O velho patriarca move-se com cuidadoso vagar, sopesando os caprichos do trajecto; a vista, desgastada de tantos mundos, já pouco o ajuda. Dispõe a bengala num canto do sofá, senta-se com o mesmo vagar que o trouxe ali e inclina-se para o gravador: "Bom, no que eu puder ajudar...". Depois, rasga um sorriso de Sinatra, indiferente à erosão dos anos.
Alberto Martins Afonso Neves nasceu em Abril de 1908 na aldeia do Tarrastal, freguesia do Cadafaz (Góis); escassos dois meses antes, o rei D. Carlos e o príncipe D. Luís Filipe haviam sido atravessados, no Terreiro do Paço, em Lisboa, pelas balas disparadas por Alfredo Costa e o Buiça.
Burilado pela aspereza da vida beirã do princípio do século XX, faz-se homem precoce. Aos 12 anos, incapaz de suster a vontade quase febril, atravessa pela primeira vez o Atlântico. Fará da travessia a sua vida.
Hoje, com 96 anos, recusa-se a deixar desertar o viço da memória. E ainda estremece quando recorda o frio do Atlântico Norte, o gelo que cobria as paredes férreas de um porão de navio recheado de clandestinos com pouco mais que sonhos para se alimentarem. Pergunto-lhe se voltaria, sabendo o que a vida lhe ensinou, a trocar os casarios de xisto pelo vislumbre das torres de Manhattan e das pontes sobre o Hudson. Desassombra-se e responde: "Pois voltava".
Fale-me da sua infância. Como era a sua vida nos verdes anos?
Segundo me contava a minha mãe, nasci no dia 17 de Abril de 1908, a uma sexta-feira. Numa sexta-feira santa. Criei-me em casa, com a minha mãe. O meu pai estava emigrado no Brasil.
A minha mãe chamava-se Beatriz Afonso Neves e o meu pai Manuel Martins Júnior. O meu pai era estabelecido em São Paulo, no Brasil. Eu vivia com a minha mãe.
Ao que julgo saber, teve um irmão...
Pois. Morreu muito antes de eu nascer. Nem cheguei a conhecê-lo. Morreu com três anos. Acho que morreu com a pneumónica, ou uma coisa assim; aquelas doenças da época...
Como eram os seus dias, em criança?
Trabalhava de manhã, antes de ir para a escola. Começava por ir tratar dos animais, ceifar erva. Às vezes, ainda ia buscar um molho de mato, ou um molho de lenha. E às nove horas tinha que estar na escola; levava meia hora. Às três horas, regressava ao Tarrastal, já a minha mãe estava à espera que eu chegasse para me mandar fazer qualquer trabalho no campo. Assim era.
Que recordações guarda do tempo dos bancos da escola?
Entrei para a escola aos sete anos. Naquela altura, entrava-se com essa idade, não havia o pré-escolar, nem nada disso. A escola era situada no lugar do Cadafaz, sede da freguesia. Era única para as nove povoações da freguesia. Escola feminina não havia. Eu era o único aluno do Tarrastal que frequentava a escola diariamente. Havia mais uns quantos, das povoações em redor.
O professor, que se chamava Manuel Luís Júnior, era natural do Colmeal, Góis, e casado na Sandinha, onde vivia.
Fiz o exame do segundo ano em Góis. Depois continuei até fazer a quarta classe. Fui fazer o exame a Arganil, mais um outro que já faleceu, o Carlos Simões Folgosa. Fomos os únicos que foram fazer a quarta classe. Feito o exame, regressei à terra e continuei a viver com a minha mãe.
Entretanto, o meu pai veio visitar a família. Esteve cá quase um ano. E eu não me sentia bem ali; queria qualquer coisa onde pudesse ganhar uns escudos...
Quando é que emigra pela primeira vez?
Veio então o meu pai do Brasil e, como eu tinha vontade de sair do Tarrastal, levou-me com ele. Tinha 12 anos. Fui trabalhar para a oficina [de mármores] dele em São Paulo.
Fui com o meu pai no navio
Hindenburg. Era um barco alemão, uma coisa já muito velha, muito suja. Tratavam-nos mal. Tínhamos que ir buscar a comida à cozinha. Juntavam-se seis e, a cada dia, iam lá buscar a lata da comida. Davam-nos um jarrão de vinho, e aquilo nem era vinho nem era nada, era uma água. Aquilo vinha tudo numa bacia de zinco. E a gente comia dali; todos comiam da "masseira" (risos).
Nessa viagem enjoei e apanhei uma camada de piolhos. Na Madeira, o barco não atracava, ficava para aí a uma distância de 100 metros do cais, ou coisa assim. Havia por ali uns vendedores de fruta com uns barquinhos, que se encostavam ao navio e vendiam laranjas e tangerinas. O meu pai comprou-me um quarteirão de tangerinas. Comi-as todas! Ia enjoado...
No Brasil trabalhava, então, na oficina do meu pai, em São Paulo. Ele tinha dois sócios: um era o meu padrinho, José Maria Barata, e o outro, Manuel Nunes, era meu primo.
Estive lá seis meses. Davam-me cama, mesa e roupa lavada. Depois, o meu pai resolveu vender a sua parte aos outros sócios e regressar ao Tarrastal. Vim com ele. Mas eu não me sentia bem a trabalhar no campo, continuava a querer uma coisa melhor. Queria voltar a emigrar.
Quando regressa a Portugal, volta a trabalhar no campo?
Aparece um senhor, Gentil Lopes Nunes, que já era estabelecido no Cadafaz com uma loja de fazendas e vinhos. E entusiasma o meu pai a ir comprar um negócio em Arganil, uma coisa de fazendas, mercearia e outras miudezas. O meu pai aceitou e deixou-me lá, em Arganil, a substitui-lo. Mas nesse tempo o negócio era fraco. Pouco se vendia...
Aquilo não dava para os dois. O meu pai acabou por vender a quota ao outro sócio, que, passado um tempo, resolveu fechar e ir para África. Julgo que foi para a Guiné-Bissau. E eu regressei ao Tarrastal. Mas é claro: eu não me sentia bem. Tentei ir outra vez para o Brasil. Lá convenci os meus pais a autorizarem-me.
Vai para o Brasil, também, para saldar uma dívida...
Uma dívida que era do meu pai, que perdeu muito dinheiro com esse negócio em Arganil.
Eu nem sequer tinha dinheiro para a passagem. Pedi ao meu pai que falasse com o meu tio, o tenente Afonso Neves, para que este me emprestasse dinheiro. O meu pai disse-me logo que não pedia mais, pois ainda estava a dever do negócio que tinha fracassado. Tive que ser eu a pedir o dinheiro ao meu tio – três mil escudos para a passagem e para viver até arranjar trabalho.
Tratei dos papéis e embarquei pela segunda vez. Devia ter aí uns 15 ou 16 anos.
Onde é que arranjou trabalho?
Tinha lá um amigo, que eu conhecia aqui de Arganil, o Alberto Moreira. Ele estava estabelecido com uma quitanda onde vendia fruta, carvão, ovos... Vivia em Niteroi. Pagava-me a comida e as passagens. E eu vinha para o Rio de Janeiro a ver se encontrava trabalho. Arranjei, depois, na
Light, que era uma companhia inglesa de carros eléctricos. Mas aquilo não tinha uma linha certa, era só quando faltava outro empregado.
E quando é que surge a ideia de partir para os Estados Unidos?
Entretanto começo a travar conhecimento com uns rapazes que queriam ir para a América. Eles conheciam uns imigrantes, que trabalhavam num navio de carga. Levavam-nos do Brasil para os Estados Unidos por uma quantia de 500 dólares por homem. Assim foi. Combinou-se tudo.
Éramos 10. Um dia, chegaram lá os homens do navio – penso que trabalhavam na cozinha – e disseram: "É hoje! Às tantas horas, estejam preparados!". Foram buscar-nos a casa de um português, que tinha lá um restaurante.
Entrámos para o navio e meteram-nos, então, num tanque que, quando não havia carga para transportar, se enchia de água para fazer o calado. Mas eles só nos levavam alguma comida, daquela que sobrava da tripulação. Passavam-se dois ou três dias sem que nos levassem nada...
Essa foi uma viagem na clandestinidade...
Na clandestinidade! Íamos todos clandestinos. Até Trinidad, a temperatura era quente e ia-se lá bem. Mas ficámos logo todos nus, que a roupa molhou-se toda.
No convés, havia umas escadas que davam acesso ao tanque e aquilo era aparafusado com uma tampa. Ora, mesmo que quiséssemos sair, não podíamos. Dez homens a respirar aquele ar durante 29 dias...
Depois, já a chegar aos Estados Unidos, era o frio. A água escorria pelo ferro abaixo e ficava toda congelada em barras. E a gente sem cama, sem nada. No ferro... Se soubesse o que ia passar, não me tinha metido naquilo. Mas, como já não se podia sair, ou morríamos ou esperávamos.
Um dia, chega lá um deles e diz: "Pronto! Hoje, às tantas horas, preparem-se, que vamos fazer a barba!". Ora, para os primeiros, ainda a navalha estava mais ou menos afinada, mas os outros... Aquilo era um sacho a raspar a cara.
Foram, então, comprar-nos uma bóina. Os fatos que levávamos estavam completamente encharcados.
Isso acontece em que ano?
Foi em 1930. Cheguei à América em Abril de 1930.
Entretanto, levaram-nos para a cozinha do navio, que tinha aquecimento. Caíram todos menos eu e o Miranda, que tinha um irmão na América, a trabalhar na Chevrolet. Só nós é que ficámos de pé, mas só trazíamos pele e osso. Nunca passei fome na vida, a não ser ali, naquela viagem. Às duas da manhã, um homem do navio vira-se para nós e diz: "Preparem-se, que vamos sair!". Um frio daqueles e só com uma bóina na cabeça, em camisa...
Depois de 29 dias de fome...
Meteram-nos lá numa casa de gente espanhola, em New Jersey. Era só atravessar o Hudson. Eu não tinha os 500 dólares para pagar aos homens do navio. Tinha escrito a uns primos, que estavam em Nova Iorque, a pedir que me ajudassem. "Venha, venha, que alguma coisa se há-de arranjar", responderam-me.
Ora, os homens do navio queriam saber onde morava o meu amigo. Queriam saber se estava mesmo resolvido a pagar os 500 dólares da minha viagem. Se não pagasse, voltava para trás, era recambiado.
Aquilo era numa república onde viviam só portugueses. Fizeram, então, uma colecta entre todos e arranjaram os 500 dólares para pagar aos homens. Eles viraram-se para mim e disseram-me: “Ó Alberto, olhe que de você é que nós tínhamos mais receio e afinal foi o melhor. Tome lá 50 dólares e vá comprar um fato”. Bem, com 50 dólares, nesse tempo, até comprava dois fatos.
E o que é que passa pela cabeça de um jovem, oriundo do Tarrastal, ao deparar-se com Nova Iorque?
Aquilo era um colosso! Fiquei admirado com tudo aquilo...
Contudo, nessa época, os Estados Unidos estavam a braços com a Depressão...
Não havia trabalho, não havia nada. Na altura do Hoover, aquilo era uma miséria. Estava parado. No fim da I Guerra Mundial, a vida, lá, era muito difícil.
Escolhe, portanto, a pior altura possível para ir para os Estados Unidos. Mesmo assim arrisca.
Pois arrisquei. Porque o que eu queria era safar-me da minha vida anterior. Cheguei a Nova Iorque com 110 contos de dívida! Só ao cabo de sete anos é que consegui liquidá-la. E ainda tive de ir para as minas de carvão, onde trabalhei com um amigo, o Alfredo Costa, dos Cepos; era tio do Simões, do Benfica.
Já nos Estados Unidos, o que é que começou por fazer?
Os primeiros trabalhos eram só por uns dias, uma hora aqui, outra hora ali. Era na construção civil. Depois, um rapaz amigo, que era algarvio e já lá estava havia muito anos, deu-me uma ajuda. No Verão, trabalhava na construção civil. No Inverno, trabalhava no cais, na descarga.
Começou o Verão e ele disse-me: "Ó Alberto, você quer ir para o meu lugar?". Aquilo era um grupo de homens que trabalhavam em conjunto; chamavam-lhe
piece-work, uma espécie de empreitada. Quanto mais descarregassem, mais recebiam. Disse logo "sim senhor" e lá fui.
Estavam lá uns rapazes de outro grupo, todos da Murtosa. Uns invejosos... Quando me viram, começaram logo a cochichar. Percebi logo que estavam a falar de mim. Eu era um palito, magro, tinha chegado havia pouco tempo e era já fraco por natureza. Ouvi um deles dizer assim: "Este não passa cá a noite". E ainda não tinha começado!...
"Serei assim tão reles?", pensei eu. Entretanto, comecei a trabalhar. Estávamos na época de Inverno e o meu grupo era o número 30. No Verão, só trabalhavam os grupos até ao número três ou cinco. Custou-me tanto...
Aquilo eram uns carros com dois varais de cada lado e duas rodas de borracha. Se a maré estivesse mais ou menos à altura do cais, onde se descarregava, a coisa ainda ia bem. Mas quando ela estava mais alta, aquela prancha...
Havia, também, umas plataformas de onde se descarregavam os comboios que vinham da Califórnia e da Florida. Com a prática, aprendíamos a dar o balanço necessário. Mas, sem prática, arcávamos com aquele peso todo nos braços.
E não era propriamente um rapaz encorpado...
Pois não, pois não. Eram cargas pesadas. Chegávamos a carregar oito caixas de laranja. Até uva branca de Portugal lá chegava; ia metida em serradura.
O primeiro dia foi duro...
Lá passei o primeiro dia. Aliás, as descargas eram feitas de noite, e nesse tempo ainda era tudo transportado a cavalo. Cheguei a casa, de manhã, e pensei: "Não posso com isto!".
Mas depois comecei a ganhar prática e aquilo já era uma beleza. Depois, até mandava com os varais nos gajos (risos). Havia lá um, chamado Gracindo, que era mau como as cobras. Viro-me para ele e atiro-lhe: "Olhe que eu ainda cá estou. Vocês diziam que eu não passava cá a noite, mas já lá vão quase seis meses". Diz o gajo para mim: "Porra, olhe que você enganou-me. Nunca pensei".
Havia as tais pranchas no cais, para onde vinham os vagões. Eram necessários quatro homens para acarretar com aquilo. Tínhamos uns hooks (ganchos). Certa vez, houve um diabo que deixou escapar o hook, que me veio esborrachar um dedo do pé. Tive que ir ao médico do posto local, que, com uma espécie de alicate, acabou de arrancar aquela porcaria. Eram cá umas dores... Mas, se parasse, perdia o grupo. Fui trabalhar.
continua...