O Sedentário

terça-feira, junho 29, 2004

Consenso

Ainda não consegui perceber em que medida é que a transumância de Durão Barroso para a presidência da Comissão Europeia pode trazer benefícios acrescidos para Portugal; não me refiro ao país engomado dos analistas políticos e dos obedientes funcionários dos "aparelhos", dos entusiastas do privilégio e dos detentores de concepções imunes ao "provincianismo" que, queixam-se, nos tem tolhido; antes àquela "nação" de garroteados do quotidiano que, embriagada pela glória efémera do relvado ou pela indiferença crónica, ainda não percebeu o golpe de magistral calculismo de que foi objecto.

Não consigo outorgar uma onça de crédito ao (ainda) chefe do Governo português quando lhe estudo a pose e o tom que emprega, em directo e à hora certa, para asseverar que "esta não foi uma decisão fácil". Pode até ser verdade. Mas a gestão de silêncios dos últimos dias expõe ao ar, à parte o remanescente, o talento de Durão Barroso para o cálculo político. Brilhante no calendário, irrepreensível nos equilibrismos de gabinete, astuto na leitura dos sinais do magro país que vota.

O faz-que-anda-mas-não-anda do apoio institucional à candidatura do comissário António Vitorino, a remodelação do Executivo indefinidamente adiada, conduzindo correligionários e adversários às fronteiras da impaciência. Arbitrário?

Entretanto, mente-se ao país com despudor científico, tão caro à direita. "É uma decisão que honra Portugal. É uma homenagem a Portugal", explicava, ontem, em Istambul, o primeiro-ministro. E prosseguia: "Se Portugal ganha com a eventual presença de um seu nacional à frente da Comissão, é importante que Portugal não perca, agora, por causa de qualquer instabilidade política desnecessária".

A confirmar-se a inclinação do Presidente da República para a "estabilidade" das legislaturas, Portugal deve começar a preparar-se para a "instabilidade política desnecessária" decorrente das soluções artificiais que se gizam na São Caetano à Lapa.

Quanto a Durão Barroso, chega a ser comovente ouvi-lo dissertar sobre as vantagens da sua ascensão na despótica hierarquia europeia e o cunho de força que pretende impor ao órgão executivo da União a 25. Quando Zapatero, Chirac ou Ahern louvam o consenso em torno do primeiro-ministro português, estão a explicar o que dele se espera.

Sugestão: The Economist

Enfadonho

Viajaste ao fundo do que és à procura de um traço do que foste. É sensato corrigi-lo: procuraste vestígios do que sonhaste ser. Sonhaste, um dia. Assusta-te? Imaginaste baús gordos de enxovais, um cobertor velho sobre as pernas doridas. Acolheste nos dedos uma caneca quente, enquanto outros dedos, que não os teus, que não os da caneca, esquadrinhavam cada ruga da tua testa num toque comprometido. Partilhaste espaços. Abriste janelas aos domingos para que o primeiro Sol te iluminasse o castanho dos olhos e o rubro dos lábios; e acordasse, por desinteressada generosidade, o corpo estendido sobre o leito e abandonado a um óbito eternamente próximo, fugazmente doce. Viajaste. Percebeste que não havia nada por encontrar.

sábado, junho 26, 2004

Círculo

Se pergunto por mim, uma voz ténue faz-se ouvir, a medo, sem vontade de transformar sossegos em alaridos: "Saí e não sei quando volto". "Isto não é nada bom", argumento. "Mas também não tem de ser forçosamente mau", contraponho, sabedor do desconchavo pobre e ridículo. Percebo, contudo, que caiu a noite. Outra vez.

quarta-feira, junho 23, 2004

Luz

A criatura entrou, sentou-se com o orgulho de um velho chefe índio e pediu um café curto. Trouxeram-lho sem demoras, prestimosos. Então, a criatura, que já havia descerrado o jornal sobre o tampo fibroso da mesa, tomou nos dedos a chávena, preparando-se para sorver o conteúdo perfumado. A cerâmica, porém, fervia endemoninhada, pelo que os dedos vacilaram. O café precipitou-se sobre o rosto façanhudo do ministro da Defesa, que logo adquiriu uma tez de Ásia Meridional.

terça-feira, junho 22, 2004

Réflection minimaliste

Hoje, enquanto utilizava o Multibanco, fui assaltado por um pensamento ao mesmo tempo doentio e assustadoramente verosímil. Se, por um acaso surrealista, me visse reduzido à condição de cartão, qualquer leitura da minha banda magnética daria saldo zero.

segunda-feira, junho 21, 2004

Pela metade

- Nunca mais escreves no blog? – indagou a alma sequiosa, sem suspeitar por um só instante que a remoção está por um fio.
- Não sei, a sério que não sei – respondi.

A pergunta era boa e oportuna, mas aquele no blog estava a mais. Daí o cinismo.

sexta-feira, junho 18, 2004

Gavin Menzies

Por ora, abstruso!... Subscrevo o que aqui se escreve.

quarta-feira, junho 16, 2004

Sem título

- Olá – disse-me, enquanto destapava um sorriso recauchutado de prosélito. – Tudo bem?
- Olá – devolvi, em flagrante desconsideração pelas minhas entranhas enlutadas.

Caminhámos, sempre a anuir respeitosamente ao silêncio do desconforto, e acabámos por ocupar duas cadeiras que se confrontavam, esgrimindo vazios. Não fizemos como as cadeiras, mas também não fomos além das Tormentas; quedámo-nos por ali, numa baía de águas tépidas e sossegadas. Almoçámos, trocámos olhares vacinados e frases iguais a placebos.

- Adeus, vai dizendo qualquer coisa – atirou, por fim, como se houvesse qualquer coisa para dizer.
- Adeus.

Os epílogos também são feitos disto.

terça-feira, junho 15, 2004

Frugal

Lá fora, o Sol queima tegumentos e denodos. Não há nuvens. Cá dentro, por outro lado, chove a cântaros. Há muito tempo.

segunda-feira, junho 14, 2004

Náusea

A noite cai sobre a cauda da União Europeia e a esquerda risonha, do PS ao BE, sobe aos púlpitos para berrar que o Governo de Durão Barroso foi expressivamente penalizado. À direita, desdobram-se sorrisos profissionais e explica-se que as eleições para o Parlamento Europeu foram "atípicas".

No Hotel Altis, o secretário-geral socialista pisa o estrado atapetado de vermelho. Hesita entre a lágrima compungida e o fervor da contenda arrebatada. Faz do discurso da vitória um exercício a meio caminho entre a homenagem póstuma e a exortação à mobilização do partido "para um ciclo político que agora se inicia". O PS pode derrotar, sozinho, a direita, proclama o líder. Lá fora, quatro ou cinco militantes preenchem um lancil da Castilho, sacodem as bandeiras do punho esquerdo erguido e soltam gritos tímidos de "PS, PS!" quando pressentem a câmara da reportagem. Os socialistas conseguiram a eleição de 12 deputados ao Parlamento Europeu. Perfilados no estrado, os eleitos aplaudem-se.

O quartel-general da campanha eleitoral da coligação PSD-CDS/PP, no Campo Pequeno, vive horas soturnas. Para o cabeça-de-lista, João de Deus Pinheiro, as formações que compõem a Força Portugal "não devem procurar iludir com subterfúgios a vitória socialista". Por sua vez, o líder social-democrata dirige-se aos jornalistas aprumados na qualidade de primeiro-ministro e promete "corrigir alguns aspectos" do rumo até agora prosseguido. Já Paulo Portas esclarece que "para o Governo de Portugal vota-se em 2006". Sociais-democratas e democratas-cristãos remetem nove deputados para Estrasburgo. O amuo dos cônjuges é mal mitigado.

Na sede do PCP, o secretário-geral e a cabeça-de-lista, Ilda Figueiredo, exultam. "O traço mais relevante e decisivo é a grande e severa derrota da coligação PSD-CDS", assinala Carlos Carvalhas. E faz contas: "Em conjunto, os partidos da Oposição obtiveram cerca de 60 por cento dos votos, para cerca de 34 por cento dos partidos de Governo". Carvalhas dispara, ainda, contra o isolacionismo socialista. A CDU "falha" a eleição de Odete Santos, mas mantém dois deputados ao Parlamento Europeu, Ilda Figueiredo e Sérgio Ribeiro; não é um mau resultado, tendo em conta a depredação do eleitorado comunista por parte do Bloco de Esquerda e a pobreza de ideias das estruturas dirigentes do PCP para combater a tendência erosiva.

Na Graça, o Bloco de Esquerda amortalha a cannabis da vitória. "Há condições, agora, para criar um quadro politicamente insustentável para algumas políticas deste Governo", afirma, a gargalhar, o cabeça-de-lista. Miguel Portas vai para o Parlamento Europeu com 4,92 por cento dos votos e a promessa de fazer ouvir uma voz "europeísta de esquerda". A sua eleição é comemorada com um esclarecedor champanhe.

Em Portugal há 8.714.220 eleitores. Ontem, 5.364.512 portugueses inscritos nos cadernos eleitorais ignoraram as urnas. São vinte e quatro os deputados que vão fazer as malas e partir para Estrasburgo. Legitimados pela "democracia"...

quarta-feira, junho 09, 2004

1942-2004


Aqui, durante os próximos dias, nem uma só linha.

terça-feira, junho 08, 2004

Mais do mesmo

O Bloco de Esquerda não é motor de oposição à Oposição; assim falaram, logo no arranque do cortejo eleitoral, os sábios gauchistes. Porém, a congregação abre um "precedente" no que toca aos socialistas. Fá-lo, tardiamente mas sem surpreender, a menos de uma semana da procissão às urnas.

No capítulo estafado da coerência, todas as campanhas eleitorais acabam por ser clarificadoras, mesmo quando as forças políticas que assomam à arena – cá na cauda da Europa não há uma única excepção – preterem, umas mais outras menos, a substância da mensagem em prol do estrépito das charangas.

O Bloco de Esquerda gosta de se apresentar como uma força moralmente superior, à tona dos lamaçais da "baixa política" e a salvo dos bolores de um sistema reconhecidamente imperfeito. Mas a sua própria génese contraria a mensagem (?!) que se esforça por disseminar; o Bloco de Esquerda é inventado precisamente porque os grupelhos dispersos e irrelevantes que nele se diluem gostam tanto dos púlpitos institucionais como qualquer um dos ditos partidos com "vocação de poder".

Quando Miguel Portas, o insigne cabeça-de-lista do Bloco, vai à AutoEuropa e diagnostica nos socialistas uma "mania da política em ziguezague", está a exercitar uma ambição desmedida e cada vez mais mal disfarçada. Que passa por furtar votos lá onde eles estão ao alcance da mãozinha ávida: à esquerda e ao centro-esquerda. Porque, prega Miguel Portas, "se não existisse o BE o Governo tinha-se passeado por este país".

Falta, agora, rapinar mais um bocado do eleitorado da CDU. E depois, com uma ponta de sorte, levar ao Parlamento Europeu o superior ideário político que "lhes bate forte".

segunda-feira, junho 07, 2004

Robustez

"Ninguém tem o direito de ficar em casa" no próximo dia 13. Cá está a sentença - servida num comício de sobremesa em Vila Franca de Xira - da coligação das cores da República. João de Deus Pinheiro quer uma "vitória robusta" nas eleições para o Parlamento Europeu.

"Todos somos chamados a votar. Ninguém tem o direito de ficar em casa. Sentimos que estamos a subir, mas precisamos de subir ainda mais. Precisamos de uma vitória robusta", instiga.

Se enquadrássemos as exortações do candidato social-democrata nos manuais de optimismo façanhudo da Força Portugal, a pedagogia patrioteira poderia até fazer algum sentido. Já no plano da realidade, os apelos de Deus Pinheiro a uma manifestação nacional de apego à (presente) democracia são, para não dizer o que apetece dizer, uma anedota. Porque a sua "vitória", a acontecer, resultará daqueles "preocupantes" 65 por cento de abstenção que ensombram o horizonte.

Esse mesmo fantasma que levou Jorge Sampaio a escrever, no Diário de Notícias, um ensaio desinfectado sobre o "modelo de entendimentos, cooperações e solidariedades" que faz da Europa um farol da prosperidade. E de Portugal um dos seus filhos mais agraciados, como se comprova todos os dias às portas dos centros de emprego e nas salas de espera dos centros de saúde.

"Ninguém tem o direito de ficar em casa". Seja. Mas não pelas razões que João de Deus Pinheiro enuncia.

sexta-feira, junho 04, 2004

Idade do Ferro

"Eu também quero passar por esta prova". Quem o diz é o líder socialista, que já parece evidenciar uma certa pressa de desertar do Rato rumo a um qualquer Xangrilá académico. Ou então - o que também é verosímil -, não evidencia nada; e cá temos o PS trapalhão de Ferro Rodrigues em demanda, nas ruas de um país indiferente e a multiplicar bocejos, das cadeirinhas do Parlamento Europeu - sem mapa, sem agenda, sem estratégia, sem ponta de jeito para um golpe de asa que escore uma liderança macilenta.

Enquanto o cabeça-de-lista, "professor" Sousa Franco, desperdiça tempo a evocar as virtudes benfazejas do XIII Governo Constitucional e a responder aos espasmos de menoridade intelectual de fascistas reprimidos, António Costa toma conta da campanha eleitoral; o que não consubstancia, necessariamente, um impulso qualitativo. O malabarista é outro, mas o número é o mesmo. Enquanto assim for, o pequeno partido que vive em união de facto com os sociais-democratas continuará a brandir a relevância que nunca teve.

A Europa segue, se tanto, em nota de rodapé.

quarta-feira, junho 02, 2004

Camarada Ilda

Na edição desta quarta-feira do Diário de Notícias, a cabeça-de-lista da CDU oferece (mais) uma lição de substância política; ensina o que significa uma candidatura comunista ao Parlamento Europeu e permite que se formule uma interrogação: se o PCP e o PEV dispusessem de 1.684.684 euros para a campanha eleitoral – o valor inscrito nos orçamentos da coligação PSD-CDS/PP e dos socialistas -, lograriam exportar Odete Santos para Estrasburgo?

Ilda Figueiredo só patina quando desenterra o jargão pomposo – que, simultaneamente, quer dizer tudo e não quer dizer nada. "Sou uma eurorrealista", anuncia. O "problema" é que o dono do PND diz exactamente o mesmo. Aqui, a candidata comunista, ao invés de gastar nove frases a explicar que vai à liça "por uma Europa social", devia ter arrumado o assunto com uma pergunta: Manuel quê?!

terça-feira, junho 01, 2004

Campanhas

À saída da estação do Metro do Marquês de Pombal, Ana Drago sorri vagamente enquanto distribui panfletos. Nas papeletas coloridas, tão ao jeito da esquerda "vigilante" que enrola lenços palestinianos ao pescoço, o Bloco apresenta uma sádica selecção de imagens do cárcere de Abu Ghraib. Não me incomoda nada que o cabeça-de-lista do Bloco ande por aí a apresentar-se como "a sina da direita, a oposição forte que diz preto no branco o que tem de ser dito"; nem sequer me chateia ver a transumância do "renovador" João Semedo, que teme pesadelos "pintados de vermelho" - congeminados no Edifício Vitória ou na Soeiro Pereira Gomes - e vê, agora, no circo Louçã a redenção dos famélicos da Terra. O que me transtorna é ver os soldadinhos voluntaristas do Bloco a agitar imagens de um crime de guerra como quem pega numa febra grelhada.