O pulso e a mão de Valdemar formam um gancho de talho forrado a pele desmaiada e pêlos débeis. É nessa ferramenta que equilibra um tabuleiro preenchido com pires, chávenas e pacotinhos de açúcar, trocos miúdos e um saca-rolhas roído pela ferrugem. Valdemar veste uma camisa branca de mangas a meia haste e um par de calças pretas recortadas em poliéster; há nódoas de hoje e de ontem; também as há de outrora, quando perguntaram a Valdemar se seria capaz de resgatar travessas de restos ao papel prensado das toalhas de mesa com o pulso e a mão num gancho assim teimoso e grotesco; há mucos secos que desenham cartografias nos colarinhos e no remate de um bolso costurado ao peito, círculos imperfeitos de tinto da casa, um bago de arroz a carpir solidões e pedaços de pestanas no desterro.
Valdemar administra com presteza as circunscrições da sua potestade, num território que compreende o delta da sopa de feijão e do caldo verde, os cerros acidentados de tachos e testos sobre as bancadas e no mármore velho do lava-loiça, os tufos de musgo debaixo das alpercatas de barro de José e Maria, que patrulham as fraldas de um menino Jesus com um olhar cataléptico, e a cristaleira de pinho onde repousam toalhas, galheteiros e prismas triangulares de palitos.
Valdemar fez do pulso e da mão um gancho quando, pela primeira vez, analisou de entre as pernas da mãe a humidade esverdeada nas paredes e os rostos compungidos dos santinhos na cómoda, alinhados, todos, na direcção da cabeceira para que pudessem fiscalizar a invenção de Valdemar da sementeira à colheita, a primeira apressada e limpa de preparos libidinosos e a segunda prolongada e supliciante. Durante oito horas, urrou desgostoso com o que lhe foi dado a ver, num timbre cavernoso e sobrenatural, acabando por ganhar uma tonalidade de carimbo que muito afligiu as tias e a avó. De tal forma que correram barroca abaixo com Valdemar ao colo, transportando-o à pressa aos cuidados do prior e à pia baptismal, certas de que um banho de cristandade reporia a ordem natural dos tendões e da goela do recém-nascido. Em verdade se diz que a água benta aliviou o fragor dos gritos pedregosos de Valdemar. Mas o pulso e a mão, esses, não desfizeram o gancho disforme, talvez porque na urgência do sacramento as tias e a avó se tivessem esquecido de convidar um padrinho mais próspero que o sagrado coração de Jesus.
O pai de Valdemar, inconformado, ainda procurou corrigir o defeito à revelia da padroeira, a quem as tias e a avó haviam entretanto dedicado uma dezena de velas e terços em sessões contínuas; não logrou outro desfecho que não um acesso revigorado de urros cavos, pois o gancho de Valdemar, mal imobilizado no torno de ferro, resistiu às torções administradas com a turquês.
Valdemar opera a máquina do café, distribui bitoques e jarros de vinho pelas mesas e nunca se queixa, do mesmo modo que nunca estende o gancho de talho forrado a pele desmaiada e pêlos débeis para cumprimentar quem passa, do mesmo modo que nunca deixa de sorrir, como se tivesse esgotado as lágrimas aos cuidados do torno e da turquês na oficina do pai, do mesmo modo que nunca levanta a voz, do mesmo modo que nunca levanta a cabeça.