O Sedentário

domingo, maio 30, 2004

Caderno da Feira do Livro - tesouros

Vejo dedos despreocupados a apalpar livros como se faz aos melões; tomam-lhes o peso, avaliam-lhes a espessura e abordam, em despudores de crânio arejado, as últimas páginas para adivinhar um número sentencioso. Quinhentas, seiscentas? "Que livro tão grande", vomitam.

Engelham testas e arcadas numa náusea de grávida. Assinam eles mesmos um epílogo apressado, devolvem livros ao escaparate. Cospem, por fim, no trabalho de minuciosa lavra, que Mário de Carvalho descreve em duas frases de uma contracapa.

Vejo dedos esfaimados a açambarcar livros, agora zombeteiros de pesos, espessuras e números. Porque ali perto, sentado a uma mesa de plástico, o escritor assina obra sobre obra. Sorri e fita com olhos de azul humilde os leitores e os outros. Generoso.

Ouve mal. Se não percebe o nome de quem o interpela, ergue-se da cadeira numa quase vénia e aproxima o ouvido mais são.

- Como se chama?

Um dia, escreveu: Disse em tempos que o livro ideal seria aquele em que todas as páginas fossem espelhos: reflectem-me a mim e ao leitor, até nenhum de nós saber qual dos dois somos. Tento que cada um seja ambos e regressemos desses espelhos como quem regressa da caverna do que era. É a única salvação que conheço e, ainda que conhecesse outras, a única que me interessa.

Abro o livro que trouxe, ontem, para casa. Desvendo-lhe num espanto perpétuo as palavras desenhadas à terceira página:

Para Carlos Neves
António Lobo Antunes
Lisboa, 29.5.04

sábado, maio 29, 2004

Prelúdio

Experimento o apelo das lombadas, do perfume adocicado dos parágrafos no papel. Mofosos, uns; por desflorar, outros. Acima. Abaixo. O caminho interrompido por uma capa, um nome, um repto feito de ideias. Comungo de umas. Não comungo de outras. Vou ao Parque Eduardo VII. Volto já.

sexta-feira, maio 28, 2004

Vazios, ecos

O homem de sorriso franco, que nos desarma sem ponta de expediente marcial, teima em cingir-se a caixilhos distribuídos sobre cómodas e mesas-de-cabeceira. Dedilha a guitarra macerada de velhice, arremeda Marceneiro, recita estribilhos martelados em bigornas pouco dadas a erudição penosa. E rebenta em gargalhadas sãs e verdadeiras, que fazem cócegas nas ruelas mais doces do peito. Finjo ouvi-lo.

Decidiu deixar de existir. Respira, cativo de um mecanismo persistente, os ares filtrados de um quarto limpo de teias de aranha e poeiras sortidas. Limpo de vida. É ele, sobretudo ele, quando se julga abrigado dos olhares de pena e caridade cristã, quem varre emoções espinhosas para um canto do catre disfarçado com dosséis e sobrecéus. Ele que jamais dobrou a espinha no sentido ascendente, à procura de empurrões celestes ou de dormências bentas.

Houve quem jurasse tê-lo visto, ao despontar de dias pastosos de rotinas, a comprar bolos de arroz, que arrumava na mala a tiracolo. Caminhava em passo pesado, todo ele a estralejar de colisões entre o termo prenhe de sopa e o canivete embainhado. Não comia os bolos. Porque todos os dias, à saída da estação do Rossio, esperava-os, a ele e ao bolo, um cão de pêlo pobre e olhos de súplica banhada de lágrimas. Eu acredito nisto. Dizem, também, que a tristeza o derrubou no dia em que o cão fiel deixou de aparecer, por certo varado pela indigência nalgum pedaço de cidade sujo e escondido.

Deixou de existir. Secou-se-lhe a última lágrima quando percebeu que lhe mentiam; mentem-lhe quando lhe negam o desenlace da outra metade. Agora espera. Seco. Indiferente.

Finjo ouvir os provérbios e os dizeres antigos, do mesmo modo que finjo calcorrear, com ele, o areal soprado pelo suão; despojamos a costa de conchas e ruínas de búzios a que encostamos o ouvido, adivinhando, como dantes, adágios de oceano. Outra vez Agosto. A mão forte do meu avô a ancorar-me entre a areia e a espuma. Ao fim da tarde, escrevo três linhas de Português peneirado num postal enfeitado de traineiras. "Por cá, estamos bem".

quinta-feira, maio 27, 2004

Reflexão de umbigo

Percorro distâncias matemáticas, delimitadas a arame farpado; se ouso transpô-las, descose-se a carne em lanhos rubros, desfaço-me num gotejo de metrónomo, fiável, aritmético como os trajectos. Colecciono melancolias de épicos projectados em montras ao abrigo da luz inteira; bocados de um rosto, o recorte imperfeito aplainado por sombras. Sigo ensimesmado com as correntes traiçoeiras que me arrastam. Cá dentro. Sempre cá dentro, como se eu precisasse de transportar um mar para todo o lado, e com ele as vagas e os salpicos, as marés e os artrópodes. Percorro os mesmos caminhos com os pés e as palavras. Matemático. O que não deixa de ser irónico.

quarta-feira, maio 26, 2004

Laranja mecânica

Não há quem ponha na ordem os coronéis da São Caetano à Lapa. Depois de ter levado a Oliveira de Azeméis o crânio decepado de um ministro comatoso e a saudosa equação salazarista que acasalava hecatombes e comunistas, Durão Barroso continua a confrontar-se com um certo "descontentamento" de alas irreverentes – com diferentes graus de apego às lentes das câmaras de televisão e aos gravadores sequiosos da imprensa mais domada.

Há quem queira defenestrar a camarilha democrata-cristã após as eleições europeias, dispensar o apêndice do Caldas nas Legislativas de 2006 - comichões e borbulhagens antigas. Há quem diga que Theias soube a pouco, que sobejou em "jindungo" o que faltou de sal ao exercício de remodelação que o chefe do Governo levou a bom porto pela noitinha. Há até quem se impaciente com expectativas proteladas.

Quanto ao guião, o conclave social-democrata hesitou entre as fórmulas de uma eucaristia e de um congresso do PC chinês. O líder foi louvado, o seu rumo exaltado e as suas palavras obedientemente aplaudidas a cada ponto final parágrafo. Entre sexta-feira e domingo.

Acabou-se. Ontem, no Diário de Notícias, Guilherme Silva esclarecia: "Não há aqui um ámen aos líderes".

terça-feira, maio 25, 2004

Caderno da Feira do Livro

Em 1977, a retórica de deificação do Presidente Mao Tsé-tung, religiosamente bordada pelo Comité Central do Partido Comunista da China, mantinha-se dentro das fronteiras da cartilha que dera à luz um brutal totalitarismo; uma cartilha cega e irrealista que produziu dois dos maiores logros da História – o Grande Salto em Frente (1958) e a Revolução Cultural (1966), movimentos construtores de um "socialismo" doentiamente repressivo.

A nota introdutória do Volume V das Obras Escolhidas de Mao Tsé-tung, editado em Março desse ano, elevava o camponês do Hunão à divina condição de "maior marxista-leninista da nossa época". Geométrico, abençoado com a chancela da comissão do Partido encarregue da edição dos compêndios do líder, o texto repercutia, sem mácula blasfema, o delírio megalómano do regime.

"O pensamento e os ensinamentos do camarada Mao Tsé-tung viverão eternamente", anatemizavam os escribas.

O "grande dirigente e educador" morrera no ano anterior, a 9 de Setembro. No semblante de múmia do leito de óbito, não se reconhecia já o mais ténue traço do revolucionário que, entre Outubro de 1934 e 1935, conduzira as forças vermelhas na Longa Marcha, escapando às armas do Kuomintang; nem do estratego comunista que redesenhara a China abrigado pelas grutas de Yan'an.

Jiang Qing, a mulher do Presidente secretamente moribundo, continuava, no dealbar de 1976, a semear a propaganda de propósitos opiáceos. Procurava, então, entre milhares de jovens descalços e esquálidos - escravos da "revolução" com os pés atolados em campos de arroz -, o "rosto proletário". A graça foi concedida a Anchee Min, resgatada a um campo de trabalho colectivo, da lavoura para as aulas de representação no Estúdio Cinematográfico de Xangai.

O corpo de Mao capitula, por fim, e a produção da película de propaganda é cancelada. Anchee Min, porém, vê o seu fervor comunista premiado por Ha Qiongwan, pintor do Instituto das Artes de Xangai Hua-Yuan, que a fotografa.

"Um dia – conta Anchee Min - durante a celebração do Ano Novo Chinês, enquanto caminhava perto das ruas mais movimentadas de Xangai, a Rua Central de Xi-Zang e a Rua Oriental de Yan'an, dou comigo num cartaz exposto na montra da maior livraria. A mulher do cartaz tinha a minha cara e o meu casaco, mas as pernas e os braços eram mais grossos".

A obra Chinese Propaganda Posters (Taschen) abre com um ensaio de Anchee Min, escritora radicada nos Estados Unidos desde 1985; seguem-se textos do poeta pequinês Duo Duo e do académico Stefan R. Landsberger, ambos da Universidade de Leiden, na Holanda. O livro reúne parte do acervo de cartazes de propaganda do regime chinês coligido pelo fotógrafo Michael Wolf.

Uma obra magnífica sobre a belíssima arte da propaganda na China de Mao.

segunda-feira, maio 24, 2004

«Mais do que prometia a força humana» III

Entretanto, regressa a Portugal...

Sim, vim a Portugal. Ainda solteiro. Legalizei-me e já podia vir. Foi em 1947. Estive cá um ano, também não podia ficar por mais tempo.

É por essa ocasião que conhece a sua futura esposa?

Bem, eu já a conhecia. Mas só vim casar a Portugal em 1950.

Conte-me, então, essa história. Como é que a conheceu?

Olha, fui visitar um amigo, que trabalhava comigo no Hotel. Ele era do Freixo da Serra, Gouveia. E a rapariga era sobrinha desse tal amigo. Ele telefonou-me, escreveu-me, e nessa altura ele também cá estava: "Vem cá passar uns dias comigo, fazemos aí uma caçada". E assim foi. Fui lá e conheci-a. Ela estava em casa deles a maior parte do tempo. Era costureira.

Aquilo ficou assim. Ela depois foi para a Figueira da Foz. E escreveu-me de lá: "Ai, está aqui tão bom. Você gostava de cá estar. Porque é que não vem até cá?". Isto numa carta que ela me enviou para o Tarrastal, onde eu estava de férias. Ela também queria brincadeira (risos).

Mas não fui à Figueira. Regressei aos Estados Unidos e ela ficou cá. Começámos, depois, a trocar correspondência e a simpatizar um com o outro.

Que idade tinha, então, quando se casou?

Tinha quarenta e poucos anos!... Casei-me com 42. Resolvi vir cá para me casar. Estive cá um ano. Nessa altura, eu ainda não era americano e não me deixavam ficar mais do que um ano. Depois do casamento, a minha mulher ficou em Portugal, porque já estava grávida. Eu regresso sozinho aos Estados Unidos.

Entretanto, a minha mulher teve o primeiro filho, o Alberto, e depois mandei-a ir para a América. Naquela altura, a viagem já nos custou cerca de três mil dólares.

Depois decide montar o seu próprio negócio em Nova Iorque...

Nessa altura, eu já tirava um ordenado que escapava. Mas a minha mulher incentivou-me a comprar um estabelecimento, na Bleecker Street. O proprietário tinha uma outra loja no Bronx; queria vender uma para ficar com a outra. Resolvemos experimentar.

Só tinha cinco mil dólares no banco. Assinei letras. Acontece que ao fim de quatro meses já tinha tudo pago. Todos os meses uma letra. Primeiro paguei com os cinco mil, mas ainda ficava a dever outros cinco. Havia lá um rapaz aqui de Vila Cova à Coelheira, perto de São Romão, que trabalhava comigo na caixa. "Então mas você ainda está a dever quanto?", perguntou-me ele. "Olhe, estou a dever tanto!, disse-lhe. "Então, porque é que não mo disse? Eu tenho dinheiro no banco, empresto-lho e paga-me quando puder". Agradeci a oferta. Então, paguei as letras todas de uma vez e, dali a pouco tempo, já tinha pago o empréstimo do meu colaborador.

Paguei ao homem. Quis pagar-lhe os juros que lhe pagava o banco, mas nem isso ele quis. Ele não tinha filhos. Penso que nasceu no Brasil, mas tinha raízes naquela região de Vila Cova à Coelheira.

A vossa loja era uma espécie de mercearia...

Sim, uma mercearia, com coldcuts [carnes frias], queijos, fiambre, presuntos, salsichas feitas por um português. Também vendia muito pão.

Ao domingo abria até ao meio-dia. Em fazendo 100 dólares fechava.

Mais tarde, resolvi vendê-la. Aconteceu que, um dia, ia para entrar de manhã na loja e encontrei a porta arrombada. Quem o fez deixou lá ficar o pé-de-cabra, em cima do balcão. Aquilo tinha sido naquele mesmo dia, mas já não o vi. Havia uma entrada pela retaguarda e eu vinha do primeiro andar, onde nós vivíamos – a loja era no mesmo prédio. Ele sentiu a chave na porta e raspou-se. Não levou nada.

Tive medo. Havia outro português, ali perto, que teve problemas. Houve tiros. Já andava por lá uma malandragem a roubar e a matar. Pensei: "De hoje para amanhã vem aí um gajo qualquer e fura-me aqui as tripas". Porque eu trabalhava até às 10, 11 horas da noite. Tinha lá uns clientes que chegavam à noite do trabalho e iam lá buscar seis latas de cerveja. E eu, para aproveitar, embora não se ganhasse grande coisa, ficava até tarde.

A mercearia foi comprada um ano depois de a minha mulher ter ido para lá. Ela esteve em Nova Iorque só cinco anos.

Dei, nessa altura, a mão a um familiar que já morreu, o Fernando Oliveira. Foi ele quem me comprou o negócio. Eu tinha dado 10 mil dólares pela loja, mas vendi-lha por nove mil. Foi daí que ele começou. Ele andava numa vida triste. Às vezes, lá ia o pai a correr atrás dele pela rua fora, com uma vassoura nas mãos.

A família, entretanto, crescera...

Sim, o Carlos e a Menita nasceram lá. O Carlos em Scanectady e a Menita em Nova Iorque, no Saint Claire Hospital.

Durante esses cinco anos, teve uma vida mais desafogada. Como eram os dias de folga em Nova Iorque?

Não se podia ir muito longe, porque eu não tinha carro. Se bem que os transportes eram baratos. Ia para os parques, aos domingos à tarde, com a família. O Central Park, o Washington Park...

O Central Park era lindíssimo. Tinha um lago com barquinhos, vários locais onde se podia lanchar, gelados. Tinha concertos de música, palcos para teatro. O Washington Park era mais pequeno, mas ficava ali perto da Bleecker Street. Para as crianças era bom.

Cinco anos depois de a sua esposa ter ido para os Estados Unidos, decidem, então, regressar a Portugal.

E estive aqui até 1968. Depois voltei sozinho para a América. Regressei [a Portugal] definitivamente em 1971.

Quando voltei a Portugal com a família, fui directamente para o Tarrastal. A minha mulher não quis ficar lá. Ficou, por isso, em Melo, com a mãe. No Tarrastal não havia escolas para os miúdos.

O Cardoso, aqui de Arganil, não me largava: "Vem para aqui, vem para aqui". Então, fomos viver para o Bairro de São José. Pagávamos 80 escudos de renda, por mês. As casas eram fracas, mas tinham um retiro para a retaguarda, com telheiro. Tinha lá ferramentas de carpinteiro, etc.

Durante esse período, o que fez?

Andei por aí. Mudámo-nos várias vezes, sempre à procura de uma casa com mais comodidades.

Até 1968, ano em que parte novamente rumo à América...

Quando emigrei pela última vez fui para casa do meu cunhado, César Ferreira [irmão do escritor Vergílio Ferreira]. Ele vivia sozinho. A mulher já lá tinha estado, de visita, mas regressara a Portugal. Quando fui para lá, ele disse-me: "Ó cunhado, você paga metade de tudo"; da renda, que até era barata, do telefone e do gás. Tudo pela metade.

Desta feita já não fui para o Hotel Paramount. Fui trabalhar para um restaurante. Isto aconteceu assim: cheguei lá e fui lá ter com o Neves – também se chamava Neves -, que era da Mamarrosa. Eu já lá tinha trabalhado várias vezes, quando faltava algum empregado. "Olha que eu agora não tenho nada. Mas quando houver, eu chamo-te", disse-me ele. Bom, ainda fui lá a umas agências, mas nada daquilo me servia.

O Fernando, que me comprara a loja da Bleecker Street, conhecia um rapaz do Minho, o Silva, que era super [supervisor]. Tomava conta de um prédio de habitação com 96 famílias. Supervisionava o pessoal da limpeza, etc. Fui até lá.

Fiquei empregado como porteiro, da meia-noite às oito da manhã. Quando chego a casa deparo com um papelito do Neves, do restaurante: "Tenho um part-time para si. Se lhe convém, apareça". Isso convinha-me, claro. Davam-me comida e fazia boas gorjetas. Havia muitas noites em que tirava 25 dólares de gorjetas, entre as cinco e as nove.

Em vez de ir para casa, saía do restaurante e ia directamente para o prédio onde era porteiro. Chegava lá, tomava banho, descansava um bocado e, à meia-noite, começava a trabalhar.

Entretanto, o super, Silva, arranja trabalho num prédio ao lado; pagavam-lhe mais e era menos trabalhoso. Entra um rapaz do Canadá para o lugar dele. Fui-lhe apresentado e continuei a trabalhar lá.

Havia semanas inteiras em que eu não via o meu cunhado César. Quando eu chegava a casa, ele já tinha saído para o trabalho. Só o via ao domingo, praticamente. E ao domingo, eu ainda ia trabalhar como porteiro.

Às tantas, pensei assim: "Não, espera lá. Vou mas é pôr-me a mexer, que já estou a ficar velho e não estou para isto". Tratei da papelada e vim-me embora para Portugal. Vim viver para o Bairro do Prazo.

A partir de 1971, definitivamente em Portugal, como é que passa a ser a sua vida?

A comer e a beber (risos). Mas trouxe muita coisa dos Estados Unidos. E isso foi uma asneira. A minha mulher tinha a mania de que aqui, em Portugal, não se encontrava nada daquilo. Só o dinheiro que eu gastei em caixotes chegava para comprar tudo aquilo e muito mais. Só um caixote para trazer um sofá-cama custou-me cento e tal dólares. Só o caixote!...

Quando regressei, pagavam-me, na Caixa [Geral de Depósitos] a 30 por cento. Sem descontos. O emigrante não tinha descontos de parte nenhuma. Gastei, a compor a casa, não chegou a 500 contos. Olha se fosse hoje... Nem a garagem fazia, com esses 500 contos.

Na minha última estada nos Estados Unidos, tratei logo da reforma, pois já podia ser pensionista. Aos 63 anos. Mas descontavam logo 15 por cento da reforma, segundo as leis americanas. Completa, era até aos 65 anos. Mas eu avancei. A minha mulher começava logo a receber e os filhos, ainda menores, também. Pensei: "Bem, deixa-me lá aproveitar isto". Aproveitei e não me arrependo.

Se pudesse voltar atrás, aos tais verdes anos, repetia a dose? Voltava a procurar um futuro do outro lado do Atlântico?

Pois voltava. Se estivesse na idade disso, voltava.

Aos 96 anos, uma provecta idade a que poucos chegam, o que é que passa pela sua cabeça? Como é que vê a vida, o seu presente?

Não vejo nada. Sou assim: não desanimo, em nada desanimo! Sei que tenho de morrer. Quando, não sei. Poder trabalhar, também já não posso. Tenho que me resumir a isto. A toda a parte onde vou, todos me tratam bem. Na vila, aqui em casa... E eu também não trato mal ninguém.

Uma última pergunta: este mundo do século XXI é melhor ou pior do que o mundo do princípio do século XX?

Continuo a pensar que é melhor. Em certos aspectos, talvez não. Por exemplo, nessa coisa dos roubos e assassinatos. Mas isso é fruto da evolução dos tempos. A vida transformou-se, toda a gente tem mais dinheiro. Vão a lugares onde os antigos não podiam ir, porque simplesmente não tinham "pasta".

No meu tempo, uma mulher ganhava meio tostão, de sol a sol. Meio tostão era dois vinténs mais 10 reis. Hoje, toda a gente tem dinheiro, toda a gente vai aos cafés, toda a gente dá passeios, toda a gente tem carro, toda a gente gasta, toda a gente anda bem vestida. Acho que é melhor assim.

Parece-me que podemos concluir aqui esta entrevista.

Bem, mais que isto também não sei...

96 anos

Alberto Martins Afonso Neves desfiou, munido da paciência de um velho monge, o essencial do novelo que é a sua história. Fê-lo no Dia do Trabalhador, porventura alheio ao significado da data. Fê-lo no seu dia.

Ao longo de uma entrevista de duas horas, gravada em casa da filha, mostrou-me como labora o intelecto de um homem de vinte anos num "envólucro" com 96 - o número inscrito nas velas apagadas a sopro, quinze dias antes, com a família e os amigos.

Ensinou-me o que é a coragem; humilde, como se do mundo pouco ou nada conhecesse. Obrigado, avô.

sábado, maio 22, 2004

«Mais do que prometia a força humana» II

E na construção civil, como era?

Com o fim da época, acabou aquele trabalho. E, como disse há pouco, de Verão só ficavam uns três ou quatro grupos. Arranjei trabalho na construção. Fui para Farmendale, uma localidade do estado de Nova Iorque. Fui ajudar a fazer uma estrada de 11 milhas, com dois sentidos para cada lado. Em seis meses fez-se a estrada.

Estávamos, então, na casa de dois tipos, um minhoto e o outro de ao pé de Aveiro. Alugaram lá um casarão no meio de uma quinta e arranjaram os quartos. Davam-nos comida e preparavam-nos os lanches que levávamos para o trabalho. Ganhavam durante o dia e à noite iam para Minneola, uma cidade ali perto, para o jogo.

Havia lá oito minhotos e só um é que sabia ler. E mal. Aqui o Neves é que tinha de ler as cartas todas. Sabia sempre as notícias primeiro que eles. E tinha, também, de escrever.

Aos sábados e domingos não se trabalhava. Mas havia lá um rapaz minhoto, o Caetano, que se dava bem com o capataz. E o capataz, um irlandês com meia perna de madeira, ia lá buscá-lo ao domingo. Fomos trabalhar para os mine-holes. Era só areia. O capataz levava-nos aos locais e indicava: "Limpem aqui, limpem ali". Em meio dia fazíamos aquilo.

Aí, pagavam-me quarenta cêntimos à hora. Entretanto, acaba-se o trabalho e havia lá um italiano, construtor, que pagava mais cinco cêntimos à hora. "Bem – pensei eu – se este paga mais cinco cêntimos, vou já para lá". Fui para a descarga do cimento. A pele ia-se toda embora. Mesmo com luvas, aquilo era terrível...

E isso tudo no espaço de meses?

Meses, meses. Isto deve ter sido por volta de 1932. Só em 1937 é que acabei de pagar a dívida, indo para as minas de carvão, em West Virginia.

Em West Virginia?

Em West Virgina. O Alfredo Costa foi buscar-me a Nova Iorque. Aquilo ficava a 900 milhas.

Era um trabalho muito duro. A mina era baixa e, às vezes, tínhamos de trabalhar de joelhos. Trabalhávamos os dois à direita, eu e ele. Mas esse Costa era cá um braço... Virava-se para mim e dizia: "Ó Alberto, veja lá se se habitua a trabalhar aí desse lado, à esquerda, que eu daqui boto carvão pelos dois".

Em 1937, acabei de pagar a dívida do meu pai. Disse ao Costa: "Costa, não matei ninguém na terra!".

Sublinhemos isto: acaba de pagar, em 1937, a dívida que o seu pai contraíra aqui, em Arganil.

Isso. A minha dívida era só de três contos, os tais que havia pedido ao meu tio para emigrar para o Brasil. A outra era a do negócio que o meu pai perdeu. Depois, ele meteu-se para aí num negócio de padaria. E, naquele tempo, quem é que comia pão? Meteu-se, também, num moinho eléctrico de café, comprou uma mota...

A sua vida, nos Estados Unidos, começa a estabilizar quando vai trabalhar para um hotel, correcto?

Já depois de 1937, comecei, então, a trabalhar nos hotéis. No Hotel Paramount. Pagavam pouco, mas agora já estava melhor.

Comecei a lavar pratos e a fazer a limpeza das casas de banho do Hotel. Mais tarde passei para a cozinha e depois para o pantry. Estava melhor... Passei, também, para a coffee-shop, onde servia café, gelados, saladas e pratos frios.

Por essa altura, contactava com todos os tipos de gente – de todas as nacionalidades, de todas as condições sociais. Fale-me um pouco dessa vertente e de como progrediu no Paramount.

Isso era mesmo assim. O gerente do Hotel, por exemplo, era judeu. Chamava-se Charles Hornstein.

Havia um controller, na coffee-shop, para todos os dias. Era até um alemão, o mister Klein, que era oficial do tempo da Guerra e fora ali parar. Houve lá uma barafunda qualquer e mandaram embora os rapazes que lá trabalhavam. O capataz, que fazia as compras para a cozinha – era de Lamego – pedia-me, volta e meia, que lá ficasse, a fazer o trabalho que lhe pertencia.

O mister Klein, que já me conhecia, pergunta-me assim: "Não queres ir para a coffee-shop, Alberto? Aquilo não anda bom. Os resultados, em vez de subirem, só descem". "Posso ir", respondi logo. Comecei no dia seguinte. Estive lá até regressar a Portugal.

Conte-me, agora, como é que era a sua vida social. Consta que tinha uma certa popularidade entre as senhoras...

Tinha, tinha. Era popular. Todos me estimavam e todos me tratavam bem. Pois, se eu fazia o mesmo... Correspondia da mesma forma e nunca tive problemas. Ia aos bailes aos sábados, um pouco por todo o lado, com aqueles grupos de porto-riquenhos, que gostavam muito de dançar.

Naquele tempo, em Nova Iorque, andávamos à noite na rua e não havia qualquer problema. Hoje já não se pode fazer o mesmo.

É claro: tive muitas namoradas (risos).

Exactamente. Diz-se que era uma figura bem apessoada e tal...

Era, pois. Era popular e todos me tratavam bem. E elas também gostavam. Saía quase todos dias com uma diferente. Tinha lá tantas para escolher (risos)...

Uma delas era alemã. Estive com ela alguns oito anos. Era casada e eu sabia. Mas o marido era um "bebedola" e ela começou a simpatizar comigo. Queria que eu fosse viver com ela, queria divorciar-se. Tinha já duas filhas, lindas. Uma tinha sete anos, a outra 10. Mas eu, como já tinha um casamento em vista em Portugal... Aquilo fazia-me uma certa confusão. Ainda ficava mal visto por cá.

E houve muitas, muitas raparigas. De todas as nacionalidades. Havia lá gregas, polacas, italianas, porto-riquenhas (pausa); chinesas é que parece que não havia lá nenhuma. Mas era todos os dias um forrobodó (risos).

Pode dizer-se, portanto, que, nesse capítulo, "visitou" quase todos os continentes...

Sim. Isso é verdade. Todos os dias tinha uma diferente. Tive também uma namorada portuguesa. Não, duas. Mas uma nasceu lá e a outra tinha emigrado durante a infância. Vivia em New Bedford. Depois veio a guerra e ela alistou-se; foi para França. Até era boa rapariga, mas aquilo começou a arrefecer. Além disso, New Bedford, em Massachussets, ficava longe de Nova Iorque.

E quando é que legaliza a sua situação nos Estados Unidos?

Terá sido, talvez, em 1940. Fui lá à inspecção militar por três vezes, durante a II Guerra Mundial. Mas, como já tinha à volta de 30 anos... Eles levavam só os mais novos, não precisavam dos mais velhos. Lembro-me de que fui recebido por um capitão do exército americano.

Mas nessa altura ainda não tinha a nacionalidade americana?

Não, não. Continuava clandestino. Isso foi mais tarde, em 1955.

Para a Guerra, porém, servia.

Pois, para aí podia ir. Nós tínhamos uma lei que dizia que qualquer cidadão português que servisse em exércitos estrangeiros perdia a sua nacionalidade. E eles, lá, sabiam disso.

O tal capitão diz-me assim: "Afinal, porque é que não te legalizas?". E eu respondi-lhe: "Isso queria eu. Mas como?". "Tu não tens um amigo padre?", perguntou-me ele. E eu tinha, de facto. Era o padre Cacella, da capela de Saint Anthony, em Nova Iorque.

"Então – explicou-me o capitão – diz-lhe que te faça uma carta e vai entregá-la a este sítio". Era a Catholic Welfare Association. O padre Cacella fez-me a carta e eu lá fui, para falar com um outro padre, um irlandês chamado Mullholand.

Quando lá cheguei, o padre Mullholand não estava. Estava lá uma rapariga, que se chamava Nossia. Ela devia ter já nascido nos Estados Unidos, mas era descendente de italianos. Diz-me ela: "Olhe, o padre não está cá, mas deixe ficar aí a carta que eu entrego-lha. Depois logo se vê". Eu não tinha fé nenhuma naquilo.

A Catholic Welfare Association ajudava pessoas necessitadas. As pessoas que lá trabalhavam eram voluntárias, saiam dos seus empregos e iam para ali trabalhar uma ou duas horas gratuitamente.

Daí a uns 15 dias, apareceu-me um postal a convocar-me. Voltei lá. E o padre Mullholand, mais uma vez, não estava. Voltei a ser recebido pela Nossia. "Isto parece que está bem encaminhado. Já mandámos isto para a Imigração", explicou-me ela. Duas semanas depois chamaram-me.

"Olhe, tire tantas fotografias. Tem de arranjar duas testemunhas que o conheçam há mais de cinco anos para o levar à Imigração. É também preciso comprovar que o senhor não pertence a partidos comunistas", explicaram-me.

Pois, porque nessa época...

Era perigoso.

Lá fui. Foram comigo um rapaz que era de Gouveia e um outro, que era minhoto. Já morreram os dois. Lá fui à Imigração.

Explicaram-me que tinha de ir a um país estrangeiro para depois poder voltar a entrar legalmente nos Estados Unidos. Assim já podia entrar na quota pertencente ao meu país. Naquele tempo era de quatrocentos e tal, não chegava a 500. Assim foi. Disseram-me eles: "Bem, pode ir à sua terra, se quiser. Fica-lhe mais caro. Pode ir a Cuba, mas também lhe fica mais caro. Vá ao Canadá, que fica mais barato. Vai de manhã e volta à noite" (risos).

Lá fui para o Canadá. Saí de Nova Iorque às oito da manhã e às oito da noite já lá estava outra vez, com o passaporte americano na mão. No Canadá, o cônsul americano tinha que telefonar para Washington para saber qual era o número que me cabia. Pagávamos um dólar, que era o custo da chamada para a Imigração, em Washington.

Chego a Nova Iorque e digo: "Já estou aqui porreiro!" (risos). Estive lá aqueles anos todos e nunca fui incomodado.

Em que zona de Nova Iorque é que vivia, nessa altura?

Vivia em Canal Street. O meu trabalho era na 46th Street. Vivia numa república. Vivia lá, também, um rapaz aqui do Monte Redondo. Havia dois do Colmeal, um do Cadafaz, eu, dois algarvios, um de ao pé de Castelo Branco, outro de Ferreira do Zêzere. Tínhamos de fazer as caminhas, só tínhamos um fogãozito pequeno. Era uma casa com sete divisões. Casa de banho é que não tinha. Só tinha sanitas; e era um tal beco, que mal lá cabíamos.

continua...

sexta-feira, maio 21, 2004

«Mais do que prometia a força humana» I

O velho patriarca move-se com cuidadoso vagar, sopesando os caprichos do trajecto; a vista, desgastada de tantos mundos, já pouco o ajuda. Dispõe a bengala num canto do sofá, senta-se com o mesmo vagar que o trouxe ali e inclina-se para o gravador: "Bom, no que eu puder ajudar...". Depois, rasga um sorriso de Sinatra, indiferente à erosão dos anos.

Alberto Martins Afonso Neves nasceu em Abril de 1908 na aldeia do Tarrastal, freguesia do Cadafaz (Góis); escassos dois meses antes, o rei D. Carlos e o príncipe D. Luís Filipe haviam sido atravessados, no Terreiro do Paço, em Lisboa, pelas balas disparadas por Alfredo Costa e o Buiça.

Burilado pela aspereza da vida beirã do princípio do século XX, faz-se homem precoce. Aos 12 anos, incapaz de suster a vontade quase febril, atravessa pela primeira vez o Atlântico. Fará da travessia a sua vida.

Hoje, com 96 anos, recusa-se a deixar desertar o viço da memória. E ainda estremece quando recorda o frio do Atlântico Norte, o gelo que cobria as paredes férreas de um porão de navio recheado de clandestinos com pouco mais que sonhos para se alimentarem. Pergunto-lhe se voltaria, sabendo o que a vida lhe ensinou, a trocar os casarios de xisto pelo vislumbre das torres de Manhattan e das pontes sobre o Hudson. Desassombra-se e responde: "Pois voltava".

Fale-me da sua infância. Como era a sua vida nos verdes anos?

Segundo me contava a minha mãe, nasci no dia 17 de Abril de 1908, a uma sexta-feira. Numa sexta-feira santa. Criei-me em casa, com a minha mãe. O meu pai estava emigrado no Brasil.

A minha mãe chamava-se Beatriz Afonso Neves e o meu pai Manuel Martins Júnior. O meu pai era estabelecido em São Paulo, no Brasil. Eu vivia com a minha mãe.

Ao que julgo saber, teve um irmão...

Pois. Morreu muito antes de eu nascer. Nem cheguei a conhecê-lo. Morreu com três anos. Acho que morreu com a pneumónica, ou uma coisa assim; aquelas doenças da época...

Como eram os seus dias, em criança?

Trabalhava de manhã, antes de ir para a escola. Começava por ir tratar dos animais, ceifar erva. Às vezes, ainda ia buscar um molho de mato, ou um molho de lenha. E às nove horas tinha que estar na escola; levava meia hora. Às três horas, regressava ao Tarrastal, já a minha mãe estava à espera que eu chegasse para me mandar fazer qualquer trabalho no campo. Assim era.

Que recordações guarda do tempo dos bancos da escola?

Entrei para a escola aos sete anos. Naquela altura, entrava-se com essa idade, não havia o pré-escolar, nem nada disso. A escola era situada no lugar do Cadafaz, sede da freguesia. Era única para as nove povoações da freguesia. Escola feminina não havia. Eu era o único aluno do Tarrastal que frequentava a escola diariamente. Havia mais uns quantos, das povoações em redor.

O professor, que se chamava Manuel Luís Júnior, era natural do Colmeal, Góis, e casado na Sandinha, onde vivia.

Fiz o exame do segundo ano em Góis. Depois continuei até fazer a quarta classe. Fui fazer o exame a Arganil, mais um outro que já faleceu, o Carlos Simões Folgosa. Fomos os únicos que foram fazer a quarta classe. Feito o exame, regressei à terra e continuei a viver com a minha mãe.

Entretanto, o meu pai veio visitar a família. Esteve cá quase um ano. E eu não me sentia bem ali; queria qualquer coisa onde pudesse ganhar uns escudos...

Quando é que emigra pela primeira vez?

Veio então o meu pai do Brasil e, como eu tinha vontade de sair do Tarrastal, levou-me com ele. Tinha 12 anos. Fui trabalhar para a oficina [de mármores] dele em São Paulo.

Fui com o meu pai no navio Hindenburg. Era um barco alemão, uma coisa já muito velha, muito suja. Tratavam-nos mal. Tínhamos que ir buscar a comida à cozinha. Juntavam-se seis e, a cada dia, iam lá buscar a lata da comida. Davam-nos um jarrão de vinho, e aquilo nem era vinho nem era nada, era uma água. Aquilo vinha tudo numa bacia de zinco. E a gente comia dali; todos comiam da "masseira" (risos).

Nessa viagem enjoei e apanhei uma camada de piolhos. Na Madeira, o barco não atracava, ficava para aí a uma distância de 100 metros do cais, ou coisa assim. Havia por ali uns vendedores de fruta com uns barquinhos, que se encostavam ao navio e vendiam laranjas e tangerinas. O meu pai comprou-me um quarteirão de tangerinas. Comi-as todas! Ia enjoado...

No Brasil trabalhava, então, na oficina do meu pai, em São Paulo. Ele tinha dois sócios: um era o meu padrinho, José Maria Barata, e o outro, Manuel Nunes, era meu primo.

Estive lá seis meses. Davam-me cama, mesa e roupa lavada. Depois, o meu pai resolveu vender a sua parte aos outros sócios e regressar ao Tarrastal. Vim com ele. Mas eu não me sentia bem a trabalhar no campo, continuava a querer uma coisa melhor. Queria voltar a emigrar.

Quando regressa a Portugal, volta a trabalhar no campo?

Aparece um senhor, Gentil Lopes Nunes, que já era estabelecido no Cadafaz com uma loja de fazendas e vinhos. E entusiasma o meu pai a ir comprar um negócio em Arganil, uma coisa de fazendas, mercearia e outras miudezas. O meu pai aceitou e deixou-me lá, em Arganil, a substitui-lo. Mas nesse tempo o negócio era fraco. Pouco se vendia...

Aquilo não dava para os dois. O meu pai acabou por vender a quota ao outro sócio, que, passado um tempo, resolveu fechar e ir para África. Julgo que foi para a Guiné-Bissau. E eu regressei ao Tarrastal. Mas é claro: eu não me sentia bem. Tentei ir outra vez para o Brasil. Lá convenci os meus pais a autorizarem-me.

Vai para o Brasil, também, para saldar uma dívida...

Uma dívida que era do meu pai, que perdeu muito dinheiro com esse negócio em Arganil.

Eu nem sequer tinha dinheiro para a passagem. Pedi ao meu pai que falasse com o meu tio, o tenente Afonso Neves, para que este me emprestasse dinheiro. O meu pai disse-me logo que não pedia mais, pois ainda estava a dever do negócio que tinha fracassado. Tive que ser eu a pedir o dinheiro ao meu tio – três mil escudos para a passagem e para viver até arranjar trabalho.

Tratei dos papéis e embarquei pela segunda vez. Devia ter aí uns 15 ou 16 anos.

Onde é que arranjou trabalho?

Tinha lá um amigo, que eu conhecia aqui de Arganil, o Alberto Moreira. Ele estava estabelecido com uma quitanda onde vendia fruta, carvão, ovos... Vivia em Niteroi. Pagava-me a comida e as passagens. E eu vinha para o Rio de Janeiro a ver se encontrava trabalho. Arranjei, depois, na Light, que era uma companhia inglesa de carros eléctricos. Mas aquilo não tinha uma linha certa, era só quando faltava outro empregado.

E quando é que surge a ideia de partir para os Estados Unidos?

Entretanto começo a travar conhecimento com uns rapazes que queriam ir para a América. Eles conheciam uns imigrantes, que trabalhavam num navio de carga. Levavam-nos do Brasil para os Estados Unidos por uma quantia de 500 dólares por homem. Assim foi. Combinou-se tudo.

Éramos 10. Um dia, chegaram lá os homens do navio – penso que trabalhavam na cozinha – e disseram: "É hoje! Às tantas horas, estejam preparados!". Foram buscar-nos a casa de um português, que tinha lá um restaurante.

Entrámos para o navio e meteram-nos, então, num tanque que, quando não havia carga para transportar, se enchia de água para fazer o calado. Mas eles só nos levavam alguma comida, daquela que sobrava da tripulação. Passavam-se dois ou três dias sem que nos levassem nada...

Essa foi uma viagem na clandestinidade...

Na clandestinidade! Íamos todos clandestinos. Até Trinidad, a temperatura era quente e ia-se lá bem. Mas ficámos logo todos nus, que a roupa molhou-se toda.

No convés, havia umas escadas que davam acesso ao tanque e aquilo era aparafusado com uma tampa. Ora, mesmo que quiséssemos sair, não podíamos. Dez homens a respirar aquele ar durante 29 dias...

Depois, já a chegar aos Estados Unidos, era o frio. A água escorria pelo ferro abaixo e ficava toda congelada em barras. E a gente sem cama, sem nada. No ferro... Se soubesse o que ia passar, não me tinha metido naquilo. Mas, como já não se podia sair, ou morríamos ou esperávamos.

Um dia, chega lá um deles e diz: "Pronto! Hoje, às tantas horas, preparem-se, que vamos fazer a barba!". Ora, para os primeiros, ainda a navalha estava mais ou menos afinada, mas os outros... Aquilo era um sacho a raspar a cara.

Foram, então, comprar-nos uma bóina. Os fatos que levávamos estavam completamente encharcados.

Isso acontece em que ano?

Foi em 1930. Cheguei à América em Abril de 1930.

Entretanto, levaram-nos para a cozinha do navio, que tinha aquecimento. Caíram todos menos eu e o Miranda, que tinha um irmão na América, a trabalhar na Chevrolet. Só nós é que ficámos de pé, mas só trazíamos pele e osso. Nunca passei fome na vida, a não ser ali, naquela viagem. Às duas da manhã, um homem do navio vira-se para nós e diz: "Preparem-se, que vamos sair!". Um frio daqueles e só com uma bóina na cabeça, em camisa...

Depois de 29 dias de fome...

Meteram-nos lá numa casa de gente espanhola, em New Jersey. Era só atravessar o Hudson. Eu não tinha os 500 dólares para pagar aos homens do navio. Tinha escrito a uns primos, que estavam em Nova Iorque, a pedir que me ajudassem. "Venha, venha, que alguma coisa se há-de arranjar", responderam-me.

Ora, os homens do navio queriam saber onde morava o meu amigo. Queriam saber se estava mesmo resolvido a pagar os 500 dólares da minha viagem. Se não pagasse, voltava para trás, era recambiado.

Aquilo era numa república onde viviam só portugueses. Fizeram, então, uma colecta entre todos e arranjaram os 500 dólares para pagar aos homens. Eles viraram-se para mim e disseram-me: “Ó Alberto, olhe que de você é que nós tínhamos mais receio e afinal foi o melhor. Tome lá 50 dólares e vá comprar um fato”. Bem, com 50 dólares, nesse tempo, até comprava dois fatos.

E o que é que passa pela cabeça de um jovem, oriundo do Tarrastal, ao deparar-se com Nova Iorque?

Aquilo era um colosso! Fiquei admirado com tudo aquilo...

Contudo, nessa época, os Estados Unidos estavam a braços com a Depressão...

Não havia trabalho, não havia nada. Na altura do Hoover, aquilo era uma miséria. Estava parado. No fim da I Guerra Mundial, a vida, lá, era muito difícil.

Escolhe, portanto, a pior altura possível para ir para os Estados Unidos. Mesmo assim arrisca.

Pois arrisquei. Porque o que eu queria era safar-me da minha vida anterior. Cheguei a Nova Iorque com 110 contos de dívida! Só ao cabo de sete anos é que consegui liquidá-la. E ainda tive de ir para as minas de carvão, onde trabalhei com um amigo, o Alfredo Costa, dos Cepos; era tio do Simões, do Benfica.

Já nos Estados Unidos, o que é que começou por fazer?

Os primeiros trabalhos eram só por uns dias, uma hora aqui, outra hora ali. Era na construção civil. Depois, um rapaz amigo, que era algarvio e já lá estava havia muito anos, deu-me uma ajuda. No Verão, trabalhava na construção civil. No Inverno, trabalhava no cais, na descarga.

Começou o Verão e ele disse-me: "Ó Alberto, você quer ir para o meu lugar?". Aquilo era um grupo de homens que trabalhavam em conjunto; chamavam-lhe piece-work, uma espécie de empreitada. Quanto mais descarregassem, mais recebiam. Disse logo "sim senhor" e lá fui.

Estavam lá uns rapazes de outro grupo, todos da Murtosa. Uns invejosos... Quando me viram, começaram logo a cochichar. Percebi logo que estavam a falar de mim. Eu era um palito, magro, tinha chegado havia pouco tempo e era já fraco por natureza. Ouvi um deles dizer assim: "Este não passa cá a noite". E ainda não tinha começado!...

"Serei assim tão reles?", pensei eu. Entretanto, comecei a trabalhar. Estávamos na época de Inverno e o meu grupo era o número 30. No Verão, só trabalhavam os grupos até ao número três ou cinco. Custou-me tanto...

Aquilo eram uns carros com dois varais de cada lado e duas rodas de borracha. Se a maré estivesse mais ou menos à altura do cais, onde se descarregava, a coisa ainda ia bem. Mas quando ela estava mais alta, aquela prancha...

Havia, também, umas plataformas de onde se descarregavam os comboios que vinham da Califórnia e da Florida. Com a prática, aprendíamos a dar o balanço necessário. Mas, sem prática, arcávamos com aquele peso todo nos braços.

E não era propriamente um rapaz encorpado...

Pois não, pois não. Eram cargas pesadas. Chegávamos a carregar oito caixas de laranja. Até uva branca de Portugal lá chegava; ia metida em serradura.

O primeiro dia foi duro...

Lá passei o primeiro dia. Aliás, as descargas eram feitas de noite, e nesse tempo ainda era tudo transportado a cavalo. Cheguei a casa, de manhã, e pensei: "Não posso com isto!".

Mas depois comecei a ganhar prática e aquilo já era uma beleza. Depois, até mandava com os varais nos gajos (risos). Havia lá um, chamado Gracindo, que era mau como as cobras. Viro-me para ele e atiro-lhe: "Olhe que eu ainda cá estou. Vocês diziam que eu não passava cá a noite, mas já lá vão quase seis meses". Diz o gajo para mim: "Porra, olhe que você enganou-me. Nunca pensei".

Havia as tais pranchas no cais, para onde vinham os vagões. Eram necessários quatro homens para acarretar com aquilo. Tínhamos uns hooks (ganchos). Certa vez, houve um diabo que deixou escapar o hook, que me veio esborrachar um dedo do pé. Tive que ir ao médico do posto local, que, com uma espécie de alicate, acabou de arrancar aquela porcaria. Eram cá umas dores... Mas, se parasse, perdia o grupo. Fui trabalhar.

continua...

quinta-feira, maio 20, 2004

Terreiro do Paço

"Isso dos socialismos não é mais que um exercício de incoerência!", espumava o velho, quase apopléctico, na direcção de um rosto também antigo, mas ceráceo. De pé nas entranhas suadas de um autocarro amarelo, mal lograva suster a verticalidade, já de si abalada pela conspiração da lordose com o mosto madrugador fermentado no fígado.

O outro, sentado e cheio de uma calma inexpugnável, fingia estudar fachadas pombalinas e remendos de asfalto. Depois, voltando-se para o velho irado, recitava: "O capitalismo multiplicou por toda a parte as desigualdades, a dependência económica e política, a alienação e a desagregação sociais. E ameaça o futuro da humanidade através do rápido esgotamento dos recursos naturais, da destruição da natureza e da poluição do ambiente".

A ladainha saía em tufos de voz grave. "Irritante!", pensava o velho, apertando com dedos secos de antiguidade os estribos do autocarro. Lutava por cercear os ácidos. Porém, e apesar do intento espartano, descerravam-se-lhe os lábios num disparo de perdigotos e imprecações. "Não venha para aqui com arengas marxistas, que por vontade desses bandoleiros íamos todos para a Sibéria!".

Ao fundo, pratas e acobreados de luz vogavam na espuma do Tejo e rendiam, ao mesmo tempo, as fachadas da Baixa no ritual do interlocutor impassível. Que devolvia: "Liberdade, igualdade e solidariedade são os grandes ideais do socialismo e realizam-se na democracia. Não há verdadeira democracia sem socialismo, nem socialismo autêntico sem democracia".

"Você vem armado em poeta, mas olhe que não há Tágides que o acudam. Apesar de uma ou outra contrariedade, a casa, se calhar, nunca esteve tão arrumada como agora e isso é que vos custa. Estamos fartos de incoerentes e de revolucionários de bolso!". Os dardos voavam em torrente, mas pareciam perder-se num éter intangível, algures entre o obliterador mecânico e os salpicos de óleos queimados no vidro traseiro.

Imperturbável, a voz pausada voltava à refrega: "A luta pela igualdade supõe que de uma vez por todas o trabalhador deixe de ser visto como mero objecto da economia e passe a ser considerado como sujeito activo da ordem social e jurídica".

E assim continuaram: o primeiro a rogar pragas bíblicas a inconsequentes ideológicos; o segundo, irónico e incomparavelmente mais ácido, a citar de memória o programa do PPD de Sá Carneiro. Ambos cheios de razão.

quarta-feira, maio 19, 2004

Antes

Dois vezes um... dois. A grafite a sulcar quadrículas bordejadas de borracha verde. Dois vezes dois... quatro. Molas aplicadas na bombazina; um braço gordo de avó a tentar embalar a prensa a dois tons de multiplicação. Enxertados a linha branca, chapéus de ganga descansam sobre a mesa de carvalho, transpirando vapores de um ferro recente. O tampo esculpido como a terra do quintal à força de um giz quase pétreo, igual às pedras da calçada abraçadas por ervas rebeldes para lá da porta; moldes de abas e palas redesenhados aos domingos com o coto incandescente de um Definitivo a calejar lábios gretados de avô; o traço de pó branco estigmatiza tecidos como a grafite nas quadrículas. Chapéus de xerife; lá fora, o Sol vai de olmo em olmo até soprar uma centelha nas estrelas de latão cerzidas à testa. Dois vezes três, a grafite detém-se e há dedos que cabeceiam polegares num cálculo indolente. O transístor cospe um refugo fanhoso de onda média; três pancadas de um bombo somadas a três dedos; dá seis. Dois vezes três... seis. E o lápis soçobra de cansaço e de enfado sobre a folha do caderno. Agora, cumprida a pena decretada no quadro negro da escola, há que enfunar velas e medir a distância para o corsário inimigo. O quintal torna-se galeão e começa a rasgar oceanos até à hora do lanche.

terça-feira, maio 18, 2004

Retornar...

"Todo o pensador profundo receia mais o facto de ser compreendido do que ser mal entendido. No último caso talvez sofra a sua vaidade; mas no primeiro é o seu coração, a sua simpatia pelos outros que diz sempre: Ah, porque quereis vós que as coisas vos sejam tão difíceis como para mim?".

F. Nietzsche - PARA ALÉM DE BEM E MAL

Adenda: não me pareceu acertado retomar a "pena" sem lavar o rosto deste espaço.

domingo, maio 09, 2004

ÉDITO

Decidi, finalmente, encerrar o edifício para obras. Era inevitável. Deixo um aviso: não é líquido que O Sedentário sobreviva aos trabalhos; tão-pouco que "esta" face do seu lavrador continue a manobrar o leme. Até breve (ou não).

sexta-feira, maio 07, 2004

Por terra

Uma única questão vem corroendo, desde os primeiros sopros do vento matinal, o bolbo que me recheia a cabeça: quantos golpes deve o contendor prostrado receber antes de ver proclamada ao reino a sua derrota?

quinta-feira, maio 06, 2004

...De, para (II)

Pois. O pescador, há muito cativo do alcatrão e da nicotina, sabia-se varado pelo diagnóstico. Pela condenação. Porque aquele críptico arrazoado do catedrático, metastases para aqui, crises hemorrágicas para ali, não passava disso mesmo, uma sentença de morte. O pescador, cheio da plácida lógica que os livros não ensinam, já se via a esbracejar em vão no meio de redemoinhos e correntes de insanável capricho; e a água salgada a invadir-lhe o estranho pipo talhado a bisturi.

O médico, autoridade veneranda no que a válvulas e canais dizia respeito, prometeu compor-lhe a goela sem comprometer artes e sortes. Apelou aos seus canhenhos mais antigos, que lhe vergavam as estantes do gabinete, traçou estratégias em papel vegetal e decidiu-se a aplicar uma faraónica engenharia na laringe aprisionada do lobo do mar, que, daí a semanas, já entretecia redes no cais. Depois disso, o médico passou a receber, todos os anos por alturas do Estio, uma ou duas caixas de suculento marisco. Esta contou-ma o cirurgião a golpes de voz ciciada de tamanha comoção. Dá-se. Recebe-se. Às vezes.

segunda-feira, maio 03, 2004

De, para...

Desconcertas-me. Se antes, sem dúvidas e quebrantos, farias o contrário, elevando-me a pódios de glória - todo eu aspergido de águas bentas e pétalas de camélias, tu pagando promessas em passadeiras marmóreas com joelhos ensanguentados de carne exposta -, agora apareces-me em sonhos nebulosos; nem logro perceber se és mesmo tu, acenando-me do mar alto, na crista engalanada de uma onda rendada de um branco de pétalas de rosa; ao invés de camélias. Em branco. Como Moltke; lembras-te do general? O Marne correu-lhe mal. Em branco. Como o pescador, também. E olha que esta contaram-ma a golpes de voz ciciada. Ao pescador, esse que me apresentaram ao ouvido, queriam esmiuçar a laringe, a ver se permutava ar e venenos numa espécie de Marne pelo direito a existir e contra as pinças de um cancro tenaz. Olhando o médico com pálpebras quebradiças de tristeza, o pescador retorquiu o que havia a retorquir. Que jamais tornaria ao mar com a goela feita flauta de pastoreio. Porque se às águas fosse votado, digamos por uma onda menos afeita a traineiras, não teria como vedar os bofes. "Mais valia que me matasse de vez", disse. Não te conto, para já, o resto, que não quero desconcertar-te.