O Sedentário

domingo, agosto 07, 2005

gabriela

Aos domingos acordo com pena de existir; uma mão-cheia de água de lava-loiça a remir-me os cantos da boca e as persianas pesadas dos olhos, a remover magenta e saliva seca, a minha e a de quem me calha numa taluda de noites abafadiças, tabaco de arquipélago e vãos de escada que se desfazem em caliça e bolor. Numa igreja de cinescópio, a circunferência do corpo de Cristo em plano picado, o branco anémico de um profeta gemebundo numa cruz de pão sem sal, entre as unhas limadas de um padre de estola púrpura e sobrepeliz lavada - ainda a primeira luz não acendeu os enxames de varejeiras e os restos de obras nas traseiras do prédio e já lhes sinto o arrependimento nas camisas abotoadas à pressa, nos passos culpados sobre os tacos do soalho, nos polegares discretos e aliviados a afastarem o trinco da porta sem um até logo, um obrigado, uma carícia doce do indicador e do anelar na voluta da minha orelha, compondo uma madeixa desbotada, sem um número de telefone apontado na bissectriz de um guardanapo de papel, como nos filmes.
- Porque me abandonaste? - pergunto-lhes num sussurro sozinho.
Aos domingos, quando a meia de leite e os grumos de coco sobre o pão de deus distam dezenas de estocadas de sandálias e joanetes da minha porta ao extremo da praceta, há uma claridade noviça e sebes estioladas que desenham frontispícios mouriscos nos contentores de lixo e nas tampas de esgoto, e isso é bonito; há a campa de um eu num canteiro esquecido, mais ou menos ao lado de um Alhambra tisnado de sombras.

sexta-feira, agosto 05, 2005

proporção


A matemática da fome na segunda nação mais pobre do mundo, o Níger: em mil seres humanos que logram nascer a respirar, 262 não completam meia década de existência; de acordo com as Nações Unidas, cerca de 1.2 milhões de agricultores e pastores – são aproximadamente quatro milhões – encontram-se “extremamente vulneráveis”; os primeiros sinais da calamidade – um problema cíclico, como explica Marc Prior, porta-voz da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) para a África Ocidental - surgiram em Novembro de 2004; Médicos Sem Fronteiras e FAO continuam a lançar, desde Novembro, sucessivos apelos à comunidade internacional; com o beneplácito das Nações Unidas, as autoridades do Níger apelaram à comunidade internacional para que desbloqueasse três milhões de dólares e 71 mil toneladas de alimentos para os agricultores e pastores em pior situação – cerca de 400 mil. Em Maio deste ano, o Níger havia recebido menos de 7 mil toneladas de alimentos e uma única doação de 323 mil dólares – do Luxemburgo.


Adenda: a roçar as treze horas, para lá da simetria falsa de um prato gasto e de um copo a transbordar de vermelho e polígonos minúsculos de maçã e gelo, alguém desfiava um libelo azedo contra o efeito desigual da grelha no miolo de um bife.

Fotografia: Michael Kamber (Polaris) - The New York Times

à distância de um Atlântico


«Do topo, debruçados sobre a pedra mais alta, podiam enxergar o mundo inteiro, ou ao menos aquilo que parecia a Maria Inês ser o mundo inteiro, dimensionado por seus nove anos de idade. De um lado o rio, pedacinho de barbante dourado, os animais no pasto como miniaturas, a casa e o curral como brinquedinhos coloridos de plástico. E do outro lado, o silêncio e o vazio acentuados pelo abismo abrupto: lá em baixo, na sede abandonada de uma Fazenda dos Ipês, fantasmas vagavam, caramujos redondos riscavam muito devagar as paredes adormecidas e plantas suculentas cresciam no telhado. A pintura das janelas descascava aos poucos, tudo envelhecia e se tornava dia a dia mais secreto. Mais doloroso. Como outras realidades que Maria Inês estava prestes a conhecer tão bem.»

Adriana Lisboa - Sinfonia em Branco, Lisboa 2004. P.16