - sucumbe ao ver o filho sob as manápulas da autoridade. Acometida de um enfarte, a pobre senhora cai num coma profundo. Resultado: tombam o muro e o castelo de areia de figurinhas como Honecker e Kranz e a convicta socialista hiberna à margem da História.

A personagem de Sass acaba por acordar. Porém, os médicos avisam: o mais ínfimo choque poderá significar o óbito antecipado da senhora. Alex embarca, então, numa espiral fraudulenta, procurando convencer a mãe de que a RDA persiste, florescente e - pasme-se! - fonte de inspiração e pólo de atracção para os alemães do Ocidente.

Fico por aqui. Recomendo "Good Bye Lenin!". Quanto mais não seja pela inovadora estética dos planos. Nas cenas de maior intensidade dramática, os microfones precipitam-se sobre as testas dos actores. Não sei se devo rir ou chorar.

sábado, outubro 11, 2003

SOB O CINZENTO

Estou pardacento como o céu. Daí que tenha optado por dispensar a água e o sabão, o pente e a lâmina quase cega. Sinto-me como a nuvem que vejo da janela, inchado e prestes a verter a água que carrego. Creio que a nuvem proclama ser sua intenção arrepiar caminho sem chorar. Sigo-lhe os passos.

Na peugada da nuvem, vejo-te sobre a terra sombria. Sorris e "vais à tua vida", como diz o populacho. "Fazes tu muito bem", respondo eu com recurso à mesma unidade monetária do verbo. A verdade é que fazes mesmo muito bem. Daqui pouco mais levas do que matizes pardos, como os do céu que me tolhe desde as primeiras horas da manhã. Assim sendo, vai lá à tua vida.

Fico por aqui, a gravar o teu nome a cinzel nas paredes que muralham a minha alma. Cogitando sobre tudo isto, sou forçado a concluir que não vieste estrear nada, em abono da verdade mentirosa que gosto de construir. Não és a primeira; não serás, por certo, a última. Começo a crer que nasci com uma sólida vocação para a carreira de mexilhão. Acoplado à rocha, lixo-me e volto a lixar-me.

E cá estou, com a massa cinzenta terraplanada pelo papel abrasivo da sucessão ininterrupta de fatias de 24 horas.

Daí que contine sem água e sabão, sem pente e lâmina quase cega. Estou pardacento como o céu e sigo em tumulto como o cabelo desgrenhado que me recuso a pentear.

sexta-feira, outubro 10, 2003

PURGAÇÃO III (AFOGAR A DOR)

Adeus. Dizê-lo é morrer. Está dito.

COCO PÓS-JAZZ

Esta manhã o café foi sorvido com uma moldura de coco - uma moldura de olfacto, é preciso explicá-lo. E o grão moído ganhou um sabor caribenho, digamos assim...

Acordar depois de uma noite embalada ao sabor das baquetas de um Frazão endemoninhado não é tarefa que se cumpra com grande júbilo. A cabeça, como que disforme, ganha um peso de via sacra. As saudações matinais saem pastosas, atoladas nas ruínas de cerveja preta que persistem na língua.

Nas primeiras horas de uma noite recém-nascida, sentei-me, com a dorna plena de policromáticas iguarias indianas, frente a uma ampliação da proposta de sócio de Villas Boas, fundador do Hot Clube. E pensei: "que raio ando cá a fazer?". Mais tarde - já o orgíaco diálogo dos músicos ultrapassava a Lua rumo a Marte -, fiquei a saber que o meu sorriso, involuntariamente zombeteiro, tem o condão de inquietar o próximo(a). Prometo disciplinar as bochechas...

Mas dizia eu que o café da alvorada foi emoldurado pelo perfume de coco; às primeiras golfadas do aroma, ergui a cabeça disforme e deparei com uma espécie de versão Linha de Sintra da malograda Celia Cruz. Pareceu-me apropriado.

quinta-feira, outubro 09, 2003

PURGAÇÃO II

Triste, nada mais. Hoje acordei com uma sensação de perda. Perdi algo, é certo. Mas o quê? Acho que perdi o rumo e deambulo por estreitas vielas, à procura do pedação de alma que me falta e do qual sinto profunda falta. E onde estás? Onde estás quando eu preciso de ti? Em sítio algum, bem sei. Bem sei que nunca aqui estiveste e que me coube o difícil papel de aí estar, o difícil monólogo dos que pintam aguarelas de felicidade permeáveis ao borrão. Borraste a minha pintura, sabes? Triste, ou talvez não. Miserável, digo-to eu! Hoje olhei-me no espelho e vi a solidão a segredar-me ao subconsciente inconsciente que, consciente, condeno com a veemência de não mais poder amar. Não mais poder amar-te, que a correcção se impõe. Não! Não mais poder amar como te amei. Isso é certo. Passar pela vida a lembrar-me da vida. Porque isto não é vida. Isto é vida sem ti. Triste, nada mais. Uma vida triste. Olhar para os charcos de água da chuva, a ver se me vejo. A ver se estou cá, se existo para lá do universo paralelo em que me depositaste com mãos de parteira. Pode ser que...

Pode ser que tudo corra pelo melhor, que nunca tivesses existido. Pode ser que eu volte a acordar entretanto. Pode ser que acorde deste sonho mau que não é sonho, tenho a certeza que não é sonho, porque nos sonhos não há dor. E dói-me, sabes? Dói cá dentro, nas estreitas vielas da alma.

Ontem voltei a chorar. Não me serve de nada, bem sei. Olhei-me no espelho, esquecendo por instantes os charcos de água da chuva, e vi lágrimas desenhando largas estradas no meu rosto. Largas estradas, registe-se! Largas estradas e não estreitas vielas. Acho que perdi o rumo e deambulo por estreitas vielas enquanto as minhas lágrimas desenham estradas. Largas estradas. Duas a três vias, para permitir que a alma em trânsito possa fluir com a desejável rapidez. Não tarda nada estou vazio. Daqui a pouco, quando o dia nascer cinzento e frio, deixarei de me preocupar. Se não posso encontrar o pedaço de alma que me falta e do qual sinto profunda falta, então deixo-a ir embora de vez, a alma. Sai! Desaparece! Ou melhor, deixo que a leves. Fica com ela. Dobra-a muito bem e coloca-a no bolso. Areja-a de quando em vez... Faz-lhe duas ou três festas, com muito jeitinho. Fica com ela, que já não me serve de nada. Triste, nada mais. Triste e sem alma.

Nota de rodapé- É espantoso como logramos retratar o próprio âmago com recurso a uma tosca colagem de fragmentos de textos e de mensagens de correio electrónico.

PURGAÇÃO I

Dir-me-ão as almas ignaras, logo ingénuas, que as matérias da conquista "não têm nada que se lhes diga". É fruto do absentismo mental que cultivam dia após dia; fruto de excessivas travessias pela fímbria da vida. Quero ir além da fímbria... Para lá da vacuidade das ideias.

Conquistar não é vencer. Por outro lado, não conquistar pode significar uma vitória. "Depende da perspectiva", insistirão as almas ditas ignaras. Por uma vez, concordo. Na minha perspectiva, horizontal e prostrada, a conquista não concretizada é uma vitória - a vitória do bivalve. Opto por venerar à distância e à revelia da consciência do ser venerado. Porque o alvo das minhas atenções não vê em mim o que eu vejo nos espelhos do quotidiano. Vê a sua versão. Do mesmo modo que eu vejo a minha versão do ser venerado. Complexo?

O bivalve cerra as conchas - superior e inferior - e protege-se da perfídia, consciente ou inconsciente, do ente que se quis conquistado; e que não foi possível conquistar. Por manifesta ausência do défice de escrúpulos das almas ignaras. Arrepio caminho - sem mover as pernas - a expensas da interacção social. É o meu caminho. Estarei a tentar dizer adeus?

quarta-feira, outubro 08, 2003

PRÓLOGO

Reconhecer o fracasso quotidiano da própria existência não é, aqui, uma virtude de um carácter benfazejo, antes uma necessidade impreterível. Ademais acrescento que é condição sine qua non para despertar de um torpor de sonhos irrealizáveis, ainda que recorrentes. Vergasto-me com a chibata da realidade dos dias que, não raras vezes, passam por mim sem deixar rasto. A voragem das utopias, devo admiti-lo, traga-me aos poucos; ainda que os vergões no lombo indiciem o escrupuloso cumprimento do castigo que me imponho. Reconhecer as falhas do edifício que ergui - onde pontifica o tijolo excessivamente poroso - é pois, já o disse, condição sine qua non para insistir na dicotomia inspiração/expiração. Dias há em que é a única prova de que continuo por cá.

DEPOIS DO PARTO

"É bastante mau! Sempre a velha história! Quando se acaba de construir a casa nota-se que ao construí-la, sem dar por isso, se aprendeu algo que simplesmente se devia ter sabido absolutamente antes de... começar a construí-la. O eterno e maçador 'tarde de mais!' - a melancolia de todo o terminado!..."

Nietzsche