O texto que se segue nasceu em duas noites de um quase Outono. É filho dilecto de punhados desirmanados de notas sofregamente apontadas num pequeno bloco. Outros houve que não sobreviveram ao censor que habita cá dentro, alojado algures. Este ficou. Inacabado. Talvez por medo. Medo de arquivar de vez os oito dias que mudaram o curso de águas turvas em que vogava. Medo de desenhar o ponto final.
As franjas do Cairo são quentes. O Aeroporto Internacional do Cairo é quente; e húmido. A roupa é fardo pesado sobre corpo abatido. Ao cabo de cinco horas pouco reconfortantes a bordo de um colossal 747, abordámos o alcatrão do Aeroporto, lestos e sorridentes, apesar do bafo infernal da noite.
As franjas do Cairo têm cheiro. O Aeroporto Internacional do Cairo tem um cheiro que não podemos identificar. Porque é novo. Porque a virgindade dos pulmões é violada de uma forma paulatina. Invade-nos, o aroma. É um misto de ténue putrefacção e de raras e exóticas especiarias. É um cheiro de morte lenta, porém aprazível. Uma eutanásia de dióxido de carbono; exóticas especiarias, as mesmas que viríamos a buscar numa rua febril de Assuão, pórtico para a vertigem de beleza do Nilo.
Ei-la, a água da vida que se encontra no céu; ei-la, a água da vida que está na terra. O céu lampeja por ti, a terra estremece por ti quando nasce o deus. As duas colinas fendem-se, o deus manifesta-se, o deus espalha-se no seu corpo...
Os egípcios professam o capricho do volante, elevando a arte de conduzir a um estádio superior. Mas fazem-no com a calma do monge. Escassos cinco minutos medeiam entre o Aeroporto Internacional do Cairo e o hotel "Mövenpick", onde lençóis lavados aguardam o corpo do viajante recém-chegado. Porém, o timoneiro do autocarro não se compraz com cinco minutos. Curvas e contracurvas, cruzamentos e falsas partidas, o aportar do veículo em hotel errado, as inversões de marcha e a marcha à ré que se impõe em quase todos os trajectos, tudo desemboca na expansão do percurso. É o primeiro contacto com o conceito do "minuto egípcio" – cinco minutos convertidos em vinte.
Em vinte minutos cairotas, os sentidos absorvem estímulos até ao limite do esgotamento. Assim é o Cairo da primeira noite - os táxis negros de chapa castigada, Peugeots e Fiats de quilometragem vasta e matrículas ininteligíveis; as carrinhas de nove lugares repletas, o condutor de pé no tejadilho a acondicionar bagagens; a noiva resplandecente e de olhar apreensivo no interior de um táxi; os efectivos policiais de farda branca, que pontificam nos postos de controlo com a atenção de um mamífero que hiberna; e o arábico de entoações guturais, a lembrar-nos do quão longe estamos de casa. E felizes...
No interior do hotel, a temperatura cai abruptamente. Por entre um Inverno de plástico cozinhado pelo ar condicionado e uma orgia de mármores, dourados e torneados, encaminhamo-nos para o balcão do Banco Nacional do Egipto. É tempo de trocar o euro pela libra egípcia. As notas de cinco, vinte e cinquenta libras são empilhadas em maços fartos. Depressa percebemos que, com 300 euros, ascendemos à nata da sociedade egípcia. Faraónicos, abandonamos o banco munidos de envelopes recheados de notas.
O quarto é um bálsamo para as chagas da alma, abertas por uma hora e meia de turbulência acima do Mediterrâneo. O banho acalma a pele febril e a cama afaga a ossatura. Mas não há sono. A conversa assenhoreia-se da noite até ao dealbar de um Cairo ainda periférico. A televisão debita sinais de surrealismo – José Rodrigues dos Santos reproduz notícias na RTP Internacional, a Cairo TV difunde uma pirâmide estática, à falta de uma mira técnica. O teletexto egípcio avisa: Assuão reserva-nos temperaturas superiores a 45 graus. Estamos a poucas horas de nova descolagem.
Decididamente, a aventura do voo doméstico não pacifica o voador renitente. Imbuídos de uma excitação sobrenatural - que nos fez dispensar o sono - somos sujeitos a um
check-in apressado e confuso, por entre um arábico profuso e sonoro. No Egipto, o último vislumbre da bagagem, antes do embarque, assume sempre os contornos da derradeira despedida. Os receios revelaram-se, no entanto, infundados, por competência egípcia ou pela mais depurada das sortes...
De novo o cheiro que ainda não podemos identificar. De janelas escancaradas, o autocarro da "Egyptair" absorve o aroma e leva-nos ao aparelho com destino a Sul – um "Airbus" de fuselagem antiga e rebites com uma aparência pouco fiável. A perspectiva de uma escala em Luxor, antes da chegada ao calor de Assuão, não é animadora. Ainda assim, a curiosidade de recém-nascido sobrepõe-se aos temores.
A descolagem fez justiça à aparência duvidosa do avião. Toda a estrutura do aparelho parecia acometida de um delirium tremens; e os efeitos visuais contribuíam para a hipertensão. Com a aceleração dos motores, as orlas das escotilhas começaram a expelir uma essência vaporosa, fria e com um aspecto nada normal. Quando o avião ergueu o nariz, os tremores pareciam anunciar a desintegração a breve trecho. A observação das asas deixou-nos na fronteira de uma síncope. Dir-se-ia que a pesada ave subia com o bater das suas asas colossais. Porém, acima do nevoeiro cairota, o pterodáctilo estabilizou.
O voo entre o Cairo e Luxor dura cerca de uma hora. A visão aérea do deserto egípcio desarma-nos. É um oceano de areia. Os primeiros vislumbres das pedras milenares de Luxor, resistindo ao labor dos séculos entre uma luxúria de palmeiras, encetam o longo processo de redução do ego. Ao cabo das primeiras visitas a templos, estaremos rendidos à magnificência e cônscios da nossa real importância na esfera terrestre.
A escala é curta. Menos de meia hora após a aterragem em Luxor, o "Airbus" faz-se à pista. Repetem-se os tremores, o ruído ensurdecedor das turbinas, a aflição mal disfarçada nos olhares que trocamos, as preces que as almas entoam - sem excepção, do ateu ao crente fervoroso. Em vinte minutos, estaremos no Aeroporto de Assuão, aguardando o desfile das malas na passadeira.
Em Assuão, o "minuto egípcio" volta a impor o seu ritmo. Ante a inexistência de um veículo que nos transporte ao navio "Queen of Sheeba", fundeado no cais da cidade, vemo-nos na contingência de aguardar, durante minutos que parecem horas, uma solução debaixo do astro-rei, que, a meio da manhã, se apresenta capaz de cozinhar um ovo depositado no chão. Mas o nosso fado mostra-se benfazejo. À falta de um autocarro, toca-nos um táxi Peugeot, equipado com um tejadilho férreo e com um tablier alcatifado. No espelho retrovisor, uma parafernália de amuletos e latões vela pela segurança do viajante.
Inshallah!...
As elevações de areia e a pedra escura emolduram a estrada. A paisagem e o vento quente que açoita os rostos não são familiares. Mas são belos. O taxista é uma personagem de livro. Tácito, conduz a carrinha Peugeot debruçado sobre o volante, exibindo a corcunda de incontáveis quilómetros palmilhados naquela posição. Já às portas de Assuão, abre a boca para indicar a primeira aguarela do Nilo. É o templo de Philae que se anuncia do lado direito. Sorrimos como crianças. Estamos no Egipto...
O "Queen of Sheeba", navio da frota "Queen Nabila", é um monumento à mestria do
kitsch egípcio. Os matizes esverdeados das paredes da recepção remetem-nos para uma imortalidade de alfaces viçosas. Assomamo-nos a um balcão de alabastro e recolhemos as chaves dos quartos – 3006 e 3007; pares apartados pelo critério do género.
O renascimento das almas induz uma sofreguidão de novidade. E partimos, os quatro, à descoberta de Assuão, longe de adivinhar a iminência do contacto com o Egipto profundo, de construção descarnada e ruas sem pavimento. O Sol fustiga as testas e depressa percebemos que o passeio resultará penoso sem assistência animal.
Perfilados na avenida marginal, sobranceira aos navios de cruzeiro, os coches aguardam a clientela. Discutem-se os preços, acotovelam-se os senhores das rédeas, soam as buzinas dos táxis que passam sem poupar o acelerador. A libra é moeda que ainda não dominamos. Aparece Ali, uma criança de tez crestada às portas da puberdade. O cavalo de Ali é a besta de carga mais bonita de Assuão. De ossos em riste e pêlo gasto à força de impiedosas chibatadas, o cavalo terá de arquejar por entre egípcios hipnotizados pelos ombros desnudos das nossas companheiras de travessia. Ali conduz-nos à face mais pobre de Assuão. Mas não o faz sem antes exigir que uma das senhoras o acompanhe aos comandos da carroça. Debalde...
Na estrada, os coches parecem gozar de uma inexplicável prioridade. Ali, senhor de uma destreza e de um denodo assinaláveis, corta o caminho dos automóveis, progredindo avenida acima como Ramsés II entre as tropas hititas.
Em frente! Em frente! Estou contigo, meu pai. A minha mão está sobre ti e valho mais que cem mil homens, eu, o senhor da vitória...
Dobrada a avenida marginal, ergue-se uma Assuão de traços agressivos. Invade-nos o temor do réu ante o magistrado. À excepção de uma majestosa mesquita, rodeada de cuidados recortes de relva, é-nos servida a frente indigente da cidade.
Homens de cabeça oculta por lenços manchados de suor observam os trajes coloridos que envergamos. Grupos de egípcios mais ou menos jovens rasgam sorrisos matreiros à nossa passagem. Ali aconselha o recolher das pernas luzidias da Paula e da Patrícia. À medida que a subida se torna mais íngreme, o cavalo ameaça solicitar a reforma antecipada. Mas Ali continua a brandir o chicote com uma impiedade faraónica; e insiste em negociar um acréscimo de uma hora ao horário previamente acordado – uns dietéticos e sensatos 30 minutos. Debalde...
Esgotada a meia-hora protocolar, começamos a exigir o regresso ao "Queen of Sheeba". O exercício de diplomacia musculada complica-se. A dada altura, Ali encontra um "cúmplice" com trejeitos de Ali Baba. Sem aviso prévio, o amigo do cocheiro, visivelmente mais velho, assume os comandos do veículo. De novo o temor, mas desta feita sem reverência...
O "cúmplice" de Ali pergunta se queremos adquirir uma dose de marijuana. Debalde...
Concluído o complexo processo de negociações e apartado o incómodo amigo de Ali, logramos regressar ao cais. Sagaz, Ali sorve as nossas libras sem precisar de agitar argumentos de peso. O Paulo troca um isqueiro pelos fósforos do miúdo adulto. Dezenas de libras pelo trajecto, cinco libras para o cavalo, que roçou o óbito nas subidas mais difíceis. À noite, a caminho do mercado de Assuão, um outro cocheiro rir-se-ia da nossa inocência. Mas que importava isso? Conhecêramos a verdade a reboque do cavalo mais bonito.
Nota: a primeira citação foi furtada aos
Textos das Pirâmides; a segunda é um excerto da prece a Amon proferida por Ramsés II antes de carregar sobre as fileiras hititas na batalha de Kadesh, em 1294 a.C.