O Sedentário

sexta-feira, julho 29, 2005

sete horas e quarenta e três minutos


Tem graça. Palavra que tem graça: solevantar assim os olhos sepultados em pregas de pelanca castigada e descobrir um quasar na fivela do teu cinto, ou nos caprichos de filigrana que transportas nos lóbulos; hoje. Ontem, por esta hora – a biografia de Zósimas pela mão de Alexei Fiodorovitch Karamazov a acordar-me no desconforto geométrico de um pequeno muro de betão, na companhia de um salgueiro doente de diesel e melancolia -, assevero-te que vi cachos de cerejas nas cornucópias das tuas orelhas; e no regresso às páginas sopradas para trás e para diante por um vento de bairro triste, Marcelo, o primogénito, zombava da Quaresma e do jejum - «Deus não existe» -, ao passo que o teu umbigo destapado desenhava hipérboles de leste a ocidente na esquadria do passeio, zombando, a seu tempo, da minha fome.
- Bom dia – dizes-me hoje num sorriso malandro, como se soubesses que prefiro as cerejas aos corpos celestes.

sexta-feira, julho 22, 2005

sete horas


Alfragide é um bosque de poliedros de alvenaria, postigos de alumínio escondidos por lâminas de estores emporcalhados que ressumam sono e lassidão; é uma quinquagenária de mamilos enturgescidos e cabelos estiolados a sacudir – um anelar e um polegar disparam berlindes quiméricos - ramelas e restos de sobrancelhas para um caixilho da marquise, dois cães descarnados que fenecem aos poucos num labirinto de entulho em tons pastel, rilhando fósseis de entrecosto em sacos de lixo por entre moscas e cardos clandestinos, sobre as varetas quebradiças de um guarda-chuva de Outono e uma folha de obituário amarela de velhice, por vezes debaixo de escombros de andaimes e restos de salada. Às quintas-feiras é uma nuvem de Julho: faz do Sol um prego de taberna untado de uma mostarda fulva que ilumina canteiros e contentores de reciclagem. É um lancil em desaprumo e sombras de urina no portão de uma escola, um eco de noticiário num transístor escorado por um elástico; é um velho a naufragar de carestia em calças de fazenda, os lábios delgados e escaldadiços a aproximarem-se da amurada de uma chávena de café.
- Bom dia. O senhor veio para cá há pouco tempo… - articula dentre as gengivas quase nuas, os olhos pousados no vermelho de uma cereja cristalizada sobre um cone de chocolate.

quarta-feira, julho 13, 2005

hiato

A baiuca permanecerá queda e muda durante os próximos oito dias - para descanso da gerência.

segunda-feira, julho 11, 2005

dez anos


Em 1993, as Nações Unidas garantiam que Srebrenica, um enclave muçulmano sob a protecção de um contingente de 370 capacetes azuis holandeses – pobremente armados e manietados pela "filosofia de neutralidade" (expressão de Mark Malloch Brown, alto funcionário da ONU) do mandato de manutenção de paz -, era uma "zona de segurança".

O enclave seria tomado pelas forças militares sérvias-bósnias, comandadas pelo general Ratko Mladic, a 11 de Julho de 1995. Quando os operacionais sérvios-bósnios começaram a apartar os homens de Srebrenica com idades entre os 12 e os 77 anos, os soldados holandeses – 30 militares da ONU haviam sido sequestrados e ameaçados de morte com o objectivo de dissuadir qualquer tentativa de resposta – observaram impotentes os preparativos para a operação de limpeza étnica que se seguiria. Mais de sete mil homens bósnios muçulmanos foram sistematicamente executados e enterrados em valas comuns.

O maior genocídio da História da Europa pós-Holocausto nazi é uma mácula indelével, uma "vergonha para a comunidade internacional", nas palavras do ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, Jack Straw. Uma vergonha incessante, diga-se: Mladic e o ex-líder sérvio-bósnio Radovan Karadzic, acusados de 16 crimes contra a humanidade e genocídio pelo TPI para a Ex-Jugoslávia, continuam impunes. E, segundo a procuradora Carla del Ponte, em território sérvio. Como é que se explica isto a uma mulher de Srebrenica?

Fotografia: Joe Klamar (AFP) - Getty Images

sexta-feira, julho 08, 2005

quatro da manhã: Emily Brontë

A privação de sono tem destas coisas. Agrada-me, por esta hora, o capítulo sete de Wuthering Heights - quando Cathy regressa recauchutada da Herdade dos Tordos. Na vez de "uma selvagenzinha sem chapéu", é uma "uma pessoa de ar digno" quem se apeia de um potro negro. Vem de tal modo polida, que até soergue a ponta da saia para poder somar os seus passinhos de senhora. De vestido de seda escocesa e sapatos de verniz, os caracóis castanhos abrigados por um chapéu emplumado, mal se chega aos cães que a saúdam "aos pulos". E quando finalmente lobriga o amigo, Heathcliff, pespega-lhe "sete ou oito" beijos antes de desferir: "Ah, como tu pareces sujo e mal encarado, e… cómico e feio".

quinta-feira, julho 07, 2005

11 de Setembro, 11 de Março, 7 de Julho



Nota: o primado do terror.
Fotografia: Jane Mingay (AP Photo)
Fonte: The Washington Post

quarta-feira, julho 06, 2005

instantâneo 3

Ainda tenho presente que o meu pai era, pela hora do jantar, um Cícero de arrabalde, por vezes um Demóstenes talhado de um paralelepípedo de mármore raiado, quando as gelhas do roupão cinza-cirrose improvisavam uma toga. Palavra. Se esmagasse as pálpebras com suficiente fé, podia imaginá-lo a redigir um De Oratore nos cerros do puré, os dentes do garfo a esculpir uma caligrafia de mestre-escola; ou, em dias de iscas, arroz de manteiga e bagaço que emulava a água dos serviços municipalizados num copo de vidro espesso, a declamar uma verrina de perdigotos do alto de um banco de cozinha, o verso do púlpito gemebundo a descascar-se em aparas de aglomerado que a minha mãe se apressava a recolher numa pá de plástico.
- Trazes esta casa que nem o galinheiro onde a tua mãe te pariu, Teresa – sentenciava o meu pai, balbuciando, em seguida, de imperio Cnaei Pompei de epiglote vergada por uma náusea de alambique. – Olhem-me bem para este pardieiro, valha-me Deus – e a minha mãe a somar lágrimas às pinguinhas aos restos do banco no bojo da pá.
Palavra que ainda hoje não consigo pôr a mesa para o meu homem sem passar o esfregão pela tijoleira. Ele diz-me que não é preciso, que trago os joelhos da cor das cerejas para nada e eu não logro crer numa só sílaba, sempre à espera de uma bofetada seca ou de uma catilinária a cheirar a casca de carvalho.
- Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?

terça-feira, julho 05, 2005

le mot du jour: esgarçado




Confiaram-me há uns dias que a melhor metodologia para desempenar a ossatura alquebrada consiste em séries consecutivas de movimentos pendulares e verticais - a roçar silvados ou a sulcar a terra de lombo ao vento.

segunda-feira, julho 04, 2005

Deep Impact




Tomorrow and in the days ahead we will know a lot more about the origins of our solar system.

Andy Dantzler, director da Divisão do Sistema Solar da NASA.

Cento e setenta e dois dias e quatrocentos e trinta e um milhões de quilómetros; assim, por extenso – para dar textura ao alcance da missão da sonda espacial Deep Impact. A NASA apontou e disparou – a uma velocidade de 37 mil quilómetros por hora - um projéctil de cobre na direcção do núcleo de um cometa. O impacto, equivalente a 4,5 toneladas de TNT, esventrou o Tempel 1. Em 1609 - há 396 anos - Galileu construía, em Veneza, um óculo e dava início à observação dos astros – a Lua e a altitude das suas elevações; as manchas do Sol; os satélites de Júpiter; as fases de Vénus. Daí a pouco mais de duas décadas, em 1633, a Santa Inquisição obrigá-lo-ia a ajoelhar-se e a abjurar as suas teses, condenando-o, depois, a uma espécie de degredo vigiado em Arcetri, perto de Florença. O Vaticano reabilitou Galileu em 1992, passados trezentos e cinquenta e nove anos; assim, por extenso.

sexta-feira, julho 01, 2005

descoberta




Aos primeiros instantes de Julho, numa tarde de sol despótico, encontrámos uma bolsa de oxigénio num país de marasmo generalizado e de sensibilidade discutível (não raras vezes inexistente) – o Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas, entre Sintra e a Ericeira. No conjunto de detalhes saborosos, três linhas para a cripta etrusca, prólogo da visita, e o latim no baptismo das salas - Cronos Devorator e Otium Fecundum, este último a servir de legenda para este pedaço de dia.

Suum cuique tribuere: Post Scriptum