AINDA SOBRE OS EXEMPLOS
O elenco governamental de Durão Barroso especializou-se na arte da governança surda, expurgada desse obstáculo embaraçoso que é a coerência. O mais recente exemplo da terraplanagem do pudor e da seriedade, por parte do Executivo coligado, veio do Ministério da Justiça, tutelado por Celeste Cardona. Que reteve, durante um ano, os descontos efectuados por 582 funcionários dos tribunais em regime de eventualidade; a bem do rigor, impõe-se dizer que os referidos funcionários laboravam em regime de qualquer coisa indefinível, uma vez que, no final de 2002, o Ministério das Finanças travou a sua contratação a termo.
É óbvio que ninguém acredita que a ministra da Justiça tenha andado, durante um ano, a fazer uma interpretação lúdica do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei 15/2001, de 5 de Junho), que ela própria, distinta fiscalista, ajudou a burilar ainda os socialistas ocupavam o Poder. Tão-pouco a questão mais importante é a de apurar se Celeste Cardona praticou ou não o crime de abuso de confiança fiscal, como advogam uns e rejeitam outros. Trata-se, tão simplesmente, de um problema de moral. Dificilmente a titular da pasta da Justiça consegue explicar por que razão insondável foi preciso esperar um ano inteiro para resolver o problema dos 582 trabalhadores. Na mais benigna das hipóteses, estamos em face de um exemplo acabado de ancilosa burocracia. O que, num Governo dito do rigor e da higiene da Administração Pública, é inaceitável; assim como é inaceitável que os responsáveis visados, com a ministra da Justiça à cabeça, não sejam capazes de reconhecer que geriram mal o processo.
É difícil definir o que é mais espantoso – o tom indignado da reacção do Ministério de Celeste Cardona ou a tibieza dos cidadãos, que olham cada vez mais resignados para as trafulhices do Poder, invariavelmente resolvidas com despachos salomónicos e expedientes remendados.
Neste caso, como noutros, fica demonstrado à saciedade que a obsessão do equilíbrio orçamental aglutina todo o Governo muito para lá dos limites do razoável. A 31 de Dezembro de 2002 terminava o regime de eventualidade dos funcionários em apreço. O Ministério da Justiça, reconhecendo a necessidade de manter os trabalhadores, propõe a contratação a termo. O Ministério das Finanças rejeita essa possibilidade. Os dois ministérios mantêm o impasse durante um ano, sendo que aos 582 funcionários são efectuados os devidos descontos (670 mil euros). Que, dada a indefinição do enquadramento contratual, são retidos pela Direcção-Geral da Administração da Justiça. Ou seja, não são entregues nem à Segurança Social nem à Caixa Geral de Aposentações. A 16 de Janeiro de 2004, a ministra das Finanças, Manuela Ferreira Leite, assina um despacho que prorroga o regime de eventualidade – com efeitos retroactivos a Janeiro de 2003 – até ao término do presente ano. Repôs-se, portanto, a ordem natural das coisas. Um ano depois...
Chamada à Assembleia da República para esclarecer a trama, a ministra da Justiça asseverou aquilo que ninguém, na plena posse das suas faculdades mentais, poderia ter posto em causa – que "a retenção está no Estado", tendo sido "utilizada apenas para cumprir obrigações sociais". Mas isto não atenua a gravidade de uma gestão excessivamente morosa do processo. Num Governo com outra noção das responsabilidades, esta ministra não teria condições para se manter no cargo.
Durante o debate mensal na Assembleia da República, o primeiro-ministro voltou a mostrar que a estratégia do Executivo se mantém inalterada – um discurso estanque, com ouvidos de mercador para as réplicas da Oposição, conduz à dissipação mais ou menos parcial das deficiências da administração. E instado pelo Bloco de Esquerda a pronunciar-se sobre Celeste Cardona, Durão Barroso limitou-se a balbuciar que mantém "plena confiança" na ministra, reconhecendo por outro lado que a demora na resolução do impasse entre os dois ministérios foi "talvez" excessiva.
Tal como diagnosticou o Presidente da República, em Portugal prevalece uma certa "ideia de que as leis são sugestões, umas vezes para cumprir outras não". Isto vale para todos. Mas uma parte substancial do país que somos sabe que as leis não são uma sugestão. A outra voga sob a capa protectora dos lugares que ocupa, flexibilizando, da porta para dentro, os princípios de rigor que quer impor da porta para fora.