O Sedentário

quinta-feira, setembro 30, 2004

Socialismo real

Há poucos dias, a despropósito, ressuscitámos nas caves da memória a figura tutelar do urso Misha, o ventre enfaixado por uma tira com anéis olímpicos e os olhos arregalados numa alegria ligeiramente suspeita, acentuada pela cristalização de um sorriso sem dentes. Inquietei-me. Lembro-me de ver os meus movimentos estudados pelos olhos de Misha, que ora jazia discreto pelos cantos do quarto ora apoucava com o risco abaulado da boca, entalado em almofadas sobre a colcha, o bólide de Prost estacionado à cabeceira e o plástico da espada de Zorro - no alcatrão de um recreio de Fevereiro, a lâmina pouco podia contra bisnagas em forma de Luger e torrões de areia suja desferidos à mascarilha.

Lembro-me, inquieto. À medida que entre o meu nariz e o meu lábio superior germinava um bigode como o de D. Diego, do pescoço e do pêlo de Misha esvaía-se o viço de 1980. Incapaz de suster o balanço agonizante da cabeça, começava a preferir a penumbra do armário à luz da marquise. Já para o fim, quando nada restava do urso eslavo, exilou-se num saco de plástico, dobrado sobre si mesmo à guarda dos aranhiços da arrecadação.

quarta-feira, setembro 29, 2004

Ponto de exclamação

Quando a ponta da velha Bic larga a galope esbaforido, profanando as linhas do caderno com frases anárquicas, é chegada a hora de aquiescer. Aos próximos dias faltará, por certo, a solidez do real. Regressemos à verdade temperada, que me aborrece em doses menores. Falta-me determinar a medida de sal.

terça-feira, setembro 28, 2004

Novembro

A patinar teimosamente nas sondagens, o candidato democrata às glórias da liderança do "mundo livre" mandou chamar um sexteto de estrategos: John Sasso, algoz de Joe Biden nas Primárias de 1988, Mike McCurry, malabarista da comunicação social ao serviço de Bill Clinton, Joe Lockhart, antigo assessor do Presidente democrata, Stan Greenberg, veterano da mesma era, Michael Whouley, escora de Al Gore nas Primárias de 2000, e Jonathan Winer, a quem cabe, no novo quadro estratégico, a manutenção do lodaçal iraquiano no cabeçalho da ordem de trabalhos.

A inflexão que esta vanguarda de emergência veio impor ao tom de John Kerry poderá revelar-se tragicamente tardia. Numa altura em que se travam as batalhas decisivas da guerra pela sala oval, o senador medalhado é já outro sério candidato democrata à incineração; e desta feita, a verosímil derrota do Partido Democrático em Novembro resultará de uma inexplicável tibieza inicial na campanha, atolada na obsessão do "discurso pela positiva" e sem saber muito bem como responder à abordagem de tipo take no prisoners da equipa Bush-Cheney.

A primeira entourage de Kerry, finalmente postergada – Mary Beth Cahill é hoje pouco mais que uma directora honorária da campanha -, fez descer o pano sobre a Convenção Nacional Democrática com uma convicção falaciosa; no capítulo da segurança nacional, pensavam os ideólogos da candidatura Kerry-Edwards, os predicados do veterano do Vietname – "My name is John Kerry and I’m reporting for duty", anunciou patrioteiro e canastrão - saíam impermeáveis do "Fleet Center" de Boston. Para o calendário outonal, Cahill, John Martilla, o speechwriter Bob Shrum e restantes elementos do staff inicial privilegiavam as questões da Economia e dos serviços de Saúde. De erro crasso em erro crasso, a equipa democrata afundou-se nas sondagens. George W. Bush e Dick Cheney prosperaram.

A poucos dias do primeiro de três debates televisivos entre os candidatos à Presidência, as sondagens continuam a ditar uma derrota do campo democrata. O confronto directo com George W. Bush, aflitivamente ignaro, pode muito bem constituir o último recurso de John Kerry. E na contenda dos ecrãs vale tudo, até a diferença de estatura entre o senador e o Presidente, que a novel guarda avançada da campanha democrata já admitiu querer explorar na "fotografia" do aperto de mão.

Kerry tem até Novembro para lograr desfazer as dúvidas que assaltam eleitores indecisos como Jim Vyvyan, um professor de liceu de Union Grove (Wisconsin) citado pelo Washington Post: "Eu teria votado em Kerry há três meses, mas ele não melhorou ou demonstrou as suas posições mais claramente nos últimos três meses do que há um ano".

segunda-feira, setembro 27, 2004

Citar

«Havia quem tivesse voltado da Guiné sem braços e sem olhos. Eu sei porque os vi, mesmo quando eles já não podiam ver-me nem dar-se conta da minha revolta ou da minha tristeza. Vi-os sentados em esplanadas de Agosto, com a imobilidade inquietante de quem já deixou de olhar para os relógios ou para o riso das raparigas. Eu estava lá e vi-os. Estavam mortos e fingiam que estavam vivos, com a resignação só aparente de quem acredita que tudo estava escrito muito antes de acontecer.

Eu ouvi-os vociferar e praguejar, partir cadeiras a pontapé e atirar gelados de baunilha e de morango contra as sardinheiras dos canteiros, nas bordas dos passeios. Eu ouvi-os verberar as mães, os pais, a pátria por terem consentido que a miséria tivesse tomado assim conta deles e do que restava das suas vidas. Eu vi as lágrimas nos seus olhos incapazes de chorar. Eu vi tudo e com tudo isso me revoltei, sem ser capaz de dar tréguas à revolta ou paz à indignação. Era tempo de acabar.»

in Uma Noite Fez-se Abril, de José Jorge Letria.

Nota: numa página em branco do livro de José Jorge Letria, resgatado à negrura do chão de Lisboa com uma moeda humilde, escrevi três linhas. Seis, na verdade. Contudo, ao Sedentário chegam apenas três - Numa manhã de vento doce soprado do Tejo, fez-se Abril cá dentro e os ramos deram flor como se de uma primeira vez se tratasse. O resto? Uma "imobilidade inquietante"...

quinta-feira, setembro 23, 2004

Soldados do Império - Daniel Pipes

O neoconservadorismo de Daniel Pipes, fundador (em 1994) e director do grupo Middle East Forum, é mais do que o resultado de um processo de amadurecimento ideológico. É fruto, numa proporção mais significativa, de um legado genético.

O pai, Richard E. Pipes, serviu, nos anos 70 e 80, nas frentes de batalha da Guerra Fria; imigrante polaco nos Estados Unidos, professor de História Russa na Universidade de Harvard, Pipes I chefiou, em meados da década de 70, o Team B Strategic Objectives Panel, cuja missão consistia na "revisão" das informações da CIA sobre a ameaça do Bloco de Leste – empenhados na pulverização da Détente entre os Estados Unidos e a União Soviética, os elementos do Team B, entre os quais figurava o actual vice-secretário da Defesa, Paul Wolfowitz, procuraram levar a cabo as exéquias dos acordos SALT (Strategic Arms Limitation Talks), partindo da concepção de que os soviéticos consubstanciavam uma força agressiva e imperialista.

Daniel Pipes enforma na "jurisprudência" genealógica o seu próprio fervor de "linha dura". E à falta do espectro da Cortina de Ferro, orienta a artilharia para o espectro do pós-11 de Setembro: o extremismo islâmico.

No quadro do Middle East Forum, o trabalho de Daniel Pipes constitui mais um braço tentacular da estratégia global neoconservadora. Muito à semelhança de think tanks como o Project for the New American Century, o grupo de Pipes advoga que os Estados Unidos devem acautelar interesses vitais no Médio Oriente, o que, na sua óptica, exige de Washington o estreitamento das relações com Israel e democracias regionais ditas "emergentes".

O ideário oficial do grupo encabeçado por Daniel Pipes preconiza a resolução pacífica de conflitos de âmbito regional. Não é esse, porém, o registo do operacional neocon, que, na sua página pessoal, destaca com pompa o título que lhe foi atribuído por The Wall Street Journal – "an authoritative commentator on the Middle East". Na verdade, Pipes sustenta que o conflito israelo-árabe não pode ser solucionado pelos canais diplomáticos. Em 2003, no decurso de uma conferência de cariz sionista em Washington, afirmou: "O que a guerra havia alcançado para Israel, a diplomacia desfez".

"Como é que se obtém uma mudança da vontade [palestiniana]? Isso é obtido com uma vitória israelita e uma derrota palestiniana. Os palestinianos precisam de ser derrotados, ainda mais do que Israel precisa de os derrotar".

A notoriedade da orientação belicista do Forum recrudesceu, em 2000, com a publicação do relatório Ending Syria’s Occupation of Lebanon: The US role?, que contou com o contributo dos esteios do Imperialismo Douglas Feith, Richard Perle e David Wurmser, bem como de Ziad Abdelnour, neoconservador de origem libanesa e fundador do US Comittee for a Free Lebanon. Nas páginas do documento lia-se que "o domínio sírio no Líbano está em oposição directa aos ideais americanos". E quanto ao emprego da máquina de guerra norte-americana na região, os autores não se acanhavam: "Os Estados Unidos entraram numa nova era de supremacia militar sem igual com uma diminuição apreciável das baixas no campo de batalha (...) Isto abre as portas a uma decisão semelhante [referência ao Vietname e à intervenção dos marines norte-americanos em Beirute] de agir pelas liberdades e o pluralismo ameaçados no Líbano. Mas esta oportunidade não pode esperar, pois enquanto as capacidades de armas de destruição em massa se alargam, os riscos de uma tal acção aumentam rapidamente".

Esta corrente ideológica, profundamente hawkish, não impediu o Presidente George W. Bush de nomear Daniel Pipes, no início de 2003, para a direcção do US Institute of Peace. O mesmo Daniel Pipes que, sobre a ocupação militar do Iraque, falou nestes termos: "As armas de destruição em massa nunca foram a razão básica para a guerra. Nem sequer a horrenda repressão no Iraque. Ou o perigo que Saddam representava para os seus vizinhos (...) A campanha no Iraque tem a ver com o cumprimento de promessas para com os Estados Unidos ou sofrer as consequências (...) Mantenham as vossas promessas ou desaparecem. É um precedente poderoso que os líderes dos Estados Unidos devem aproveitar".

Num artigo publicado esta quinta-feira na Front Page Magazine, Pipes debruça-se em tom de alarme sobre uma "arabização" global, com uma primeira escala na (Velha?) Europa.

"A coisa mais difícil de compreender, para os ocidentais, não é que esteja a decorrer uma guerra com o Islão militante, mas a natureza do derradeiro objectivo do inimigo. Esse objectivo é a aplicação global da Lei Islâmica (Shari’a). Em termos dos Estados Unidos, tenciona substituir a Constituição pelo Corão.
Esta aspiração é tão remota e rebuscada para muitos não-muçulmanos, que induz mais gargalhadas do que apreensão. Claro, era essa a mesma reacção na Europa e, agora, tornou-se geralmente aceite que, nas palavras de Bernard Lewis, a Europa será islâmica até ao fim do século".

quarta-feira, setembro 22, 2004

Soldados do Império - Thomas Donnelly

Há quatro anos, em Setembro de 2000, o conglomerado de intelectuais neoconservadores Project for the New American Century (PNAC) – um think tank presidido por William Kristol, filho de Irving Kristol, sumidade neocon - produzia um documento estratégico intitulado Rebuilding America’s Defenses - Strategies, Forces and Resources for a New Century (Reconstruir as Defesas da América: Estratégias, Forças e Recursos para um Novo Século).

Na matriz do trabalho, destinado nas vésperas das Presidenciais desse ano à entourage Bush-Cheney - Paul Wolfowitz, actual vice-secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, actual secretário da Defesa, Dick Cheney, actual vice-presidente, Lewis Libby, chefe de gabinete da Vice-Presidência, e o governador Jeb Bush, obreiro do milagre eleitoral da Florida -, subjazia o desígnio primordial do PNAC, designadamente consolidar o conceito da Pax Americana de alcance global; são três os princípios essenciais deste conceito – "A liderança da América é boa para a América e para o mundo; tal liderança requer força militar, energia diplomática e empenhamento nos princípios morais; são muito poucos, hoje, os líderes políticos [americanos] que defendem a liderança global [dos Estados Unidos]".

Sobre o Iraque, o documento do PNAC sublinhava que o ascendente militar sobre o Golfo Pérsico era um objectivo impreterível, muito para lá da real dimensão da ameaça corporizada pelo regime de Saddam Hussein.

"Com efeito, os Estados Unidos procuram há décadas desempenhar um papel mais permanente na segurança regional do Golfo. Ainda que o conflito não solucionado com o Iraque forneça a justificação imediata, a necessidade de uma substancial presença de forças americanas no Golfo transcende a questão do regime de Saddam Hussein".

Até ao cataclismo do 11 de Setembro – em bom rigor, até às derradeiras semanas antes do início da operação Liberdade Iraquiana -, dir-se-ia, tomando por premissa o desprezo dos media norte-americanos pelo labor do PNAC, que a Casa Branca não havia dedicado grande atenção ao blueprint, que, aliás, previa uma delonga na implementação das medidas nele sustentadas, "na ausência de algum acontecimento catastrófico e catalizador como um novo Pearl Harbor". O próprio Dick Cheney, em declarações à NBC (Dezembro de 2002), sustentava que os Estados Unidos não deviam comportar-se como "um poder imperialista, (...) avançando contra as capitais naquela parte do mundo [Golfo Pérsico] e derrubando governos". No entanto, Rebuilding America’s Defenses jazia a tempo inteiro nos tampos das secretárias da "falcoaria" da Administração Bush II.

Thomas Donnely, membro sénior do PNAC, é o autor principal do blueprint Rebulding America´s Defenses. Escritor e analista de questões militares, integra, também, o American Entreprise Institute e desempenhou, no gigante da indústria do armamento Lockheed Martin, o cargo de director de comunicações.

A prevalência dos propósitos norte-americanos no Iraque, considera Donnelly, "definirá o início de uma verdadeira nova ordem mundial". "Furtando a famosa frase de Dean Acheson, nós estamos presentes na criação. Aquilo que, exactamente, estamos a criar não sabemos", escreveu num texto para o American Enterprise Institute.

"O imperativo estratégico de patrulhar o perímetro da Pax Americana é transformar as Forças Armadas dos Estados Unidos, e aquelas poucas forças capazes e com vontade de permanecer ao nosso lado, na cavalaria de uma ordem internacional global e liberal. Tal como a cavalaria do Velho Oeste, o seu trabalho é em parte o de um guerreiro e em parte o de um polícia – ambos estão inteiramente dentro da tradição das Forças Armadas americanas", defende.

terça-feira, setembro 21, 2004

"Aplauso educado"

Na agenda da Casa Branca, os últimos dias de Setembro são dedicados à ONU. Os speech writers do Presidente afadigam-se a alinhavar duas ou três variantes do postulado land of the free, home of the brave e da ode à exportação do modelo norte-americano na boca dos canhões dos Bradley ou dos Abrams. George W. Bush, façanhudo e resoluto, garante à Assembleia Geral das Nações Unidas que, lá onde as bombas cirúrgicas operaram o milagre da liberdade, a "estabilidade" e a "democracia" continuam a disseminar-se sem quartel. Enquanto isso, lá onde as bombas cirúrgicas e o sacrifício de 1033 – a cifra é volátil - militares norte-americanos operaram o milagre da liberdade, automóveis grávidos de explosivos retalham iraquianos sem critério e bandos terroristas alimentados a ódio ideológico, político e religioso não se abstêm de fazer do Iraque um açougue medievo dos horrores.

O Conselho de Segurança das Nações Unidas esperneou, em Setembro de 2002, à menção dos intentos bélicos da Administração Bush para o Iraque. A 8 de Novembro oficializava o coma da ONU com a aprovação da Resolução 1441. Em 2003, pulverizado o Direito Internacional e anarquizadas as relações internacionais, o rancheiro texano apelava a uma contribuição mais substancial para o esforço missionário.

Esta terça-feira, quando George W. Bush concluir a reprodução do texto que algum monge neocon cozinhou, as representações dos 191 Estados com assento na Assembleia Geral da ONU vão saudá-lo com um "aplauso educado" – a expressão é de Dana Milbank, do Washington Post. E de "aplauso educado" em "aplauso educado", o mundo, unipolar, queda-se mais e mais subjugado pelo primado das armas; os Estados Unidos, de "aplauso educado" em "aplauso educado", perpetuam as vanguardas militares do Império no Golfo Pérsico – Iraque, Kuwait, Emirados e Arábia Saudita - e na Ásia Central – Afeganistão, Tajiquistão, Uzbequistão e Turquemenistão.

segunda-feira, setembro 20, 2004

Soldados do Império - Grover Norquist

O cérebro de Grover Norquist, anticomunista, conservador e neoliberal em proporções piréticas análogas, constitui, hoje, um eixo na mecânica ideológica do Partido Republicano. A influência que Norquist exerce na estratégia do GOP é de tal forma indelével, que - como assinalou Pablo Pardo nas páginas do suplemento Nueva Economía, do diário espanhol El Mundo – chegou a ser brindado pelo Wall Street Journal com o epíteto de "Lénine do Partido Republicano"; as suas "tábuas de Moisés" para a economia norte-americana estão diluídas no programa abençoado, em Nova Iorque, pela Convenção Nacional Republicana.

Natural do Massachussetts, Grover Norquist é presidente da Americans for Tax Reform (ATR), membro das direcções da National Riffle Association of America e da American Conservative Union. Trabalhou na Casa Branca com Ronald Reagan; nos anos 80, ocupou-se do financiamento das tropas da UNITA. Integra, actualmente, a camarilha de Karl Rove, responsável pelo rumo estratégico da candidatura Bush-Cheney às Presidenciais de Novembro.

Norquist é o autor de Rock the House, livro dedicado à análise das Legislativas de 1994. A influência do estratego ditou, então, a histórica derrota do Partido Democrático. Para o republicano Newt Gingrich, antigo speaker da Câmara dos Representantes, Grover é "a pessoa (...) mais inovadora, criativa, corajosa e líder empreendedor dos esforços anti-impostos e do activismo das raízes do conservadorismo na América. Ele fez verdadeiramente a diferença e mudou a História americana".

O ascendente de Norquist sobre a engrenagem política de Washington é particularmente notável no âmbito da ATR. O grupo criou um instrumento denominado Taxpayer Protection Pledge; todos os candidatos a cargos políticos, federais ou estaduais, são convidados a comprometerem-se, por escrito, a prosseguir uma linha de oposição ao aumento das cargas fiscais – o "juramento" abarca já o Presidente norte-americano, George W. Bush, 38 senadores, 211 membros da Câmara dos Representantes, oito governadores e 1279 legisladores estaduais.

Em entrevista ao Nueva Economía, publicada a 12 de Setembro, Norquist sustenta que, dada a distribuição de forças no ramo legislativo, uma eventual derrota de Bush terá um efeito praticamente inócuo na preponderância republicana. "Nós controlaremos a Câmara dos Representantes e provavelmente o Senado. Se Kerry ganhar, não vai poder fazer nada que nós não queiramos. Não lhe vamos dar dinheiro para gastar. Não poderá subir os impostos. Não poderá roubar-nos as armas de fogo. Mesmo que percamos a Casa Branca, não vai ser o fim do mundo".

Se George W. Bush arrebatar um segundo mandato, profetiza Grover Norquist, "o Partido Democrático estará acabado para sempre". "Se tivermos o controlo do (ramo) legislativo e do (poder) executivo, reforçaremos o nosso controlo do poder judicial para dirigi-lo contra os democratas. Levaremos a cabo uma modesta limitação da capacidade das pessoas para iniciarem processos legais contra as empresas (...) Aceleraremos o declínio dos sindicatos. Cortaremos o financiamento a grupos de funcionários públicos, como os professores, que são uma das grandes fontes de votos dos democratas. E começaremos a mover o Estado de Previdência para um sistema privado, nas pensões e na Saúde".

No término da entrevista, Norquist sintetiza: "Não quero acabar com o Estado. Só quero torná-lo tão pequeno, que poderei afogá-lo na banheira".

sexta-feira, setembro 17, 2004

Humanidade

A Índia é a maior democracia do mundo; as estruturas políticas do país repetem-no numa quase ladainha. Na Índia, a arrumação social por castas foi oficialmente suprimida há 55 anos. Os "párias" continuam a percorrer as ruas como espectros, sem direitos ou dignidade. Recebem dos poderes locais uma rupia por dia, cerca de cinco extintos escudos, para despejar e limpar latrinas à unha – trabalho prosaicamente baptizado como manual scavenging.

Fonte: Francesco Maringiò – La Svolta di Mumbai (L’Ernesto, Janeiro de 2004).

quarta-feira, setembro 15, 2004

Auditório

O académico não gargalha. Sorri pelo canto da boca, os lábios mal descerrados e o sobrolho franzido na base de uma testa sulcada de rugas. O académico não estende a mão. Faz-se notar percorrendo o lastro obtuso das cadeiras com o sobrolho franzido e curial cepticismo. O académico não se empolga. Sacode com ligeireza os glúteos e desenha um "não" com dois golpes do crânio lustroso, o sobrolho franzido massajado pelo indicador. O académico não tolera a ignorância. Apressa-se a explicar, o sobrolho franzido a chispar faúlhas reprovadoras, quem é quem na mesa dos conferencistas. O académico não ensina. Abre as portadas do saber e brame, de si para si, felix qui potuit rerum cognoscere causas. O académico franze o sobrolho um nada mais à menção de uma página espúria. O académico lê Kristol entre os ladrilhos da casa de banho e decide vomitar até ao fim da sua existência que o multiculturalismo é uma tragédia. Talvez por isso, observe sobranceiro o ministro da Defesa da Guiné-Bissau e ironize, sorrindo pelo canto da boca, o sobrolho franzido na base de uma testa sulcada de rugas: Isto se a Guiné-Bissau tiver defesa possível. À sua volta, cantos de bocas entreabrem sorrisos.

terça-feira, setembro 14, 2004

Gente boa

Há muito deixei de acreditar em políticos. Todos, numa volta de 360 graus. Desde os falsos cristãos cuja fé começa quando entram na Igreja e é de novo posta em demolho quando passam a mão pela água benta à saída. À política social que não vai ao Lux para relaxar mas que é antes relaxada. À esquerda que não sabe revoltar-se e aconchega os seus como ovelhas e os transforma em rebanho. Aos sindicatos que já não queimam um pneu há décadas.

Este manifesto de descrença acrimoniosa brotou da alma castigada de um estimado amigo. Trata-se de um niilismo de desmontagem complexa.

Quanto à esquerda – refiro-me àquela em que milito -, aflige-me ser forçado a dar-lhe alguma razão. Ainda que, no nosso caso, ser-se ovelha empenhada e lãzuda não redunde, por si só, numa regressão existencial. O problema reside, num primeiro plano, nos nossos pastos doutrinários; entre as paredes da Soeiro Pereira Gomes ou do Centro de Trabalho Vitória, são escassos aqueles que os questionam com sustentação e honestidade. Logo abaixo situa-se a surdez generalizada, que do trabalho persistente dos comunistas portugueses nada retém.

Pode argumentar-se que o Partido não tem sabido veicular a sua mensagem. A espaços, não o soube fazer. Isso não chega, porém, para pintar o quadro do país votante, que nutre, de escrutínio em escrutínio, as ignaras criaturas que da gente boa herdaram pouco. A verdade é que a revolta dá muito trabalho, demasiado. E quantos, de entre esta mole amorfa que compomos, estarão dispostos a trocar o conforto de um electrodoméstico pago a prestações - ou da féria anestésica, creditada ao fim do mês na conta à ordem - pelo investimento numa alternativa de resultados incertos?

segunda-feira, setembro 13, 2004

Cézanne e criptografia

Todo ele ressumbrava o arroubamento de quem acabara de obter os favores de um padroeiro. Salivava de contentamento e abria muito os olhos, na esperança de traduzir em lágrimas gratas o êxtase de uma autêntica epifania. Com as mãos trémulas, apertava e desapertava o casaco, preocupado com a compostura que o momento impunha. Vénias, uma após outra à passagem de um cortejo de cumprimentos e murmúrios de felicitações. Das lágrimas gratas nem sinal. Viria a produzi-las mais tarde, já pouco gratas, quando percebeu o alcance das suas novas responsabilidades. Tudo o que lhe pediam era que se movesse de cócoras de gabinete em gabinete.

domingo, setembro 12, 2004

Conversa matutina

- Ouve lá: essas historietas que andas a pôr no blog são verdadeiras?
- Não sei se o teu conceito de verdade se assemelha ao meu.
- O que queres dizer com isso?
- Há a verdade factual e a verdade temperada.
- E qual delas preferes?
- A segunda, mas com pouco sal.

sábado, setembro 11, 2004

Um ano

O texto que se segue nasceu em duas noites de um quase Outono. É filho dilecto de punhados desirmanados de notas sofregamente apontadas num pequeno bloco. Outros houve que não sobreviveram ao censor que habita cá dentro, alojado algures. Este ficou. Inacabado. Talvez por medo. Medo de arquivar de vez os oito dias que mudaram o curso de águas turvas em que vogava. Medo de desenhar o ponto final.

As franjas do Cairo são quentes. O Aeroporto Internacional do Cairo é quente; e húmido. A roupa é fardo pesado sobre corpo abatido. Ao cabo de cinco horas pouco reconfortantes a bordo de um colossal 747, abordámos o alcatrão do Aeroporto, lestos e sorridentes, apesar do bafo infernal da noite.

As franjas do Cairo têm cheiro. O Aeroporto Internacional do Cairo tem um cheiro que não podemos identificar. Porque é novo. Porque a virgindade dos pulmões é violada de uma forma paulatina. Invade-nos, o aroma. É um misto de ténue putrefacção e de raras e exóticas especiarias. É um cheiro de morte lenta, porém aprazível. Uma eutanásia de dióxido de carbono; exóticas especiarias, as mesmas que viríamos a buscar numa rua febril de Assuão, pórtico para a vertigem de beleza do Nilo.

Ei-la, a água da vida que se encontra no céu; ei-la, a água da vida que está na terra. O céu lampeja por ti, a terra estremece por ti quando nasce o deus. As duas colinas fendem-se, o deus manifesta-se, o deus espalha-se no seu corpo...

Os egípcios professam o capricho do volante, elevando a arte de conduzir a um estádio superior. Mas fazem-no com a calma do monge. Escassos cinco minutos medeiam entre o Aeroporto Internacional do Cairo e o hotel "Mövenpick", onde lençóis lavados aguardam o corpo do viajante recém-chegado. Porém, o timoneiro do autocarro não se compraz com cinco minutos. Curvas e contracurvas, cruzamentos e falsas partidas, o aportar do veículo em hotel errado, as inversões de marcha e a marcha à ré que se impõe em quase todos os trajectos, tudo desemboca na expansão do percurso. É o primeiro contacto com o conceito do "minuto egípcio" – cinco minutos convertidos em vinte.

Em vinte minutos cairotas, os sentidos absorvem estímulos até ao limite do esgotamento. Assim é o Cairo da primeira noite - os táxis negros de chapa castigada, Peugeots e Fiats de quilometragem vasta e matrículas ininteligíveis; as carrinhas de nove lugares repletas, o condutor de pé no tejadilho a acondicionar bagagens; a noiva resplandecente e de olhar apreensivo no interior de um táxi; os efectivos policiais de farda branca, que pontificam nos postos de controlo com a atenção de um mamífero que hiberna; e o arábico de entoações guturais, a lembrar-nos do quão longe estamos de casa. E felizes...

No interior do hotel, a temperatura cai abruptamente. Por entre um Inverno de plástico cozinhado pelo ar condicionado e uma orgia de mármores, dourados e torneados, encaminhamo-nos para o balcão do Banco Nacional do Egipto. É tempo de trocar o euro pela libra egípcia. As notas de cinco, vinte e cinquenta libras são empilhadas em maços fartos. Depressa percebemos que, com 300 euros, ascendemos à nata da sociedade egípcia. Faraónicos, abandonamos o banco munidos de envelopes recheados de notas.

O quarto é um bálsamo para as chagas da alma, abertas por uma hora e meia de turbulência acima do Mediterrâneo. O banho acalma a pele febril e a cama afaga a ossatura. Mas não há sono. A conversa assenhoreia-se da noite até ao dealbar de um Cairo ainda periférico. A televisão debita sinais de surrealismo – José Rodrigues dos Santos reproduz notícias na RTP Internacional, a Cairo TV difunde uma pirâmide estática, à falta de uma mira técnica. O teletexto egípcio avisa: Assuão reserva-nos temperaturas superiores a 45 graus. Estamos a poucas horas de nova descolagem.

Decididamente, a aventura do voo doméstico não pacifica o voador renitente. Imbuídos de uma excitação sobrenatural - que nos fez dispensar o sono - somos sujeitos a um check-in apressado e confuso, por entre um arábico profuso e sonoro. No Egipto, o último vislumbre da bagagem, antes do embarque, assume sempre os contornos da derradeira despedida. Os receios revelaram-se, no entanto, infundados, por competência egípcia ou pela mais depurada das sortes...

De novo o cheiro que ainda não podemos identificar. De janelas escancaradas, o autocarro da "Egyptair" absorve o aroma e leva-nos ao aparelho com destino a Sul – um "Airbus" de fuselagem antiga e rebites com uma aparência pouco fiável. A perspectiva de uma escala em Luxor, antes da chegada ao calor de Assuão, não é animadora. Ainda assim, a curiosidade de recém-nascido sobrepõe-se aos temores.

A descolagem fez justiça à aparência duvidosa do avião. Toda a estrutura do aparelho parecia acometida de um delirium tremens; e os efeitos visuais contribuíam para a hipertensão. Com a aceleração dos motores, as orlas das escotilhas começaram a expelir uma essência vaporosa, fria e com um aspecto nada normal. Quando o avião ergueu o nariz, os tremores pareciam anunciar a desintegração a breve trecho. A observação das asas deixou-nos na fronteira de uma síncope. Dir-se-ia que a pesada ave subia com o bater das suas asas colossais. Porém, acima do nevoeiro cairota, o pterodáctilo estabilizou.

O voo entre o Cairo e Luxor dura cerca de uma hora. A visão aérea do deserto egípcio desarma-nos. É um oceano de areia. Os primeiros vislumbres das pedras milenares de Luxor, resistindo ao labor dos séculos entre uma luxúria de palmeiras, encetam o longo processo de redução do ego. Ao cabo das primeiras visitas a templos, estaremos rendidos à magnificência e cônscios da nossa real importância na esfera terrestre.

A escala é curta. Menos de meia hora após a aterragem em Luxor, o "Airbus" faz-se à pista. Repetem-se os tremores, o ruído ensurdecedor das turbinas, a aflição mal disfarçada nos olhares que trocamos, as preces que as almas entoam - sem excepção, do ateu ao crente fervoroso. Em vinte minutos, estaremos no Aeroporto de Assuão, aguardando o desfile das malas na passadeira.

Em Assuão, o "minuto egípcio" volta a impor o seu ritmo. Ante a inexistência de um veículo que nos transporte ao navio "Queen of Sheeba", fundeado no cais da cidade, vemo-nos na contingência de aguardar, durante minutos que parecem horas, uma solução debaixo do astro-rei, que, a meio da manhã, se apresenta capaz de cozinhar um ovo depositado no chão. Mas o nosso fado mostra-se benfazejo. À falta de um autocarro, toca-nos um táxi Peugeot, equipado com um tejadilho férreo e com um tablier alcatifado. No espelho retrovisor, uma parafernália de amuletos e latões vela pela segurança do viajante. Inshallah!...

As elevações de areia e a pedra escura emolduram a estrada. A paisagem e o vento quente que açoita os rostos não são familiares. Mas são belos. O taxista é uma personagem de livro. Tácito, conduz a carrinha Peugeot debruçado sobre o volante, exibindo a corcunda de incontáveis quilómetros palmilhados naquela posição. Já às portas de Assuão, abre a boca para indicar a primeira aguarela do Nilo. É o templo de Philae que se anuncia do lado direito. Sorrimos como crianças. Estamos no Egipto...

O "Queen of Sheeba", navio da frota "Queen Nabila", é um monumento à mestria do kitsch egípcio. Os matizes esverdeados das paredes da recepção remetem-nos para uma imortalidade de alfaces viçosas. Assomamo-nos a um balcão de alabastro e recolhemos as chaves dos quartos – 3006 e 3007; pares apartados pelo critério do género.

O renascimento das almas induz uma sofreguidão de novidade. E partimos, os quatro, à descoberta de Assuão, longe de adivinhar a iminência do contacto com o Egipto profundo, de construção descarnada e ruas sem pavimento. O Sol fustiga as testas e depressa percebemos que o passeio resultará penoso sem assistência animal.

Perfilados na avenida marginal, sobranceira aos navios de cruzeiro, os coches aguardam a clientela. Discutem-se os preços, acotovelam-se os senhores das rédeas, soam as buzinas dos táxis que passam sem poupar o acelerador. A libra é moeda que ainda não dominamos. Aparece Ali, uma criança de tez crestada às portas da puberdade. O cavalo de Ali é a besta de carga mais bonita de Assuão. De ossos em riste e pêlo gasto à força de impiedosas chibatadas, o cavalo terá de arquejar por entre egípcios hipnotizados pelos ombros desnudos das nossas companheiras de travessia. Ali conduz-nos à face mais pobre de Assuão. Mas não o faz sem antes exigir que uma das senhoras o acompanhe aos comandos da carroça. Debalde...

Na estrada, os coches parecem gozar de uma inexplicável prioridade. Ali, senhor de uma destreza e de um denodo assinaláveis, corta o caminho dos automóveis, progredindo avenida acima como Ramsés II entre as tropas hititas.

Em frente! Em frente! Estou contigo, meu pai. A minha mão está sobre ti e valho mais que cem mil homens, eu, o senhor da vitória...

Dobrada a avenida marginal, ergue-se uma Assuão de traços agressivos. Invade-nos o temor do réu ante o magistrado. À excepção de uma majestosa mesquita, rodeada de cuidados recortes de relva, é-nos servida a frente indigente da cidade.

Homens de cabeça oculta por lenços manchados de suor observam os trajes coloridos que envergamos. Grupos de egípcios mais ou menos jovens rasgam sorrisos matreiros à nossa passagem. Ali aconselha o recolher das pernas luzidias da Paula e da Patrícia. À medida que a subida se torna mais íngreme, o cavalo ameaça solicitar a reforma antecipada. Mas Ali continua a brandir o chicote com uma impiedade faraónica; e insiste em negociar um acréscimo de uma hora ao horário previamente acordado – uns dietéticos e sensatos 30 minutos. Debalde...

Esgotada a meia-hora protocolar, começamos a exigir o regresso ao "Queen of Sheeba". O exercício de diplomacia musculada complica-se. A dada altura, Ali encontra um "cúmplice" com trejeitos de Ali Baba. Sem aviso prévio, o amigo do cocheiro, visivelmente mais velho, assume os comandos do veículo. De novo o temor, mas desta feita sem reverência...

O "cúmplice" de Ali pergunta se queremos adquirir uma dose de marijuana. Debalde...

Concluído o complexo processo de negociações e apartado o incómodo amigo de Ali, logramos regressar ao cais. Sagaz, Ali sorve as nossas libras sem precisar de agitar argumentos de peso. O Paulo troca um isqueiro pelos fósforos do miúdo adulto. Dezenas de libras pelo trajecto, cinco libras para o cavalo, que roçou o óbito nas subidas mais difíceis. À noite, a caminho do mercado de Assuão, um outro cocheiro rir-se-ia da nossa inocência. Mas que importava isso? Conhecêramos a verdade a reboque do cavalo mais bonito.

Nota: a primeira citação foi furtada aos Textos das Pirâmides; a segunda é um excerto da prece a Amon proferida por Ramsés II antes de carregar sobre as fileiras hititas na batalha de Kadesh, em 1294 a.C.

sexta-feira, setembro 10, 2004

Como Deus quer

A última das lágrimas foi espremida com esforço evidente a meio de uma novena. Não se dera o caso de os regatos internos, pertinentes num luto ainda escarlate da ablação, terem evaporado ao ar da paz readquirida. Os moinhos de água, obrigados a rotações contínuas entre as córneas e as pestanas, capitularam sem esperança de regressão. Se à superfície a pele já se entregava a texturas quebradiças, distantes da monção, por dentro, trabalhando na pleura e no único pulmão que fincara pés contra a greve, o bisturi funéreo ainda cortava a torto e a direito.

A viúva do primeiro esquerdo cobria-se de negros tecidos em malha triste. Arrastava os sapatos de sola plana, expandidos por joanetes, numa leveza de saco vazio soprado pelo vento da manhã. Fazia compras para dois, como se o sussurro repetido de um estribilho de tabuada lhe garantisse outra voz que não a sua, do corredor à cozinha, da panela de canja à cómoda com uma fotografia patrulhada por um santo de menino ao colo, da carícia demorada no estanho da moldura à poltrona de veludo com cheiro a saudade.

- Quatro carcaças e um bolo de arroz para o meu homem, que gosta tanto.

Da janela de um taxi negro tecido em malha triste, via as pedras do muro da Matinha a retroceder, com pressa de fugir às placas cinzeladas por genros, filhos e netos e aos jazigos recheados de rendas e bafio. Alquebrava-se a cada passo ruidoso no mar de gravilha, preenchido por uma armada de campas, regadores sujos e Cristos pregados em madeiros deitados, o peito ao sol e à chuva.

Dois vezes um, dois, se à viúva do primeiro esquerdo somássemos um cozinheiro de casa de pasto a desenhar um arco com as pernas num caminhar pesado. Um saco de plástico inchado de limões que desapareciam do rés-do-chão ao terceiro andar, oferecidos com a vénia de um corpo redondo; a variante de uma vénia que o curador do limoeiro do quintal, alquimista da dobrada e dos perceves, parecia alombar para onde quer que as gâmbias vergadas o levassem.

- Pois cá vamos como Deus quer...

Quis então o proprietário do altar da paróquia, capataz irascível e ubíquo de dois acólitos e um sacerdote a cabecear de sono sobre o cálice, que o dois do estribilho sussurrado à porta da padaria fosse reduzido a um, sem que as preces à cabeceira de uma cama de moribundo e a promessa de um pâncreas em cera pudessem aplacar a tirania cimeira.

A viúva do primeiro esquerdo espremeu a última das lágrimas a meio de uma novena. Percebeu, não porque o cozinheiro emoldurado sobre a cómoda lho tivesse explicado antes da vénia derradeira, que lhe bastaria chorar por dentro. E espreitar a calçada por uma fenda do cortinado, imaginando um caminhar pesado ao fundo da rua.

quinta-feira, setembro 09, 2004

Protesto

Ao cabo de horas infindas, plenas de exasperação e pontuadas por pancadas iradas no tampo da secretária, lá entenderam permitir que o escriba de serviço bombeasse combustível para O Sedentário. Não se faz. Sobretudo quando a secura das pálpebras depende de um par de parágrafos.

terça-feira, setembro 07, 2004

Portão negro do número 10

A nuvem de serradura pairava pelos rodapés da marcenaria com a mesma densidade das lascas e aparas que cobriam o chão esfolado, o cimento a multiplicar crateras à medida que os martelos e os esquadros pingavam das mesas dos carpinteiros.

Mestre Padrão passava a grosa por um caixilho como se à flor da faia habitasse o quadril lacado da esposa do patrão, estoutro um soberano decorativo.

Na banca vizinha, um anão, mago na ciência do torneado, acocorava-se sobre o tampo, valsando à volta de um balaústre primoroso. Em breve deporia a folha de lixa, dando pertinente repouso aos calos nas cabeças dos dedos e desejado foral à fome de palco, carestia penosa que o atormentava desde os idos das carteiras da escola primária – como o atormentavam, do outro lado da D. Pedro IV, os ademanes prazenteiros do proprietário da frutaria quando anestesiava coelhos à chapada e se punha a descascar o láparo com um ar topetudo.

Constou que os únicos holofotes que o anão logrou chamar a si foram as lâmpadas apoucadoras do salão nobre dos Bombeiros Voluntários, numa ocasião em que se agitou, ao intervalo de um sarau de crianças barrigudas condenadas à cambalhota, na interpretação mímica de Leónidas nas Termópilas. Saiu cabisbaixo e vaiado pelos moinantes das barracas da praça, de risca ao lado e poupa cristalizada pelas águas fétidas do Jamor. Quando, melancólico, tornou a descer a rampa rumo à nuvem de serradura, que entretanto levitara aos aranhiços das sancas, foi recebido com uma apoteótica salva de palmas e transportado em ombros até aos colunelos virgens de um toucador em gestação. Soluçou discretamente como os láparos retalhados do outro lado da rua.

- Deixa lá isso, que essas mãozinhas de amostra foram feitas para o formão! – consolava-o o patrão por detrás de umas lentes espessas e embaciadas de exsudação permanente.

O patrão, que havia anos delegara os livros na esposa, peregrinava pelas mesas e tripeças a velar pelo moral dos homens, atascados em lascas e aparas. Na saleta dos betumes e do quadro de um Cristo enrubescido, mestre Padrão aproveitava o périplo e passava os dedos de grosa pelo quadril lacado da esposa do patrão.

Ninguém deu conta, na véspera de um Dez de Junho, da marcha lesta do anão dos torneados na senda da serra eléctrica, onde acabou por ceifar os antebraços sem uma só chapada que o anestesiasse como ao láparo em carne viva e de olhos vítreos na arca congeladora do terceiro direito.

segunda-feira, setembro 06, 2004

A um amigo

«Camarada Alexandre: contaram-me hoje um crime horrendo de que foste vítima, numa estrada deserta. Que morreste às mãos sinistras da polícia fascista – disseram. E eu não acreditei.

Morreres, tu, que andas connosco pelos trilhos da clandestinidade; que és o orgulho do Pai e modelo dos militantes! Tu – guia da juventude eterna -, que rias da polícia e desdenhavas da morte!

Lembras-te ainda daquela noite, na mina?... Falavas – e parecia que o mundo cabia ali, nas nossas mãos. Acendias estrelas no tecto escuro do buraco; a tua rouca voz era uma sinfonia (...)»

Excerto da Última Carta, de Soeiro Pereira Gomes.

Nota I: remeto-te este bocado de prosa para que não capitules "às mãos sinistras" de quem quer que seja – especulo, bem sei.
Nota II: era Alfredo Dinis quem, na clandestinidade, adoptava o pseudónimo Alexandre.

domingo, setembro 05, 2004

Primeiro direito

A melena azeviche do avozinho do primeiro direito percorreu o fadário geriátrico, definitivo como os demais, a passo indolente e, murmurava-se ao balcão da retrosaria, aritmeticamente premeditado. À excepção de uma aguardente de mel em doses diárias, crepusculares e pias, para as quais os lábios se projectavam ao jeito dos beijos de tias solteiras e bigodudas, não se conheciam àquela canalização esofágica outros preparados de alambique ou casca de carvalho. Foi durante o recobro da escarlatina, perante a qual o avozinho se achou roubado aos ensaios do coral do centro de dia, que o pêlo jovial, de um negro imemorial como o do melro na varanda do terceiro andar, se converteu à alvura do ocaso existencial. Não protestou.

No centro de saúde, adoecia-se de vez à espera da última dentada do médico de família numa merenda da pastelaria Quadriga. O avozinho também esperou. Quando os braços gordos da filha, por fim, o ampararam à porta do armazém de enfermos, já as Streptococcus pyogenes tinham tomado de assalto, da testa aos dedos dos pés, o corpo engelhado do avozinho do primeiro direito. Daí a menos de uma semana, portanto, genro, sobrinhas e netas domavam pouco ou nada no estômago e comparavam pintas e rubores febris. A culpa era do avozinho e todos protestavam. Ele não.

A retrosaria encerrava à hora do Tempo de Antena e com ela o boletim clínico do dispensário do primeiro direito. Sabia-se, até ver, sempre à sombra profiláctica do murmurejo, que o avozinho, senil, se esquecia por vezes dos modos domiciliares e cuspia para as mantas de fitas da cozinha, julgando cumprir a costumeira purga dos brônquios para a calçada do parque, perto do quiosque do goês. Eis a raiz do surto infeccioso, que atalhara caminho na genealogia do primeiro direito com uma arremetida sem quartel à garganta de uma neta então ignara quanto aos segredos da locomoção erecta.

Certa noite, reuniu-se o conventículo judicioso em redor da mesinha das revistas. Os pareceres da retrosaria eram cristalinos; impunha-se lavrar o acórdão do avozinho. Findos três minutos e trinta e quatro segundos, isto a fazer fé no que se alvitrou ao balcão da retrosaria, envolveram-no no quarto com vista para os caniços de Carenque e anunciaram-lhe que apontaria ao lar nos dias subsequentes. O avozinho do primeiro direito ergueu o dedo indicador como um apóstolo em serviço, levantou o torso da cama como quem se estriba para protestar, despegou os lábios sumidos e tombou morto de febre. Murmurou-se que o azeviche lhe recobriu a melena.

sábado, setembro 04, 2004

A razão

Ouviu-me sem mugir por um instante. Queixei-me da primeira à última sílaba de uma composição de aborrecimentos marejada de lágrimas medrosas, maior do que a centopeia de vagões a estourar de ração – dessa mesma que o imagino a mastigar naquele movimento trapalhão de uma boca de rês - e a polir velozmente a linha férrea. Mesmo assim, ouviu-me sem mugir por um instante. Restringiu as suas reacções a umas pálpebras ora murchas ora pesarosas, num manifesto de tédio ou de sonolência, não houve ocasião de o perceber. De forma que me queixei da primeira à última sílaba de uma composição de aborrecimentos. Não me sai nada, não me apetece, não sei o que faça aos caderninhos imaculados. E ouviu-me sem mugir por um instante. Do primeiro ao último soluço queixoso. Já um pouco tardiamente percebeu que o último vagão da centopeia passara por ele. Arregalou por uma vez as pálpebras e perguntou: E se te calasses e escrevesses?

sexta-feira, setembro 03, 2004

À direita do número onze

No parapeito da janela havia o sulco rasgado em mármore a despedir-se do branco, não das frágeis artérias que se tresmalhavam sobre a pedra com prudente desconfiança do próximo. O pequeno canal fora talhado para escoar precipitações abruptas; aconteceu, porém, que um fado desditoso quis que moscas moribundas e poeiras várias ali fossem encontrar um repouso de finado, sedimentando-se em sucessivos tegumentos estanques.

Dois terços de uma cara de candidato velavam, em papel desbotado e castigado de bolhas, pela metade inferior da fachada do prédio. Imitando as congéneres geminadas, a parede acinzentava-se de raiz e do catarro dos tubos de escape, que entre o nascente e o poente, de um extremo ao outro da D. Pedro IV, ou seja do mundo, tossiam nebulosidades negras.

O candidato sorria sem gota de saúde e pedia o voto num vocábulo solitário. Vota!, sintetizava, indiferente, ano sobre ano, ao escrutínio aziago das cruzes desenhadas em papeletas dobradas a dois tempos. Acto contínuo, perto do cartaz estropiado por dedos em pinça, letras borradas com mão obesa bradavam a vermelho-Barca Velha pelo combate ao verdugo reaccionário.

Mastigada a última sílaba, ouvia-se o passo curto de um par de sapatinhos pretos de verniz-espelho. Estalavam calçada fora a emular pistolas de fulminante, afivelados sobre meias rendadas como os naperons nos braços das poltronas. A filha da vizinha, a dois números do onze de latão, estudava no reflexo da montra da padaria, entre pães de leite e carcaças da véspera, a simetria dos caracóis ruivos que lhe pingavam sobre o acervo de sardas nas bochechas.

- Olá pequena! – apressava-se a bradar a padeira embrulhada numa bata branca de médico de família, entremeando a interpelação em sorrisos cristalizados. A meio do aprisionamento de carcaças no saco de pano da Dona Glória do segundo andar, Júlia padeira acudia com a ponta das unhas a um prurido incurável no baixo ventre.

- Quantas quer? – inquiria a meio da operação redentora. Dez papos secos bem cozidos, e o telefone preto com bocal protuberante, assente numa prateleira esmaltada, dava gritinhos constipados a solicitar Júlia padeira. Daí a nada, o furgão da Panificação Reunida, grávido de cestas de carcaças e sacos de plástico com pães de forma, trepava o lancil com aparato. Um olá pequena após outro e Júlia padeira não lograva já detectar mais do que a ponta apressada de uma saia de fazenda axadrezada e os calcanhares de um par de sapatinhos pretos de verniz-espelho.

A vizinha regava, por essa hora, os brincos de princesa na marquise. Sem se deter com salpicos temperados de terra que lhe choviam nas chinelas de pano, trocava as pétalas roxas pela bainha das calças de bombazina, ou pelo pesponto definitivo num cós cansado. Voltava-se no sentido do pedal da máquina de costurar e um Cristo que trazia ao peito, as mãos e os pés cravados não no madeiro mas em prata, refulgia banhado por tangos de luz e sombra provenientes das nespereiras e dos pessegueiros do quintal. Se sentia o passo curto de um par de sapatinhos pretos de verniz-espelho, postergava os labores domésticos sem as minudências da consciência proletária e persignava-se com um grato e temente revirar de olhos na direcção do estuque sujo do tecto; alucinada de fé, cuidava ver descerrar-se uma clarabóia forrada a nuvens afofadas por arcanjos e um octogenário de barbas grisalhas e voz grave, que a ressarcia das notas atiradas ao cestinho eucarístico com o regresso em segurança da filha.

O fruto primeiro do ventre, macho jovem, encerrava-se no quartinho dos livros de Camilo, dos carros de linhas e da tábua de engomar. Sentado sob a vigília de um tabuleiro de xadrez esculpido em poliestereno com uma faca corticeira – no centro da refrega, suspensas em fitas com as cores da República, pendiam medalhinhas de saraus de patinagem artística e torneios sonolentos do Grupo Desportivo -, ensaiava o mesmo semblante cismático diante da Crítica da Razão Pura e da obra de entremeio, um baralho de cartas com asiáticas em pêlo no verso dos naipes vermelhos. Economizava na oralidade o que lhe sobejava em ideias peregrinas. E quando se decidia a articular uma frase, emitia considerações de tal jaez metafísico que a vizinha, sua religiosa mãe, não encontrava outro expediente que não a administração de uma lambada cirúrgica no cocuruto coberto de cabelo crespo cor da ferrugem; de imediato postulava ao octogenário barbudo, que ainda voejava no estuque da cozinha, por uma resposta aos porquês de tão singular ensimesmamento.

Às portas das vinte, a trindade reunia-se à mesa com diferentes apetites e consanguíneas estenoses do espírito. A panela, colocada sobre uma rodela de vime ao centro do tampo de pinho-mel, ressumava as transpirações de um guisado de restos mendigados no rés-do-chão oposto e de abóbora que imitava batatas. A filha da vizinha expandia o pescoço para as paredes intestinas da panela a ver se lobrigava o sexteto de ervilhas entre ossadas e molho. Havia água da companhia, ordenhada de uma torneira em contínuo choro miudinho, e leite do dia apontado no caderno de fiados da leitaria – odores de vacaria libertavam-se na fronteira dos Quatro Caminhos.

A vizinha evocava o marido, recolhido havia anos aos cetins almofadados de uma caixa enterrada ao cimo da Matinha. O fruto primeiro do ventre, cismático, entregava-se a minuciosos tragos de leite despejado numa caneca de estanho com o fundo envidraçado. A filha da vizinha terçava os sapatinhos pretos de verniz-espelho enquanto olhava de través, gulosa, para o prato do irmão, hierarquicamente entulhado. Os talheres retiniam na porcelana até ao estertor do sustento. Trocava-se o silêncio e o desconforto de dissidências por concretizar, jamais gestos de afecto e outras interjeições de evitar na presença do octogenário de barbas grisalhas.

Hoje, subtraídos os dois terços de uma cara de candidato e o apelo ao combate a vermelho-Barca Velha – não os tubos de escape que tossem, não o sepulcro das moscas -, as assoalhadas à direita do número onze estão vazias. Ou não, se entendermos que uma velhinha solitária e enferma de tudo o que os catálogos prevêem é presença suficiente para vedar as horas que gotejam para o esquife.