O Sedentário

domingo, setembro 18, 2005

irmã

sábado, setembro 17, 2005

vanda

Tem certos dias em que eu penso em minha gente
E sinto assim todo o meu peito se apertar
Porque parece que acontece de repente
Como um desejo de eu viver sem me notar


A minha mãe legou-me uma gravura do Rossio antigo - senhoras de espartilho e sombrinha, homens de chapéu de coco e bigodes de merceeiro, que engraçado; o amarelo de uma velhice de sótão. Fê-lo dois dias e três quartos de hora antes de naufragar numa tosse funda, um eco de gruta húmida do quarto para o corredor, do corredor para a cozinha, da cozinha para os plásticos encardidos que forravam prateleiras de aglomerado na marquise e daí para os meus ouvidos, que nem tapados pelas mãos em conchas – recolhia-as aos domingos de mão dada com o meu pai, conchas e pedrinhas pequeninas e pálidas por entre a nafta da Cova do Vapor - podiam fugir ao sortilégio da morte gemebunda; lembro-me dos grumos de um sangue de breu que lhe besuntavam as pregas das bochechas com córregos preguiçosos, enquanto eu regava estrelícias e uma costela de Adão como se nada fosse, como se a minha mãe não tardasse no portãozinho do quintal que rangia se o empurrássemos devagar, talos de couve e o rabo tísico de um bacalhau a espreitar da alcofa, um tlec-tlec nervoso entre os calcanhares e os tamancos.
- Larga o rádio e põe-me a mesa, sua imprestável - e eu a assobiar o Buarque e o Vinicius.
Tlec-tlec, tlec-tlec.
De modo que a gravura é tudo o que dela sobeja. Paguei-lha como pude, com lágrimas, visto que por essa altura o meu Fernando andava aos caídos por uma tasca tolhida na estação dos comboios de Queluz, a vomitar o desemprego e uma sopa de vinho azedo para os lancis e para as tampas dos serviços municipalizados, um fato-macaco da Lisnave que não queria despir, a carregar a mesma dignidade da viúva que bebia cariocas de limão às sete e meia num cantinho sombrio da pastelaria Trinitá.
Não se lhe ouviu uma palavra de carinho, um sempre gostei de ti, mesmo quando os sulcos da minha mão permaneciam litografados na redondeza do teu rosto, apenas um aquilo acolá é para ti e o resto é para a paróquia. De forma que arrebanhei o que pude e despejei quatro sacos de plástico e uma caixa de cartão canelado à porta do centro de dia; a minha mãe esquartejada em blusas estampadas e camisolas de lã, xailes e panos de cozinha, colares de pechisbeque e dedais; a minha mãe espalhada pelos pescoços macerados das velhinhas, pelos contentores da praça, pelos caniços numa margem do Jamor.

domingo, setembro 11, 2005

11



As franjas do Cairo são quentes. O Aeroporto Internacional do Cairo é quente; e húmido. A roupa é fardo pesado sobre corpo abatido. Ao cabo de cinco horas pouco reconfortantes a bordo de um colossal 747, abordámos o alcatrão do Aeroporto, lestos e sorridentes, apesar do bafo infernal da noite.

As franjas do Cairo têm cheiro. O Aeroporto Internacional do Cairo tem um cheiro que não podemos identificar. Porque é novo. Porque a virgindade dos pulmões é violada de uma forma paulatina. Invade-nos, o aroma. É um misto de ténue putrefacção e de raras e exóticas especiarias. É um cheiro de morte lenta, porém aprazível. Uma eutanásia de dióxido de carbono; exóticas especiarias, as mesmas que viríamos a buscar numa rua febril de Assuão, pórtico para a vertigem de beleza do Nilo.


Setembro de 2003
Lembras-te?

terça-feira, setembro 06, 2005

Waltz for Debby


Os contornos dos teus lábios no desenho de um sorriso e dos teus olhos tão vivos, indeléveis, persistentes nas madrugadas insones, como sonhos de guerra de que não nos livramos - pudesse eu despedir-me da existência por um punhado de horas. Manhã: cinzento morrediço e gotas pobres sobre telhados e terraços, colinas de calçada portuguesa e guarda-chuvas que caminham por si, sem gente por baixo, circunferências coloridas e espigões de alumínio numa procissão em desordem.

O Jazz aqui ao lado, ou numa cave de Nova Iorque há mais de quarenta anos. Lembras-te? Hoje, talvez por causa da chuva, lembro-me que estivemos lá, que te ajudei a despir o casaco, que observei os teus ombros pelas vielas das pálpebras e descobri, numa surpresa de menino, que eram como os de Rita Hayworth em Gilda. Depois, Bill Evans começou a tocar My Foolish Heart.

segunda-feira, setembro 05, 2005

o verbo


«Deitado junto de um grosso tronco, na encosta a cavaleiro da estrada e da ponte, Jordan aguardava o amanhecer. Sempre gostara daquela hora do dia e esperava-a com encanto; sentia o guisalhar da madrugada dentro de si, como se ele fosse parte da lenta iluminação do mundo que antecede o nascer do Sol, quando as massas sólidas escurecem, o espaço clareia e as luzes nocturnas amarelecem e desaparecem à medida que o dia nasce.»

Ernest Hemingway – POR QUEM OS SINOS DOBRAM, Lisboa 2001 P.412

Fotografia: Robert Capa, 7 de Novembro de 1938
Fonte: Peter Fetterman Gallery

domingo, setembro 04, 2005

jorge

A minha capa ondulante
feita de negro tecido,
não é capa de estudante
é mortalha de vencido.


Quatro dedos deitados do peitoril do lábio ao barranco de pele vincada na base do queixo, sobre uma estopa espessa e semeada sem método num vaticínio de safras preguiçosas - as pontas da tesoura desdobrável numa poda de feriado entre vapores de água quente e o Fado Hilário na onda média do transístor; três dedos em leque de sevilhana, ao alto, o do meio sobre um triângulo isósceles de cabeça para baixo e os restantes sobre um desenho de barba a carvão que desmaia de mês para mês como os teus lábios de encontro aos meus às terças-feiras depois das vinte e três e quarenta e cinco, velados pelo torso amputado de um padre Cruz em gesso, numa cama de ferro a queixar-se em gemidos de velhinha constipada para trás e para diante, aos sábados às dezoito e trinta e oito num breu de despensa ao abrigo das homilias da tua mãe, os anátemas de Moisés numa cacimba de saliva da boca para a agulha de barbela sobre a pétala de uma camélia de croché e a minha mão sôfrega a desarrumar bolachas de água e sal e pacotes de arroz carolino enquanto investigo os bojos do teu corpo. Assim, quatro dedos deitados e três ao alto, logro apurar a geometria de um bigode e de uma pêra que, dizem-me ao balcão do bar dos bombeiros voluntários, mitigam um par de favas de bolo-rei que despontou há um ror de anos da minha gengiva - andava eu pelos canteiros da escola a sepultar berlindes na esperança de que nascesse uma árvore e que dos ramos, perfumados de alecrim, pendessem os abafadores azul cobalto que me levariam ao prémio da tua saia soerguida numa bissectriz discreta da vedação.

sábado, setembro 03, 2005

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