O Sedentário

segunda-feira, março 28, 2005

ponto de interrogação


Às dezoito horas do dia vinte e oito de Março de dois mil e cinco escrevo um parágrafo delgado e tardio numa página de Janeiro. Anacrónico. Espreguiço uma, duas, três frases num torpor de jarreta a apartar tostões para o café pingado e começo a espreitar os nomes das ruas na azulejaria. Beatriz Costa: nove azulejos, a insígnia e as armas na insígnia. Duas pás, uma betoneira e cimento: Alfragide. Saio do carro, o vento a demolir-me a vontade e o risco no parietal, os dois um só. Desvendo o número seis-A numa praceta, entalado por cubos amarelos de subúrbio triste; uma luz de cozinha numa janela de rés-do-chão e calças de bombazina no cordame do estendal, o rego de um peito de doméstica a roçar peúgas e o monograma de um lenço. Seis-A: duas cabeças à procura de letras num teclado, uma delas a do senhor doutor, quem quer que seja o senhor doutor. Cheguei. Cedo. De regresso ao carro, encosto o baço a um balcão. Peço café e bagos amargos de aspártamo. Snack-bar Ferrari; há bifanas num losango de papel prensado. No carro ligo o rádio e abro um livro. A medo. Falta uma hora.

segunda-feira, março 21, 2005

Pritzker 2005


I've been such an outsider my whole life. It's just kind of startling.

The multiplicity of ideas is what I'm interested in. The hybrid in our society - where there is no singular idea of what is beautiful.

Thom Mayne, The New York Times - 21 de Março de 2005.

Fotografia: Caltrans District 7 Headquarters, Baixa de Los Angeles (Morphosis).

sexta-feira, março 18, 2005

Leituras

«Direi como foi que na dita cidade de Granada aprendi as mais das coisas da Lei de Mafamede e bem assim a tomar meus banhos, e a jogar o enxadrez, e a ler e a escrever da mão direita para a mão esquerda, e da mão esquerda para a mão direita, e mais coisas assombrosas de mulheres, e outras maravilhas que são próprias dos homens ricos e de grande condição. E sobre todas as coisas que guardo memória destes meus dias passados na dita cidade de Granada, recordo cada instante que passei na companhia daquela que fez cativa minha alma para todo o sempre e que não sendo a mais formosa de quantas criaturas há no mundo, sempre foi para mim a mais perfeita de quantas mulheres andaram sobre a terra, por ser aquela que em seus olhos eu podia ver a feição de sua alma.»

Pedro Canais – A Lenda de Martim Regos, Lisboa 2004. P. 69

quinta-feira, março 17, 2005

res communis

Há em ti uma solenidade ferida de regente no exílio da manhã seguinte, e por vezes, no interstício de uma página e de uma nota apontada a escopro, imagino um diadema precioso a cingir-te o toucado de pigmento e laca quando mergulhas o pauzinho de canela na espuma de uma bica curta; na tua cabeça uma talha dourada de altar em três quartos de hemisfério, um capricho de cornucópias e volutas, escadarias de cocuruto, um prior de batina que nos espreita das traseiras de um brinco de pechisbeque a meio do ofertório e um quinteto de viúvas sofridas que lançam as línguas para a hóstia, o corpo de Cristo a dissolver-se-lhes aos poucos no céu da boca, às vezes um resto de espinha aprisionado entre os molares, que aborrecido levar assim Cristo entalado nos dentes. Depois descuido-me, terçamos olhares, o meu surpreendido no topete da segunda pessoa do singular e o teu a cuspir chamas lazulite de um gás de bilha, e desmontas-me a escrivaninha de aprendiz mal armada na circunferência da mesa; zangam-se-te as sobrancelhas de lápis enquanto desenhas uma pauta na testa, e quando concluis a cauda da clave de sol começas a traduzir-me numa colcheia, metade de uma semínima entre um sinal rubi que o médico jurou ser benigno, que um raio me despedace já aqui minha senhora, e um buraco de varicela, o senhor doutor grelhado à porta do centro de saúde numa bátega de Abril.

Ficamos para ali os dois, assim presos no supremo afã dos nadas, uma nota de música sozinha numa pauta de rugas e um potentado no exílio de uma mesa de café de onde se avista o entulho das obras e uma procissão de sacos de plástico dentro e fora das portas do supermercado, num coito eterno de domésticas, diabéticos e desempregados; nas espaldas de quatro seguranças ginga um andor, meia dúzia de carcaças, três iogurtes e filetes congelados aos pés de um Cristo a quem falta uma vértebra, semeada para a eternidade numa gengiva de viúva. Uma destas manhãs atiro-te um bom dia, a ver se te convenço a fazer de mim um alegro no lugar de um adágio.

quarta-feira, março 16, 2005

Dois


(Álvaro Cunhal - Julho de 1958)

terça-feira, março 15, 2005

Um

No céu grassa um negrume sujo de grafite; fendem-no dois sabres da guarda e o braço direito de um outro sequaz fardado, que esporeia o cavalo na direcção de um homem e duas mulheres; lenços nas cabeças a desafiar o rumo do vento, um punho levantado sem prudência contra os cascos de três bestas, a última das quais, rompendo papel dentro pela esquerda da refrega, verga a cabeça e a crina em desalinho aos suplícios dos arreios. Ali perto, um camponês de camisa desfraldada e esquálida dobra o lombo para colher uma mão-cheia de calhaus ao negrume da grafite, que já escorre pelo papel desmaiado e deixa encardidos os pés nus da mole iracunda; as pedras devem tanger daí a nada nos capacetes dos carrascos. Ao centro, na mão de um guarda debruçado sobre a garupa de um corcel mais gordo que o povo, ergue-se a lâmina de um sabre contra o braço robusto de um homem, as botas de atanado fincadas na terra à espera do golpe de cutelo; acodem-no à pedrada um homem e uma mulher. Há um miúdo de pés descalços no meio da desordem, para lá de um avental de mãe e do torso bruto de um homem que ruge contra o opróbrio, todo ele espáduas e antebraços na direcção de um guarda sem cara e da cor do céu. Há gente prostrada, abatida pelos cascos e pelo pêndulo das lâminas; os cabelos nédios de uma mulher eternizam-se no chão, as mãos sufocam a dor sobre as carnes do rosto que se imagina contraído. No outro extremo uma mulher ampara um corpo inerte cuja face, a única entre a multidão, traz desenhada a morte.

segunda-feira, março 14, 2005

Recessão técnica

Às dezasseis horas e quarenta e cinco minutos interrompe-se o ciclo de maceração nas entranhas do mecanismo. Um complexo de rodas dentadas enovela rotações, cindem-se partículas e a maquinaria abandona-se à náusea do cupro-níquel, gemendo presságios de um vómito iminente. A hora entalhada no extremo nordeste de um rectângulo de cartão branco e o fastio dos trocos miúdos no último lamento de uma linha de montagem engastada em sombras húmidas – um murmúrio distante quando as solas começam a gemer na calçada polida do cais de embarque. A negro um prazo de vida, um número de contribuinte, um preço incluindo IVA à taxa legal e um apodo sem recurso: simples. Por baixo a equimose azulada de uma fita métrica com um asterisco aos cem centímetros: o metro.

Picoas. Tenham a bondade de me ajudar. Uma bengala varre bafios amontoados entre sapatos, detém-se em pancadas nos tubos de alumínio, sinos de uma lepra do olhar que a todos cega. A vossa moeda, ouve-se. Próxima paragem: um Saldanha áspero numa voz de mulher que sorri. A vossa moeda, a vossa ajuda; não adoça consciências e a bengala aponta às tintas de azebre nas paredes abauladas de um túnel, a tripa a largar gente ao ar da praça. Campo Pequeno. Um acordeão asmático rende o castigo da bengala no alumínio entre hálitos de bocejo e tabaco marinado; dedos a transpirar pobreza para as teclas de uma ponta à outra da carruagem, uma valsa na curva da linha. Entre Campos. Um vira por remunerar e o fole a cerrar os dentes à luz de um candeeiro redondo, no sopé das escadas. Utilizar até nove do seis de dois mil e cinco.

sexta-feira, março 11, 2005

Post Scriptum

Houve noites em que olhava as estrelas de cima para baixo.

Nota: há frases maiores que bibliotecas. Para ver/ler.

terça-feira, março 08, 2005

Iniludível


(Henri Cartier-Bresson - Paris, 1932)

segunda-feira, março 07, 2005

O Sedentário por mão alheia

A caixa de pinho

Fiquei parada no centro da sala; minto, no centro da minha incredulidade... Quando olhei para ela, estava numa caixa de pinho, vestida de preto, ironicamente coberta com um véu branco. Não ri, não chorei, parei. Os pensamentos tentaram tecer uma justificação, mas formou-se um emaranhado de fios de raiva, tristeza, mágoa e tudo o que me pôs a chorar desalmadamente, no sentido literal do termo. Corri para fora da capela, tentei fugir daquilo tudo. Dali até à Rua D. Pedro IV (...) eram dois minutos e se eu corresse o mais rápido que conseguisse talvez ela ainda lá estivesse à minha espera com uma costeleta de porco, batatas fritas e alhos na borda do prato, como só a minha avó sabia que eu gostava.

Nota: haverá forma mais pungente de deixar o fim-de-semana?

sexta-feira, março 04, 2005

molles somni


Michelle, ma belle.
These are words
That go together well,
My Michelle.

Michelle, ma belle.
Sont les mots qui
Vont tres bien ensemble,
Tres bien ensemble.

I love you, I love you, I love you.
That's all I want to say.
Until I find a way
I will say the only words I know
That you'll understand.

I need you, I need you, I need you.
I need to make you see,
Oh, what you mean to me.
Until I do I'm hoping you
Will know what I mean.

I love you.

I want you, I want you, I want you.
I think you know by now
I'll get to you somehow.
Until I do I'm telling you
So you'll understand.

I will say the only words I know
That you'll understand,
My Michelle
.

(Lennon-McCartney)

Suum cuique tribuere: um sentido agradecimento ao estimado amigo que assim reabilitou o meu dia.

quinta-feira, março 03, 2005

a contrario sensu

- Não me sinto bem aqui. Há gente a mais cá em casa.

Nota: Kim diz mais ou menos o mesmo sobre a cidade de Lahore quando, nas páginas de Kipling, persuade o velho lama bhotiya (tibetano) a aceitá-lo como o seu novo chela (discípulo) - Na Casa das Maravilhas pesquei a conversa sobre tantos países novos e estranhos, e pensei que, se um homem velho assim e tão pouco habituado, isto é, tão habituado a falar a verdade, tem a coragem de sair pelo mundo à procura de uma coisa à toa como um rio, eu também devia pôr-me a viajar. Estou farto disto aqui - desta cidade. Cresces, portanto, em sabedoria e sou eu, agora, o teu chela.

quarta-feira, março 02, 2005

ad perpetuam rei memoriam

Às vezes descerro o ferrolho da arca de sândalo, esventro-a das tripas de enxoval – um esvoaçar de panos e naperons, fronhas e atoalhados - e recupero o bibezinho tinto Grão Vasco de um colégio difuso escorado por prédios tristes, no qual me permito introduzir a cabeça e os braços decrescidos para o efeito, num fenómeno físico cronometrado com a regressão do siso e dos dentes que o confirmam nas traseiras da mandíbula. Faço-o à pressa para não chegar atrasado à escuna dos escravos na embocadura da Rua D. Pedro IV, e ver-me, por chegar atrasado, adstrito a cotos sujos de lápis de cera que os meus colegas pontuais repeliram para um canto sombrio do armário. Lavro um rego no parietal esquerdo da horta repolhuda, acasalo três botões e três casas do meio do peito à ponta do ombro e abordo pesaroso a carrinha verde do senhor Manuel - que deixa a urna e a eterna saudade cinzelada em mármore de Vila Viçosa para tornar a transportar a carga de Angola a São Tomé -, cerzindo as pálpebras para não verter em lágrimas a angústia que me tosta a faringe, o luto pesado de um dia perdido entre cubos de plástico e o desenho de uma casa e um sol com uma linha curva no lugar da boca, quando o que realmente quero é embeber uma bolacha Maria no café com leite da minha avó e rechaçar, num ataque desferido do alto da nespereira, os hunos que assolam a capoeira e os brincos de princesa no topo do quintal. Às vezes trago um papelinho para casa ao fim da tarde, e no papelinho uma nota para os meus pais a avisar que choro com facilidade e sem motivo aparente, a cabeça desproporcionada a esgaçar o bibezinho tinto Grão Vasco enquanto devolvo um naperon à arca.

terça-feira, março 01, 2005

Wir sind immer zu Ihren Diensten

Hoje é um dia lúgubre como o escorregar de pontas de dedos no nylon e no filamento de prata de um bordão em Arieta. Hoje cumpro os mesmos trajectos de ontem, mas purgado do conforto de saber que não é dia de andante nostalgico, e que por isso não devo ceifar os gravetos de três dias na curva caprichosa do queixo em seis minutos e vinte e três segundos - porque o concierto madrigal para dos guitarras y orquestra não vai além, hoje, de Arieta e do andante nostalgico -, que não devo varrer com cerdas e espuma branca os restos de trigo torrado das frestas entre as penedias de molares em seis minutos e vinte e três segundos, que não devo cobrir de ganga as canelas e as rótulas tolhidas de frio em seis minutos e vinte e três segundos, que não devo medir forças com os botões nos punhos da camisa em seis minutos e vinte e três segundos, não os botões principais, antes os botões minúsculos que escondem as bocas de esgoto de sangue venoso nos estuários dos pulsos, complicativos e cerimoniosos, ciosos das suas missões como anões auxiliares de ilusionista. Porque hoje é dia de tudo isto, em fracções eternas de seis minutos e vinte e três segundos, num andante nostalgico de passeio para passeio, andante porque contínuo, nostálgico porque lúgubre como o escorregar de pontas de dedos no nylon e no filamento de prata de um bordão em Arieta.

Hoje é dia de adicionar o sopro triste de uma flauta de bisel a uma escala menor a descer trastos em lugar dos degraus de uma cave, às carícias que um pedaço de crina prolonga num violino; mexer bem e deixar apurar em lume brando por seis minutos e vinte e três segundos. Se este tempo fosse outro, hoje seria um dia de caminho-de-ferro, o embalo da locomotiva a rasgar subúrbios até encostar às pontas de cigarros nas calçadas do Rossio, próxima paragem, estação terminal, há ligação com a linha da vida na palma de uma mão terna; dia de procurar o consolo de uma crosta de açúcar num palmier da Confeitaria Nacional, tropeçando como um trambolho nos pombos constipados da Praça da Figueira, iludindo num golpe de anca a velha gemebunda que cambaleia como as aves entre farrapos de papo-seco e excrementos cor de chaimite. Se este tempo fosse outro, acabaria por me esquecer da sopa ao lume, entretido, entre dentadas no palmier, com o desenho de uma letra num quadrado de palavras cruzadas, a flauta de bisel a chiar no borbulhar da água quente como uma sapateira suplicante, o nylon a consumir-se aos poucos numa chamazinha acanhada, um tropel de doceiras de convento aos comandos das gamelas e dos tabuleiros na cozinha, aprumadas para a inspecção como soldados alemães quando eu irrompesse pelas fitas de plástico no umbral. Estamos sempre ao seu serviço, dir-me-iam.