O Sedentário

segunda-feira, maio 30, 2005

uma explicação (entre muitas)



...de tanto
temer a vida e
as suas pequenas tragédias...


Dobrados treze dias do mais incómodo dos silêncios, parece-me avisado explicar, na medida do que a minha couraça quitinosa permitir, que este pasquim sofrível vem sendo vítima inocente, total e comovedoramente inocente, da tibieza crónica do seu autor. Que, de tanto amar e respeitar (em partes equivalentes) este artesanato da escrita e de tanto temer a vida e as suas pequenas e arreliadoras tragédias, acabou por implodir num vácuo de "sintaxe" difícil de superar; mais: se tivesse passado por aqui há dois dias, teria acabado com O Sedentário. E tê-lo-ia feito de um só golpe, sem ponta de contrição.

É, pois, este o estado das coisas. Aprisionado no éter da fuga em diante, espreito para dentro hora sim hora não, a ver se logro adivinhar um (apenas um) "instante padre Felicidade Alves". Eu explico: na primavera de 1968, em pleno conselho paroquial de Belém, Felicidade Alves zurziu outra primavera, a marcelista, atirando-se de caninos em riste à carótida do regime; exigiu desclericalização, revolução e socialização; depois, insatisfeito, entendeu explicar que o cardeal Cerejeira tinha uma certa propensão para empregar métodos estalinistas. O processo de excomunhão foi-lhe administrado, claro, daí a dois anos. Contudo...

terça-feira, maio 17, 2005

...you're playin' with my mind




Pela tarde, no rescaldo do iogurte e da maçã, o lamento de uma Fender Telecaster tratada pelos dedos cor de chocolate de Albert Collins – quem ainda não experimentou empregar os ouvidos nesta experiência desconhece as vielas dos Blues. My Woman Has a Black Cat Bone. Segue-se I Ain’t Drunk. Apropriado. Dia ganho.

Adenda: a julgar pela narrativa de John Boncimino, produtor executivo, Albert Collins só não morreu a dedilhar a inimitável aspereza da sua Telecaster por um injusto capricho da providência. Três dias antes de se extinguirem - labor acabado das tenazes de um cancro -, os olhos de the master of the Telecaster ainda brilhavam enquanto os dedos percorriam o ácer da escala e o amplificador Fender Quad-Reverb cuspia Blues ao ar de Las Vegas.

segunda-feira, maio 16, 2005

o inenarrável camarada Leandro



..."os 'crimes'
cometidos ou não pelo
revolucionário soviético"...


A última edição do Avante!, órgão oficial e prestimoso do PCP, consagra, numa homilia em três parágrafos, milhares de militantes – o "colectivo", no linguajar indígena, de que fazemos parte – e todo o capital político (hoje somos poucos nas urnas, amanhã seremos menos) da mais antiga força política portuguesa ao egrégio totalitarismo de Iossif Vissarionovitch, Koba, pai dos povos, Estaline (homem de aço). Novidades na matriz ideológica? Em parte alguma.

Ouvimo-lo de Bernardino Soares, quando passou os dedos pelo queixo, assanhou o sobrolho e admitiu, ó sábia pertinência!, a hipótese académica de a democracia ser um conceito transportado na ponta da língua por qualquer cidadão da ordeira e jubilosa Pyongyang. Ouvíamo-lo, em 1981, de Álvaro Cunhal, quando garantia que, para lá da férrea cortina, os trabalhadores tinham acesso a instalações que para os trabalhadores portugueses seriam um sonho, instalações para recreio…. Podemos lê-lo, agora, numa jóia literária do camarada Leandro Martins, O Partido e o Povo. Tudo arroz do mesmo lamaçal.

A propósito das comemorações dos 60 anos da entrada do Exército Vermelho em Berlim – quando Estaline esmaga o "fascista" Hitler, esse mesmo que fora tão amigalhaço em 1939 (Pacto Ribentrop-Molotov) -, escreve nos termos que se seguem o camarada Leandro Martins, chefe de redacção do Avante! e membro do Comité Central do PCP: Mas a história, já se sabe, reescreve-se facilmente. E se, na Rússia de hoje, apesar dos tempos negros que se vivem e da obscuridade lançada desde há muito sobre os factos e os seus significados, voltam a aparecer cidades em que se dá o nome de Estaline a ruas, há logo quem, lá mesmo, venha advertir sobre os "crimes" [a opção pelas aspas é importante] cometidos ou não pelo revolucionário soviético. Foi o que pressurosamente fez Gorbatchov [essa alimária coveira do socialismo!], que afirma não perdoar e alerta para este sobressalto russo que torna a elogiar Estaline. Diz ele que se não deve a vitória a Estaline. Estaríamos de acordo, se Gorbatchov pretendesse revelar que, para além do dirigente, há o povo. Certamente. O que ele não pode negar é que, se Estaline teve o seu papel na vitória ao lado do povo, Gorbatchov teve o papel principal na derrota do socialismo, acompanhado apenas por arrivistas e traidores de que se rodeou para torpedear a mais brilhante conquista da história da humanidade.

Mas há mais (desrespeito, para melhor arrumação de ideias, a ordem dos parágrafos): E também não passou historicamente despercebido que, para organizar e dar um rumo a essa resistência, uma direcção e um profundo ânimo ao avanço para ocidente, derrotando exércitos bem armados, enquadrados por fanáticos do terror, foi necessário um Partido profundamente ligado ao povo e às massas, que avançasse na vanguarda, dando o exemplo e erguendo bem alto as bandeiras da libertação e da justiça. E ainda que esse Partido teria de ter a orientá-lo uma direcção coesa e profundamente empenhada em salvar a pátria e o socialismo a construir-se. Surge assim, naturalmente [como uma brisa de Primavera, ou um arco-íris na esteira da chuva], a figura de Estaline, que não pode ser isolada dos outros dirigentes, tal como o PCUS não podia encontrar-se isolado da vontade dos milhões de soviéticos, comunistas ou não.

Para fim de conversa, gostaria de contar uma história. Em 1937 – em plena "grande purga" (1936-39) - , e pela primeira vez desde 1926, as autoridades da União Soviética, leia-se Estaline, encomendaram um censo nacional. Em 1926, aquando do censo predecessor, a população da União Soviética fora estimada em 147 milhões. Em 1937, Estaline esperava um número: 170 milhões. A comissão encarregue da tarefa teve o azar de apresentar o número de 163 milhões, ilustração dos efeitos dos programas – ou dos "crimes", para empregar a fórmula do camarada Leandro - do grande líder. Os seus elementos foram presos e posteriormente fuzilados por se esforçarem traiçoeiramente por diminuir a população da URSS.


domingo, maio 15, 2005

vizinha



...o membro
guarnecido de penas que serve
às aves para voar...


Os meus domingos são um pires de amendoins salgados e maçãs de baquelite no bucho cindido de um chicharro de faiança, umas vezes sobre uma toalha debruada de lágrimas cobertas de um carvão de Pompeia, outras sobre o cretone da chaise-longue, quando os meus sogros se sentam à mesa numa solenidade desdenhosa de calças vincadas e écharpes de casimira – Já viste, Augusto, que as batatas estão greladas, que a pescada é da mais reles, que os copos têm dedadas, que o galheteiro não casa, que o vinagre vem num jarrinho de vidro espesso e o azeite num frasquinho que lembra os das análises, nitritos, proteínas, glucose, urobilinogénio, bilirrubina, hemoglobina e sei lá que mais andamos a despejar sobre os bróculos e o ovo cozido, Augusto? -, ou num gavetão vazio da cristaleira, debaixo de seis copos de pé alto para serventia nas consoadas e de uma caneca do Benfica. Às vezes os meus domingos são outra coisa, quando o meu homem - um par de chinelas ortopédicas, um alçado de metatarso grotesco e o alumínio de uma muleta que benze de estalinhos metálicos os passeios da praceta - me oferece um abatanado e um pão de Deus com fiambre, às vezes uma revista de sopa de letras, três vertical uma rua estreita e curta que, em geral, não tem saída, oito horizontal a fécula de farinha de arroz, dez vertical o membro guarnecido de penas que serve às aves para voar. Os meus domingos são as asas espantadiças de um periquito aos círculos numa gaiola, um forro de páginas de revistas na base da armação, uma tripa pequeníssima, cheia de afã, a largar o verde das escórias de alpista para o papel, umas vezes sobre a semana propícia ao aprofundamento de relações amorosas do caranguejo no horóscopo, outras sobre a minha aliança, quando mudo a água do bebedouro. Há uns meses quis que o meu domingo fosse um dez vertical; cheguei a desenhar uma letra vaga num quadrado, imagine-se o dislate.



quarta-feira, maio 11, 2005

o senhor devia receber uma medalha



...é que fica sempre
uma lascazinha de gordura, mas nem isso
o senhor tem...


Nem uma lasca de gordura no músculo cardíaco. Olhe aqui. Vê? Vejo: um tubérculo negro e palpitante num ecrã a preto e branco; sístole, diástole, um rumor de água e sabão num sifão de ventrículos. Nem uma lascazinha de gordura. É que fica sempre uma lascazinha de gordura, mas nem isso o senhor tem. A aorta à esquerda do tubérculo a espremer sangue arterial para o sabugo das unhas dos pés. Por aqui também está tudo bem. Não me vai tossir agora, pois não? Uma comichão de gel azul entre os cabelos do peito; os preparos de uma pitonisa de busto ao ar na marquesa, o braço esquerdo a almofadar a cabeça. É que nem uma lascazinha. "Se ao menos uma lascazinha", penso entre dois estampidos de peito cavo. "Então deve ser por isso, senhor doutor, que ando assim tão vazio de nem sei bem o quê".



sexta-feira, maio 06, 2005

Epílogo



"Acho que nunca disse
isto a ninguém: eu consigo
ver cores na música".






quinta-feira, maio 05, 2005

D


Manhã. Uma claridade a esconder-se envergonhada no creme dos cortinados, a tocar a obesidade de uma vela ao centro da mesa com o mesmo voltejar vaporoso de um empregado do Majestic – lembra-me, no intervalo de um latejar compassado das veias nas têmporas, uma tarde de Agosto e o manejo destro das águas minerais e dos pacotinhos de açúcar sobre a bandeja à passagem pelo forro gasto das cadeiras e pelas nebulosas do tabaco de turistas e ascetas de Santo Ildefonso –, a levar um lume brando ao fardo de guardanapos índigo e aos papo-secos de véspera num postigo do aparador e a morrer de uma timidez de primavera na maçaneta da porta da cozinha; na madrugada o miar arreliado de um felino contrafeito, a Pintas, encarcerado entre ladrilhos, panos de loiça, talheres, canecas e malgas em amarelo torrado. Desvio os olhos do sol nascente da Pasteleira, na esperança de aplacar o martelo do ferreiro no vitral da livraria – Decus in labore -, que me esmaga os parietais com pancadas secas, de sossegar, nos subterrâneos do bucho, um chapinhar de entremeada e alheiras de Mirandela picadas pelo garfo e grelhadas a carvão, e há uma bigorna no lugar da cabeça; os dedos a desfazerem-se em carícias nas pálpebras, nas pestanas, nas sobrancelhas e uma bigorna no lugar da cabeça. Na parede, por cima das trouxas e dos sapatos, um cacho de fotografias - um miúdo de olhos fundos e melena levantada; sentou-se no meu carro num fim de tarde e fez-me querer ser pai; o Senhor Pinto emoldurado de putos contentes; um par predestinado, vocês, a rebentar num sorriso siamês, um aprumo de barba aparada, fato e gravata, um vestido domingueiro batido de luz e de verde. Família. Depois despejo leite meio gordo no farelo e afogo a cefaleia num café, os miolos banhados entre as açucenas da chávena. Casa. Daí a pouco caminhamos a ouvir o marulhar numa areia de sal grosso; um lembrete amargo de Lisboa num autocarro amarelo, os últimos instantâneos da Foz, um sol que não rompe, e os restos de água doce do Douro vertidos num termo para a viagem de regresso. Lembro-me.

quarta-feira, maio 04, 2005

C


Isto. A travessia da Passagem do Noroeste, no convés de galochas pretas que incarnam o casco e o velame do Gjoa, faz-se por um buraco quadrilátero no Jardim de Arca de Água, plátanos da bitola de ciclopes que pingam folhas e lanugens ruças para o vermelho dos bancos e canteiros de magnólias numa luz de prata, reflectida pelo espelho sujo da lagoa. A fibra dos impermeáveis, fechos cerrados até ao cabo da mandíbula, rende o pêlo de animal cerzido à medida por alfaiates esquimós do Árctico; um sumo de pêra embalado em cartão na vez de um bife de leão marinho e, no cume da cabeça, um capacete de plástico castigado pela grosa do granito. A tripulação levanta ferros debaixo de arcadas húmidas nas tripas da Praça 9 de Abril, guiada pelo b no lugar do v de um Amundsen dos SMAS - uma farda azul-noite e um bigode que abre as asas na cauda de um sorriso de malandro; espectáculo…, repete de quando em vez nos lodaçais mais espessos, que baptiza de chiclete -, ligeiro sobre as solas de borracha, a lanterna enlameada no coldre do Colt e o caminhar de John Wayne em Cahill U.S. Marshall quando aborda, experiente, as manilhas do encanamento e explica as manhas das águas de Paranhos; aqui uma nascente, ali a marca escura da água nos poros encharcados da parede, um fragor de apocalipse, assegura, quando irrompe dos veios depois da trovoada, uma cristaleira num nicho de pedra e mobiliário de sala com vista para uma nesga de superfície à saída da primeira galeria. Serpa Pinto, Burgães, uma paragem para a fotossíntese à vista de uma mulher descalça sobre o sabão numa carpete, lavagem comunitária a água e limos; um cigarro extinguido à pressa e o regresso ao breu e às caleiras de água fria, às arestas dos icebergues de granito que abrem estradas nos capacetes e à luz vaga que a minha precursora vai apontando aos caprichos do chão e às raízes que esventram o granito no sentido da sede; continuo a pintar de lama as mangas do casaco e cismo na suprema generosidade do gesto: transportar a luz por alguém.

terça-feira, maio 03, 2005

B


Assim. Chegamos a casa, um contra-senso de trezentos quilómetros de alcatrão e noite, e caímos amansados num aconchego de abraços e sorrisos – o açúcar caramelizado de uma consoante deslocada, da vogal acrescentada a uma interjeição, de um meu estupor embebido em ternura ou das cabriolas de uma gata preta, a Pintas, nas rugas da carpete, de permeio com um riso de menina que liquefaz o mais triste dos adágios. Ponte, Bessa Leite, Foz. Casa. O colorido do aguça, apodo de bandoleiro na grafite de um lápis, e dos cordões, desses que apertamos ao invés de atar, de um doce de manga a exsudar perfume numa malga de cozinha e das açucenas estampadas na delicadeza de uma chávena de café; chovem duas colheres de açúcar sobre a espuma e o Senhor Pinto ensina-me que a fronteira da autoridade fica na berma de uma estrada, numa nota corajosa entalada entre um livrete e uma carta de condução - o bico da gola e a geometria do nó da gravata descompostos por um instante no ângulo difícil de um sofá azul, os olhos de miúdo travesso por detrás das lentes e o lenço dobrado em quatro a acudir buliçoso, de oriente a ocidente, às comichões do nariz. A julgar pela conversa macia e por aquele amigo Carlos que me escancara as portadas de uma família inteira, opus operatum do amor, diria que nos sentamos ali, a um canto da sala, serão após serão.

segunda-feira, maio 02, 2005

A


Lembro-me. A quinta engrenada no retorno à faixa dos prudentes e uma procissão de candeias vermelhas e nevoeiros de escape a cindir o pez molhado da noite entre pinheiros e eucaliptos; o imediato num corpo de mulher - uma espécie de luz nas íris e na pele das mãos pequeninas sobre as calças de ganga -, sentado no veludo de um banco de passageiro e perdido nos trilhos desconhecidos depois do eflúvio de enguias morrediças e iogurte estragado em Aveiro; não consigo perceber onde estou.

- Perto! - grita-nos Xisto IV da margem direita dos rápidos de alcatrão, encostado ao SOS de um telefone para aflitos enquanto mendiga boleia para um Bom Jesus de Braga escrito a lápis de cera num retalho de cartão.

Isto porque muito para lá das malas de viagem no castelo de popa – do losango cromado da proa em diante rasgamos pinhal e névoa; por vezes um mosquito peregrino mergulha como Ícaro no vidro sujo do pára-brisas -, talvez em Leiria ou Pombal, passámos pela Praça de São Pedro, incomodámo-nos com um Cristo abelhudo que nos espreitava da urdidura de uma tapeçaria de museu e deslumbrámo-nos com a Capela Sistina. Baccio Ponteli ou Giovanni de Dolci?

- Pinto! Senhor Pinto! – corrige Sua Santidade aos gritos, uma silhueta albardada em tafetá, o solidéu branco a levantar voo com o sopro abafado de um pesado carregado de vigas.

Também escutámos os silêncios funéreos de Munique e descobrimos a ciência alemã do edredão num quarto de estudante; vimos Queops, Quefren e Miquerinos num dizer sobre fundo azul que apontava o rumo do Mondego e do Choupal, a buzina de um táxi do Cairo no acesso a uma área de serviço.

Três horas e meia: encostamos à beira do Antuã; um bolo, uma água. Depois disso, a Ponte da Arrábida, o Douro e a cidade em cascata. Chegámos.