O Sedentário

sábado, janeiro 31, 2004

AINDA SOBRE OS EXEMPLOS

Pode um Governo continuar a impor ao cidadão votante e contribuinte uma política de severo rigor, de austeridade, quando a sua prática parece caminhar no sentido inverso - o da trapalhada burocrática? No extremo Ocidental da Europa, cauda da União, pode.

O elenco governamental de Durão Barroso especializou-se na arte da governança surda, expurgada desse obstáculo embaraçoso que é a coerência. O mais recente exemplo da terraplanagem do pudor e da seriedade, por parte do Executivo coligado, veio do Ministério da Justiça, tutelado por Celeste Cardona. Que reteve, durante um ano, os descontos efectuados por 582 funcionários dos tribunais em regime de eventualidade; a bem do rigor, impõe-se dizer que os referidos funcionários laboravam em regime de qualquer coisa indefinível, uma vez que, no final de 2002, o Ministério das Finanças travou a sua contratação a termo.

É óbvio que ninguém acredita que a ministra da Justiça tenha andado, durante um ano, a fazer uma interpretação lúdica do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei 15/2001, de 5 de Junho), que ela própria, distinta fiscalista, ajudou a burilar ainda os socialistas ocupavam o Poder. Tão-pouco a questão mais importante é a de apurar se Celeste Cardona praticou ou não o crime de abuso de confiança fiscal, como advogam uns e rejeitam outros. Trata-se, tão simplesmente, de um problema de moral. Dificilmente a titular da pasta da Justiça consegue explicar por que razão insondável foi preciso esperar um ano inteiro para resolver o problema dos 582 trabalhadores. Na mais benigna das hipóteses, estamos em face de um exemplo acabado de ancilosa burocracia. O que, num Governo dito do rigor e da higiene da Administração Pública, é inaceitável; assim como é inaceitável que os responsáveis visados, com a ministra da Justiça à cabeça, não sejam capazes de reconhecer que geriram mal o processo.

É difícil definir o que é mais espantoso – o tom indignado da reacção do Ministério de Celeste Cardona ou a tibieza dos cidadãos, que olham cada vez mais resignados para as trafulhices do Poder, invariavelmente resolvidas com despachos salomónicos e expedientes remendados.

Neste caso, como noutros, fica demonstrado à saciedade que a obsessão do equilíbrio orçamental aglutina todo o Governo muito para lá dos limites do razoável. A 31 de Dezembro de 2002 terminava o regime de eventualidade dos funcionários em apreço. O Ministério da Justiça, reconhecendo a necessidade de manter os trabalhadores, propõe a contratação a termo. O Ministério das Finanças rejeita essa possibilidade. Os dois ministérios mantêm o impasse durante um ano, sendo que aos 582 funcionários são efectuados os devidos descontos (670 mil euros). Que, dada a indefinição do enquadramento contratual, são retidos pela Direcção-Geral da Administração da Justiça. Ou seja, não são entregues nem à Segurança Social nem à Caixa Geral de Aposentações. A 16 de Janeiro de 2004, a ministra das Finanças, Manuela Ferreira Leite, assina um despacho que prorroga o regime de eventualidade – com efeitos retroactivos a Janeiro de 2003 – até ao término do presente ano. Repôs-se, portanto, a ordem natural das coisas. Um ano depois...

Chamada à Assembleia da República para esclarecer a trama, a ministra da Justiça asseverou aquilo que ninguém, na plena posse das suas faculdades mentais, poderia ter posto em causa – que "a retenção está no Estado", tendo sido "utilizada apenas para cumprir obrigações sociais". Mas isto não atenua a gravidade de uma gestão excessivamente morosa do processo. Num Governo com outra noção das responsabilidades, esta ministra não teria condições para se manter no cargo.

Durante o debate mensal na Assembleia da República, o primeiro-ministro voltou a mostrar que a estratégia do Executivo se mantém inalterada – um discurso estanque, com ouvidos de mercador para as réplicas da Oposição, conduz à dissipação mais ou menos parcial das deficiências da administração. E instado pelo Bloco de Esquerda a pronunciar-se sobre Celeste Cardona, Durão Barroso limitou-se a balbuciar que mantém "plena confiança" na ministra, reconhecendo por outro lado que a demora na resolução do impasse entre os dois ministérios foi "talvez" excessiva.

Tal como diagnosticou o Presidente da República, em Portugal prevalece uma certa "ideia de que as leis são sugestões, umas vezes para cumprir outras não". Isto vale para todos. Mas uma parte substancial do país que somos sabe que as leis não são uma sugestão. A outra voga sob a capa protectora dos lugares que ocupa, flexibilizando, da porta para dentro, os princípios de rigor que quer impor da porta para fora.

sexta-feira, janeiro 30, 2004

MAOISMOS

Enquanto me preparava para mastigar uma omeleta de queijo, acompanhada pelo sumo da uva de Alenquer, lembrei-me de comparar registos. Assim. De repente. Apontei às estantes e subtraí um tomo. Depois fiz-me à cibernavegação e coligi umas frases. Insuficientes. Decidi, algo contrariado, recorrer às virtudes da imagem.



Em Janeiro de 1957, o primeiro, que em tempos foi herói para o segundo, dizia assim: "No desenvolvimento duma coisa, há apenas duas possibilidades, uma boa e outra má. Devemos tomar ambas em consideração quando estamos a tratar de problemas quer internacionais quer nacionais. Afirmais que neste ano haverá paz. Bem, talvez haja. Mas não seria bom que baseassem o vosso trabalho nesta premissa, mas antes, pelo contrário, deveriam tomar como base a pressuposição de que pode vir a acontecer o pior".

DITADURAS

Consternado com o aspecto ruinoso do meu guarda-roupa, decido ir comprar dois pares de calças de ganga. Vou. A bordo de uma grande superfície comercial, começo a visitar lojas, uma após outra. Ao cabo de sessenta penosos minutos de sucessivas incursões por entre cabides e escaparates, apercebo-me de que não existo – a fazer fé na escala de tamanhos disponíveis. Está em curso um genocídio de obesos.

Optimista, decido arrebanhar, numa das lojas – castelhana, por sinal -, dois ou três pares de calças com o tamanho mais elevado (48) que consigo detectar nas pilhas de tecido em saldos. Entro no gabinete de provas e a constatação anterior consubstancia-se. Os cabecilhas da conspiração contra a adiposidade certificam-se de que a temperatura no interior daquele cubículo apertado jamais desça abaixo dos 40 graus. A transpirar como um operário de uma fundição, envolvo-me num combate de morte para conseguir despir as minhas calças, o rabo e a cabeça a revezarem-se em cacetadas ruidosas nas paredes de contraplacado do pequeno caixote.

Com um rosto contorcido de esforço - que consigo ver num espelho que me devolve a imagem de uma barrica no lugar da cintura - esforço-me por lograr o matrimónio entre botão e casa. Desisto.

Por fim, já a roçar o ponto mais meridional da doença bipolar, recorro, numa outra loja, aos préstimos de uma funcionária, que começa por me mirar o vasilhame com um ar piedoso. Calculadas as medidas e sopesados os palmos da cintura redonda, dispara: vai ver se tem "em armazém". Tem. Experimento os dois pares de raridades. Servem. Levo-os para casa.

Acabo com uma sugestão: as ossudas funcionárias bem podiam encaminhar os clientes volumosos, logo à chegada, para o armazém, onde poderiam escolher os seus andrajos ao abrigo dos olhares espantados da confraria do legume e do iogurte magro...

quinta-feira, janeiro 29, 2004

"ERROS DE PROCEDIMENTO E ADMINISTRATIVOS"

Há factos que incomodam. Por serem isso mesmo: factos. Incomodam mas não demovem, longe disso. O Executivo Barroso faz do descalçar da bota uma escola da Ciência Política.

O Ministério da Justiça, encabeçado pela democrata-cristã Celeste Cardona, reteve 670 mil euros de descontos de funcionários judiciais efectuados em 2003. De acordo com o Regime Geral das Infracções Tributárias – pasme-se: elaborado, durante a governação rosa, com a colaboração da actual ministra -, esta manigância constitui um crime.

A ministra foi ao Parlamento - dar explicações, como dita o costume nestas coisas da res publica. A ministra explicou, com um semblante a meio caminho entre Teresa de Calcutá e Margaret Thatcher e o recurso a uma linguagem de abnegado funcionário, que a culpa foi das Finanças, de Ferreira Leite. Há um ano, a ministra do défice travou a contratação a termo dos 600 funcionários da Justiça, que se encontravam em regime de eventualidade. A 16 deste mês – um ano inteirinho da mais ortodoxa burocracia -, o Ministério de Manuela Ferreira Leite emite um despacho que prolonga o regime de eventualidade até ao término de 2004. Ou seja, como se lê na edição de hoje do Diário de Notícias, as Finanças foram "obrigadas e salvar Cardona".

Um ano!...

Ontem, no Público, Saldanha Sanches explicava: "Com a incriminação do abuso de confiança fiscal [Regime Geral das Infracções Tributárias], o que se quer impedir a todo o preço é que não se entreguem ao Estado quantias retidas ou cobradas. Por isso, a lei tem um tipo muito aberto incriminando sem nehumas distinções todas estas condutas. Em relação ao sector público, o legislador nunca pensou que isso pudesse suceder num ministério. Mas, quando se trata de uma empresa, quem responde é o administrador, não é o tesoureiro nem o contabilista. O MP é que tem de investigar o que fez o ministro e depois verificar se ele teve ou não responsabilidade. Trata-se de um crime público e o MP tem de constituir a ministra como arguida e, depois, logo se vê".

Apetece-me emigrar.

quarta-feira, janeiro 28, 2004

1937-1995

A ideia da morte insiste em recusar a retirada estratégica que lhe recomendei há já quarenta e oito horas. Teimosa, vai percorrendo os sulcos do bolbo cefálico como uma toupeira sagaz; cega como um paralelo de São Cristóvão e São Lourenço, mas sagaz.

O cenário do último acto é importante? Fernando Assis Pacheco acenou pela última vez ao quotidiano terreno à entrada da livraria "Bucholz". Isto é um corolário de fina arte; cai que nem ginjas em qualquer obituário. Mas a verdade é que Assis Pacheco não precisava deste ocaso dramático para nada, tal o lastro que deixou no jornalismo, na poesia, na prosa.

Por mim, não me custa nada reconhecer que – acaso tivesse nascido em pleno mofo fascista, batendo depois com os costados nas picadas de África - gostaria de ter tido o engenho de escrever isto: "Ribeiras limpas acudi-me./ Vou ficar encostado/ a esta memória de trampa./ Os meus olhos já foram brilhantes./ Sei fazer alguns versos mas nem sempre./ Eu narrador me confesso./ A guerra lixou tudo". Isto de ser um "filho da madrugada" chateia-me, uma vez que nem um cravo posso já pôr na lapela...

"Há em tudo que o autor de Memórias do Contencioso escreveu uma marca pessoalíssima. Ele é, por um lado, a atenção às pessoas, o vivíssimo olhar miúdo, capaz de ver as coisas sob um ângulo diferente, a ternura disfarçada de ironia, o humor sempre inteligente e arguto. E ele é, por outro lado, uma escrita extremamente saborosa e colorida, em simultâneo solta e rigorosa, leve como espuma e certeira como seta no alvo".

Quem é que não gostaria, de entre as almas que penam às mãos da ditadura do parágrafo, que um amigo – neste caso José Carlos de Vasconcelos (PACHECO, Fernando Assis – Retratos Falados) – escrevesse uma coisa destas, postumamente?

Curvo-me? Pois claro. Há por aí uma espécie de classe, dentro da classe, que venera o som da própria voz e o barroco da própria escrita, sopesada como se de um édito celestial se tratasse.

Em 1994, João Paulo Cotrim perguntou a Assis Pacheco qual tinha sido a entrevista que lhe apascentara mais o espírito. Respondeu assim: "Veio a ser uma entrevista publicada numa única página da revista do semanário O Jornal. Eu tinha tido aí uma secção, chamada 'Retratos Falados', com umas entrevistas longas, que davam muito trabalho, e às tantas propus umas conversas rápidas a que chamei 'Photomaton'. Numa das primeiras que fiz, vinha de uma reportagem em Espanha e cacei um pastor. Vinha com quatro ovelhas e assustou-se porque pensou que eu fosse um fiscal de alguma daquelas coisas que os alentejanos tanto temem (...) Acabei por me sentar no chão e disse: ‘Ó senhor Ludgero vamos então conversar!’ E ele: ‘Ah, é para conversar!’ Abriu-se-lhe o entendimento (...) Era um trabalhador dos mármores reformado, com silicose e portanto com graves dificuldades de respiração, que se considerava sobrevivente de um meio paupérrimo".

E a narrativa prossegue assim - escorreita, humilde. Quantos, de entre esses pedantes que se babam para as páginas da imprensa "de referência", estariam, hoje, dispostos a sentar o rabo no chão para conversar com um pastor arquejando de silicose?

Mas e o último suspiro? A ideia ainda se torna obsessão, tal a azáfama da "toupeira". "Cuidar dos Vivos", como se lê num título de Assis Pacheco. Isso é que importa. Por outro lado, tombar do cavalo à porta de uma livraria é bonito. Lá isso é...

À margem: segundo a Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios, o primeiro socialista da Humanidade "ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras". Concretamente, "apareceu a Cefas (Pedro) e depois aos doze"; mais tarde, "a mais de quinhentos". Este, por seu turno, ressuscitou ao vigésimo dia.

MEA CULPA

Como é que eu empurro para a borda do prato esta consciência da mediocridade, esta sensação de impotência ante uma resma de folhas brancas? Como é que eu faço para ultrapassar a fronteira da folha A4? Por que motivo me invade este enfado irresistível quando dou por finda a lavra do caractere número três mil?

Palavroso, sempre palavroso. Medíocre, pobre de tanta adjectivação e narizes de cera. Hoje, a opção delete your blog afigura-se-me apetecível. E não sei por que raio insisto em acreditar no meu verbo. Honestamente...

Eis a razão: descubro, a cada rotação do ponteiro mais comprido, que não adianta afinar a mira - o afago alheio não se conquista a tiro. O verbo - mais ou menos sofrível - sempre vai alicerçando o edifício.

segunda-feira, janeiro 26, 2004

SER

Eu não quero acabar assim, cativo de um colchão ensopado em suores de imobilidade, silenciado pela língua insurrecta. Lembrar-me de que existo quando o soro fisiológico é derramado em gotas frias nos meus olhos a preto e branco. Vejo-me em cenários de óbito a um virar da esquina que tarda, como as visitas tardam quando os espectros que ocupam o quarto asséptico esvoaçam sobre a cama. Atravessar as horas revoltas num esquife fendido e sem remos. Assusta-me.

A rosa de plástico na mesa-de-cabeceira dispensa a água numa imortalidade fibrosa; fá-lo enquanto o corpo torpe vai pedindo caixote de pinho mel, o messias de estanho estirado na tampa à espera das pazadas de terra. E as lágrimas extraídas a ferros por carpideiras de óculos escuros que nunca me perguntaram "como é que te chamas"; o cônsul do Céu, arqueado por baixo de rendas e paramentos bordados a ouro, a explicar-nos, num gaguejo senil, que quem morre não morre - vive sem a carcaça doente em casa da Trindade. Queria explicar-lhe, a golpes de castiçal se necessário, que não me deixam lá entrar, mas não quero atropelar as deixas do missal e os abraços de plástico – o da rosa que vagueia entre a mesa-de-cabeceira e a campa de cimento caiado.

Se o ocaso da vida é uma garrafa de plástico empalada por uma palhinha, quero arranjar forma de ir mais cedo. Não quero que a memória dependa de uma fotografia, a mulher apanhada na teia da química e da luz e eu a sorrir um sorriso de tristeza, sem vontade de recolher à caixa apertada, logo abaixo do lombo ou do rabo de um Cristo magro, sujo e de peito trespassado.

Não sei se existo. Mas percebo que não quero acabar assim, embrulhado numa fralda descartável, aguardando a esponja molhada e o talco. Mulheres com bibes coloridos a apertarem-me as bochechas e a ordenarem-me aos ouvidos: "vamos lá a comer a papa toda"; as vozes decompostas em guinchos, mimos pueris, enquanto a arrastadeira entra e sai dos lençóis sem pedir autorização, sem me perguntar "como é que te chamas".

Os olhos que me estudam aos pés da cama sem saber o que pensar, o que dizer. As visitas perfilam-se aos domingos e feriados para venerar o entrevadinho, apaziguando a consciência atormentada com dez minutos de monólogos decalcados de telenovelas. E eu para ali arremessado, à espera do nada sob a terra enquanto as papas mornas e a fruta moída se despenham dos lábios para o pijama em condecorações torrentosas – um 10 de Junho untado a iogurtes e pão-de-ló.

Depois do cerimonial, o padre recolhe ao furgão envidraçado e forrado a jarros, cravos e veludo arroxeado, amaldiçoando a chuva de Verão que lhe castiga a calva; as carpideiras a desmobilizar com rapidez, que os rissóis e o Porto esgotaram cedo.

Não quero acabar assim, inútil.

domingo, janeiro 25, 2004

O INTELECTO DE UM PENEDO

Não gosto de incinerar o meu tempo com a exegese de processos intelectuais de textura granítica, tão-pouco de exercícios de estupidez arreigada e degenerativa. A verdade é que a compra sacramental do Expresso obriga-me, todas as semanas, a prescindir de seis cafés, o que começa a aborrecer-me profundamente. E custa-me extirpar três euros do mealheiro para ler um jornal que esbanja tinta com os vomitados biliares de João Pereira Coutinho. Essa é que é essa...

João Pereira Coutinho apõe a assinatura, no semanário "balsemónico", por baixo do Estado Crítico – o do seu verbo misógino e protomarialva? Não sei.

A meio da tese "Parque Jurássico", cuspida nas páginas do semanário, essa sumidade da arte do comentário pergunta se Ary dos Santos "merece dois minutos de atenção". E teoriza...

"Tirando as canções primárias que Ary escreveu para os nossos festivais primários, podemos levar a sério a produção poética do homem? A opinião é pessoal e não pretende estragar os festejos: a 'poesia' de Ary, se merece o nome, é uma mistura assaz manhosa de sentimentalismo adolescente e filosofia panfletária, muito exclamativa e 'rebelde', que nenhuma pessoa minimamente alfabetizada seria capaz de assinar".

João Pereira Coutinho não convive bem com a História. A João Pereira Coutinho custa perceber que só lhe é permitido escrever as suas cagadas porque, durante anos, houve uma "estrutura cultural jurássica" que era educada à bordoada na António Maria Cardoso. João Pereira Coutinho não ouviu, não leu e não quer perceber Ary dos Santos, mas tem dificuldade em livrar-se do pesadelo que uma bandeira comunista sobre um caixão lhe provoca. João Pereira Coutinho afirma que "a consagração [de Ary] é o retrato perfeito da nossa incurável pobreza" – o que é preciso é manter o povinho ao largo do abecedário, apagando dos registos quem pugnava pelo inverso. João Pereira Coutinho tem dificuldade em aceitar que um comunista possa ser poeta, pintor ou músico. João Pereira Coutinho reconhece, despeitado e entristecido, que, quando decidir poisar a pena, dificilmente logrará uma nota de rodapé ou uma vintena de quadrados numas palavras cruzadas, quanto mais "a beatificação".

sexta-feira, janeiro 23, 2004

FRAGMENTO DE SOM

Há pouco, enquanto procurava um sicativo para as feridas do âmago, ouvi John Lennon a debitar Working Class Hero. De súbito, a espiral de mágoas começou a fazer sentido - cá dentro. É a lírica. É sempre a lírica...

As soon as you're born they make you feel small
By giving you no time instead of it all
Till the pain is so big you feel nothing at all
A working class hero is something to be
A working class hero is something to be

They hurt you at home and they hit you at school
They hate you if you're clever and they despise a fool
Till you're so fucking crazy you can't follow their rules
A working class hero is something to be
A working class hero is something to be

When they've tortured and scared you for twenty odd years
Then they expect you to pick a career
When you can't really function you're so full of fear
A working class hero is something to be
A working class hero is something to be

Keep you doped with religion and sex and TV
And you think you're so clever and class less and free
But you're still fucking peasants as far as I can see
A working class hero is something to be
A working class hero is something to be

There's room at the top they are telling you still
But first you must learn how to smile as you kill
If you want to be like the folks on the hill
A working class hero is something to be
A working class hero is something to be
If you want to be a hero well just follow me
If you want to be a hero well just follow me


... e o som do aço a vibrar. O resto é poeira.

quinta-feira, janeiro 22, 2004

PRODUZIR LÁGRIMAS NA PENUMBRA DO CINEMA

Jim Sheridan teceu, com laboriosa arte, um grande filme. Pungente e ao mesmo tempo doce, In America reavivou, cá dentro, o apelo de Nova Iorque e do american dream - conquistado a pulso entre ruínas humanas e a face mais esquálida da Big Apple.

Sheridan escreveu, em colaboração com as filhas Naomi e Kirsten, um rendilhado de diálogos perfeito, quase sempre lapidar.

É difícil suster o cloreto de sódio ante o filme. E por mim, embarcava já esta tarde rumo a Manhattan.

NEM MAIS...

Miguel Portas escreveu isto para o Diário de Notícias. Subscrevo. Ainda há quem deposite alguma réstia de esperança - ou crença - nas "preocupações" sociais do Governo laranja-azul-amarelo? Ou na justeza do gestor português?

quarta-feira, janeiro 21, 2004

"MALA DE CARTÃO"

As forças motrizes do Governo trocaram cabeçadas a propósito da imigração. Mas chegaram a um número místico: este ano, a cauda da Europa abre os pórticos a 6.500 imigrantes. Ouvi, ontem, na rádio, alguém a balbuciar que o país não pode tolerar a inflação de imigrantes andrajosos e famélicos que percorrem as ruas sem poiso certo. Ou seja, se bem compreendi o argumento, acaso os imigrantes pernoitassem em passeios e vãos de escada que não os nossos, o problema deixava de ser... problema.

Em estrito respeito pelos compêndios, a tríade encarregue da missão - Bagão Félix, Morais Sarmento e Figueiredo Lopes - recorreu à matemática, que, como é sabido, é assaz compatível com estas coisas da miséria humana.

O ministro da Segurança Social e do Trabalho explicou a fórmula de druida: com base num inquérito realizado em 20 mil unidades do pujante tecido empresarial português – sendo que somente 62 por cento entenderam dar resposta à iniciativa – e num estudo efectuado pelos "canais" académicos, o Governo cozinhou, em banho-maria, o relatório sobre as "oportunidades de trabalho". Aos 20 mil imigrantes que o documento diz serem necessários, o Governo retirou 13.500 almas que já estão inscritas nos centros de emprego.

Quanto aos outros, os escravizados, não se ouviu grande coisa. Percebe-se: se não estão nas "actas", não existem. Bom: apesar de tudo, mexeram-se. Mas não resolveram. Longe disso.

terça-feira, janeiro 20, 2004

NÉMESIS OU HIDRA DE LERNA

O segredo de Justiça é, no conjunto das "vacas sagradas" do edifício jurídico português, o princípio que mais sofre com a profanação desavergonhada, esta última sempre decorrente de interesses conjunturais – pedra angular do chico-espertismo luso - e da incessante demanda de dividendos a curto prazo. Redundante.

Isto andava, há muito, longe de ser uma novidade excitante. Mas a novela judiciária do processo Casa Pia veio acirrar a chaga até à fronteira da necrose da Justiça – Magistrados, Ministério Público, procurador-geral da República, equipas de defesa e afins. E no outro lado da liça, porque é de uma liça de senhores feudais que se trata, a classe política - nomeadamente aquela que é visada pela tinta escura dos jornais - acusa o golpe e pronuncia-se contra os abusos perpetrados não por quem constrói e gere laboriosa e inteligentemente os processos, mas pelo menos maquiavélico dos prevaricadores: o jornalista.

No arranque do ano judicial, os actores do costume foram ao Supremo Tribunal de Justiça para aí proferir – pensava-se - os discursos do costume. Porém, em 2004, há um processo em curso que incomoda e envergonha, o que levou a que os discursos não fossem os do costume, antes os da circunstância. Ditou a circunstância que se desse uma achega a uma classe profissional que voga ao sabor da conveniência; ora é encarada como a Némesis, contraforte justiceiro, ou como a Hidra de Lerna, que pulveriza, com um hálito mortífero, consciências que se querem ignorantes, obedientes e ordeiras.

É difícil obter a serenidade do debate quando se diz sem dizer, quando se lança recados e anátemas a destinatários subentendidos, jamais específicos. Os discursos do Presidente da República enfermam deste problema, seja qual for o tema. Se decide dirigir-se ao Parlamento para dar a conhecer o que pensa da política orçamental do Governo, Jorge Sampaio, sempre indirecto, põe-se a jeito para as interpretações mais delirantes. Se decide ir à televisão para pôr um ponto final parágrafo no desrespeito pornográfico pelo segredo de Justiça, como aconteceu a 5 de Janeiro, aparece mais lacrimejante do que incisivo. Na abertura do ano judicial, o actual inquilino de Belém esteve igual a si próprio.

"Se há um interesse público na observância do segredo de Justiça, dificilmente se compreende que esse interesse público só seja relevante quando a divulgação dos factos por ele cobertos é feita pelos participantes no processo e deixe de o ser quando essa mesma divulgação seja feita por qualquer outro cidadão", disse Jorge Sampaio, para logo acrescentar que "não há pior maneira de defender a liberdade de imprensa do que fazer de conta que ignoramos as queixas reiteradamente feitas sobre a matéria e o desencanto dos valores democráticos que elas revelam". O que quer isto dizer? Tudo e nada. Porque, logo de seguida, o Presidente da República recusa a consagração na lei de qualquer limitação à liberdade de imprensa, como recentemente sugeriu a deputada social-democrata Assunção Esteves.

É certo que Jorge Sampaio aprecia a equidade, mas dificilmente poderá escamotear que escolheu os jornalistas para alvo preferencial do cerimonial do Supremo Tribunal de Justiça.

"Hoje, nestes tempos difíceis que atravessamos, é bom que, na reflexão que vem sendo feita pela comunicação social, possa ficar bem claro que, se a Justiça não está acima da crítica, o mesmo se passa com a comunicação social e que os jornalistas, enquanto tais, não têm virtudes que faltem aos seus concidadãos, nem adquirem, pela sua profissão ou função, qualquer estatuto de maior independência ou isenção", vincou.

Também é verdade que os juizes presentes na sala não gostaram de ouvir o Presidente dizer que "todo o arguido, preso ou em liberdade, tem o direito a conhecer os factos que lhe são imputados e a defender-se de tal imputação". Mas não chega diagnosticar febres e cartografar as pústulas do regime.

O procurador-geral da República tem razão quando diz, por seu turno, que "numa sociedade que é verdadeiramente moldada pela comunicação social, cabe a esta uma constante chamada de atenção de si para si própria, acerca da desproporção, tantas vezes gritante, entre o serviço que alegadamente se pretende prestar e os enormes danos, públicos ou privados, que não podem deixar de ser previstos e acabam por se causar". O facto é que, se esta regra é fulcral para a higiene da comunicação social portuguesa, também o é para a higiene do Ministério Público.

Enquanto a Justiça não for virada do avesso, o problema permanecerá insolúvel. Não é admissível que as perversões de um processo como o da Casa Pia sejam conhecidas e que tudo fique na mesma, sem responsabilização - de Souto Moura à defesa dos arguidos. A continuarmos assim, o terramoto profetizado por Catalina Pestana não passará de um soluço.

segunda-feira, janeiro 19, 2004

COMEZINHO

Espantoso. Verdadeiramente espantoso. Esta criatura de gravata dependurada e casaco escuro não me é familiar. As concessões que temos de fazer para garantir os bifes da vazia na mesa, as castas de Palmela na garrafeira, o Proust a engordar na estante e as prestações do utilitário urbano...

Este não conheço. Mas passo-lhe, em escassos segundos, uma procuração. Plenipotenciário, lá vai ele esboçar um sorriso de candidato.

Vou ali. Volto já.

domingo, janeiro 18, 2004

REFLEXÕES CAÓTICAS E BARBA EM DESALINHO

Andava eu a depenar os escudos paternos nos círculos académicos particulares e cooperativos quando fiquei a saber que, no parto da década de 50, o I Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, organizado na capital norte-americana, tomou conhecimento de Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa, de Jorge Dias. À época, não dei grande importância à coisa, visto que estava mais interessado no Sumol de ananás e no folhado de salsicha que aguardava, no bar, a pressão compassada dos meus molares. Depois resolvi ler. Nesse estudo, o antropólogo empunhava a paleta e pintalgava a "personalidade base" dos portugueses. Achei aquilo um exercício interessante; redutor e eivado de uma quimera científica, mas interessante.

Para hoje - especialmente para hoje, uma vez que, desde que acordei, ando saudoso dessa era em que produzia ideias e armazenava dados – resolvi seccionar, a golpes de bisturi cego, uns pedaços coloridos.

O Português é um misto de sonhador e de homem de acção, ou melhor, é um sonhador activo, a que não falta certo fundo prático e realista. A actividade portuguesa não tem raízes na vontade fria, mas alimenta-se da imaginação, do sonho, porque o português é mais idealista, emotivo e imaginativo do que homem de reflexão. Compartilha com o espanhol o desprezo fidalgo pelo interesse mesquinho, pelo utilitarismo puro e pelo conforto, assim como o gosto paradoxal pela ostentação de riqueza e pelo luxo. Mas não tem, como aquele, um forte ideal abstracto, nem acentuada tendência mística. O português é, sobretudo, profundamente humano, sensível, amoroso e bondoso, sem ser fraco. Não gosta de fazer sofrer e evita conflitos, mas, ferido no seu orgulho, pode ser violento e cruel.

Estas coisas do solo pátrio, da identidade nacional, dos hinos e das historietas a que chamamos epopeias sempre provocaram, cá dentro, uma certa comichão. E o bom do Séneca é que a sabia toda: patria est ubicumque bene est. Mas adiante, que não era disso que Dias escrevia. Ou era?

Há no português uma enorme capacidade de adaptação a todas as coisas, ideias e seres, sem que isso implique perda de carácter. Foi esta faceta que lhe permitiu manter sempre a atitude de tolerância e que imprimiu à colonização portuguesa um carácter especial inconfundível: assimilação por adaptação.

A propósito de adaptação e de tolerância, lembro-me agora de uns aborrecimentos que o homolusitanus teve de enfrentar, por exemplo, em São Tomé, ainda o século XX andava a substituir as primeiras fraldas. Digo isto porque fechei há uns dias o romance equatorial de Sousa Tavares; não sei, e não me apetece saber, se o livro agrada à malta do índex, abnegados Torquemadas "das letras", mas o conceito de "tolerância" dos roceiros vem lá chapado num Português inteligível.

A mentalidade complexa que resulta da combinação de factores diferentes e, às vezes, opostos dá lugar a um estado de alma sui generis que o português denomina saudade.

"A pátria está onde estamos bem". Traduzi bem? No Médio Oriente, vi-me apascentado entre árabes que me impingiam ervas aromáticas, cachimbos de água e Nefertitis de cimento enegrecido. Isso faz de mim um cairota? Pois faz.

Mas do que eu precisava mesmo era de espuma de barbear.

sábado, janeiro 17, 2004

VARIAÇÕES GOLDBERG

Lembro-me de ameaçar um borrão de medo nos calções ao ver uma mulher bigoduda a impingir legumes sujos à porta do mercado; a mão firme da minha avó - ela própria um colossal corpo de músculos encabeçado por maçãs rubicundas de um rosto beirão - acalmando os temores que cresciam cá dentro, aflitivos. Lembro-me de estudar, enlevado, o meu avô a escanhoar os queixos com uma lâmina cega e descartável; espuma nem vê-la. Finda a cirurgia, as palmas sapudas a espalhar álcool em chapadas generosas. Lembro-me de caminhar de mão dada com ele – o meu avô a exibir o peito cabeludo num torso de Golias - nas areias meridionais, a tropeçar em conchas maiores que os meus pés; as passadas largas que eu tinha de duplicar, se não queria terçar armas com a gravidade. Lembro-me da guloseima que me esperava sobre a toalha, aí depositada por uma avó com um boné da Nívea a manter os feixes da luz solar ao largo da cabeça. Lembro-me das camionetas com cobrador, um mouro crestado e sulcado de rugas fundas, a bolsa de couro traçada ao peito, a cintura das calças de fazenda coçada, sempre à tangente de uma queda vertical, e o chapéu pintado de suor com uma chapa de latão à testa. Castelo e Caçorino, de Portimão à Rocha, da Rocha a Portimão, do diesel ao sal, do sal ao diesel.

Na outra margem do lago genético, ao sopé da serra, as crónicas eram rendilhadas a ponto nobre, como as colchas, a toalha sobre a mesa pé de galo e as cornucópias de canela no arroz doce. A tia-avó, que das coisas másculas sabia pouco, contava-me o acto derradeiro do trisavô regente de música; com um pé no purgatório e outro ainda ao fundo da cama de carvalho, delirante, recitava o solfejo e regia clarinetes e fagotes, esbracejando ao compasso da extrema-unção. Isso e a eucaristia untada a cera queimada, a geada a açoitar ovelhas acantonadas no cruzeiro e o padre arqueado como se trouxesse a cruz do alto da Torre até ao Freixo. Enquanto os farinheiros estalavam sobre a trempe, subtraía-se o serviço inglês à cristaleira carunchosa. O tio-avô, a cachimbar nuvens de cheiro doce, levava-me em visitas guiadas ao escritório, ao que eu respondia com um esgar esgazeado. Os livros alinhados em pelotões a postos para me fuzilar o crânio oco; sentava-me e o estofo gemia. Camilo e Aquilino incapazes de se fazerem compreender, que eu queria era investigar os ovos dos canários, a pasteleira reluzente com um cesto de verga e o volante branco do Vauxhall entrevado na garagem, em solidariedade com a bisavó moribunda num quarto encharcado em Cristos e terços. Espreitando com respeito por entre uma frincha da porta, via-lhe a boca aberta como a da cria depenada dos canários, a solicitar as papas mornas. Lembro-me do musgo nos muros que eu adaptava a muralhas, desferindo contra os suevos as flechas de mimosa descascada a canivete. Valente, aplicava espadeirada firme no tanque da roupa, inimigo formidável que me quebrava sem medo as lâminas de aglomerado. Por fim, na Estrada da Beira, via o granito a ceder o posto ao xisto e recapitulava a estratégia que me permitira defender o castelo.

Lembro-me.

sexta-feira, janeiro 16, 2004

RADIOTELEVISÃO PORTUGUESA

Há instantes, ouvi uma intervenção liberalóide no Fórum da TSF. Habituei-me a ouvir o Fórum da TSF. Não sei por que razão o faço. Há vícios persistentes. O Fórum da TSF é um vício.

A ouvinte, jurista, louvava o ímpeto reformador do Governo e verberava o comportamento recalcitrante dos sindicatos. "Paz, pão, povo e liberdade". Estava eu a equacionar a utilização do botão censório, enfadado com aquele registo típico das profissões liberais, quando a senhora achou por bem referir-se ao "saneamento" da RTP – ilustração da "vontade de mudar" da governança tricolor. Deixei-me estar.

O "saneamento" da RTP é matéria para uma tese de mestrado sobre a apologia da incompetência. E sempre tive por adquirido que jamais poluiria O Sedentário com narrativas vingativas e saudosistas de um passado recente. Porém, incapaz de resistir à mesquinhez destas coisas do orgulho, escolho o mal menor e vou às páginas de O fim anunciado, de Barata-Feyo.

Deixo aqui umas fracções do artigo Guardem-se os funcionários, publicado em Maio de 1996 na Grande Reportagem...

Muitos anos mais tarde, depois do exílio e do 25 de Abril, voltei a Portugal e, num dia de rara qualidade, vi-me promovido de jornalista a novel funcionário (da RTP). Desde então, sou membro de pleno direito da grande família dos funcionários. O da esferográfica, o do carimbo, o do selo, o do modelo XYZ, o do impresso B 58, o do triplicado, o das compras, o dos empréstimos, o do bar, o da intendência, o da técnica, o da segurança, o das folgas, o das horas extraordinárias, o do papel, o do papel higiénico, o das folhas A4, o do secretariado e, por fim, o do controlo de cada uma e de todas estas magnas actividades, último escalão antes do nível superior, o do funcionário-chefe. Um chefe por funcionário, um por actividade.

Um bom funcionário tem sempre dúvidas quando se trata de fazer e certezas definitivas quando se trata de duvidar. E estas certezas, quando se é mesmo bom funcionário, tornam-se um instinto, só igualável ao dos bois. Isto é, o funcionário, tendo a certeza de tudo, tem também a certeza de si próprio, coisa que lhe dá uma enorme vantagem sobre o trabalhador, atormentado pela inteligência de trabalhar.


Desafio a Administração Marques a provar ao contribuinte que, cumprido o "saneamento", as considerações de Barata-Feyo se tornaram um anacronismo.

quinta-feira, janeiro 15, 2004

"ISTO É SINTRA"

De vez em quando aparecia um bocado da serra, com a sua muralha de ameias correndo sobre as penedias, ou via-se o Castelo da Pena, solitário, lá no alto. E por toda a parte o luminoso ar de Abril punha a doçura do seu veludo...

Há instantes que afloram o misticismo, até para as mentes que coarctam os acessos mais piréticos do vão romance. Escrever sobre a névoa oblíqua que caía sobre o claustro numa tarde de invernia é pouco mais que um arremedo. Reconheço-o, adivinho-lhe os contornos redundantes. Mas é difícil ensaiar a fuga ao aroma mofoso da História, impregnado nos veludos e nas colchas, nas cordas do cravo e nos estanhos que emolduram retratos; é improvável que venha a vencer, numa próxima arremetida ao Éden, o apelo de uma forma de cobre sobre a bancada ou de uma partitura para D. Fernando.

Há dias em que o Olimpo acerta agulhas. Calcorrear os trilhos que nos transportam a uma monarquia com necrose aprazada, escutando a voz amiga a declamar versos, quadras, sonetos e tercetos. Cristalizar na película, à força de uma alquimia de luz, uma irmandade que se consolida como as penedias.

Parara diante da grade donde se domina o vale. E dali olhava, enlevadamente, a rica vastidão de arvoredo cerrado, a que só se vêem os cimos redondos, vestindo um declive da serra como o musgo veste um muro, e tendo àquela distância, no brilho da luz, a suavidade macia de um grande musgo escuro...

Um tronco de árvore revestido de verde. Um braço fraternal que busca o meu, à procura do equilíbrio num chão de pedra húmida e gravilha quase barrenta. E o céu que não interrompe o pranto miúdo, envergonhado. Ali perto, ao alcance de um afago, agitam-se cabelos em vagas de um mar de cetim; iluminam-se olhos lapidados de mineral incógnito ante o espasmo de um imaginário romanesco. Princesas e risos cúmplices de aias por colher, o banho da rainha e os cuidados reverentes do viador.

O ar frio entontece a alma até à fímbria de uma náusea doce. Ao fundo, para lá de vales e planícies esventradas para a colheita, o Atlântico reflecte o que pode de um Sol oculto. E a névoa, sempre a névoa; ubíqua e bela.

- Sintra não são pedras velhas, nem coisas góticas... Sintra é isto, uma pouca de água, um bocado de musgo...

Há instantes que não se esfumam. Há instantes que resistem até ao derradeiro estertor. No trilho oblongo a que chamamos vida, uma tarde de invernia é um instante. Pilho as páginas de Eça porque não me vejo capaz de honrar, sozinho, aquilo que os meus amigos me ofereceram num instante místico.

Isto é Sintra, repetia um deles à razão de uma e outra carícia do manto branco sobre as cameleiras. De agora em diante, aquilo é a "nossa" Sintra.

O SEDENTÁRIO POR MÃO ALHEIA

"Prezado amigo,

Em face daquilo que escreve sobre o putativo candidato a Belém, pretendia abordar uma questão lateral que é a mudança estratégica do actual Governo em relação à comunicação social tutelada pelo Estado através da Portugal Telecom.

Na altura em que a PT comprou a Lusomundo, pouca gente protestou contra o facto de o Estado nacionalizar órgãos de comunicação social e daí retirar os respectivos dividendos.

Numa primeira fase, no Governo do engenheiro, o controlo desses órgãos foi feito de uma forma mais subtil e indirecta - complacência do Diário de Notícias e da TSF, uma rádio com uma linha editorial notoriamente de esquerda, para com o Executivo socialista; interferências ministeriais, passagem de jornalistas pelos gabinetes do poder para a chefia da redacção da rádio notícias.

Actualmente, a confraria PSD-PP decidiu actuar e promover um golpe de Estado na TSF, que levou a mudança de chefias e de programação, com desinvestimento na área noticiosa, saída de jornalistas, falta de reforço da redacção, ausência quase total de debates, existência de play-lists e escolhas musicais ao mais puro estilo comercial.

No Diário de Notícias, houve a mudança atribulada de directores, com a colocação de um homem de mão da actual maioria (Fernando Lima) e a tentativa de transformar o DN num jornal oficioso ao serviço do Governo. Daí que tenhamos, desde há algum tempo, o retorno ao pior da nacionalizaçao da comunicação social em Portugal".

Nota explicativa: o meu querido amigo A. Pereira perdoar-me-á a ousadia de publicar aqui esta "missiva" que me endereçou. Ele compreenderá que, por vezes, é preciso ceder as rédeas da caleche a quem sabe do que fala. Aproveito para agradecer as sugestões para os links bordados aqui ao lado.

UM TEMPO NOVO

Explica a sapiência dos servos da gleba que as doses de água benta a administrar ficam ao critério da consciência de cada um; a fazer fé nos ditames do populacho, sou levado a concluir que, algures nos verdes anos, Santana Lopes terá tomado um banho de imersão na pia baptismal.

Sequioso das glórias de Belém, o autarca desfaz-se em múltiplas e obsequiosas vénias frente ao espelho. Capitaliza o altar mediático para aplicar alfinetes no lombo de Sampaio, reúne a nata no Grémio Literário para apresentar as reminiscências de um - self-proclaimed - labor árduo ao serviço da cultura e, arauto da redenção, proclama: sinto que está a chegar um tempo novo.

Determinam as tábuas de Moisés que as Causas de Cultura sejam poupadas ao veneno corrosivo antes de uma leitura cuidada. Mas chateia-me ver Agustina atascada nestes exercícios de vaidade. O Governo também por lá andou, contente, revelador. Arnaut, Portas, o timoneiro Barroso... Cavaco fez gazeta. Quem sabe nunca esquece, retorque, mais uma vez, o país iletrado e impaciente.

Depois, ripa do aparo e traça os discursos protopresidenciais na imprensa que o adula. Trinta anos, na edição de hoje do Diário de Notícias, é assim uma espécie de comunicação ao país, uma "conversa em família" para eleitor esquadrinhar.

Muito mudou, de facto, em 30 anos. Este é o ano de tentar avaliar bem como mudou e o que mudou. Até porque 2005 e 2006 são anos de muitas escolhas. Opções que têm de ser feitas em função do que aconteceu, ou não, em anos passados, do que queremos que aconteça no presente e no futuro.

E a masterpiece da retórica: os 30 anos do 25 de Abril podem e devem servir fundamentalmente para pensar. Mais do que para festas e sessões solenes, que sirvam para nos conhecer cada vez melhor naquilo que somos capazes.

Tenho a distinta impressão de que a pressa, aqui, pode desembocar num correr do pano inspirado no fado triste do filho de Dédalo.

quarta-feira, janeiro 14, 2004

ALVURA

Desenhou-me, numa tarde iluminada, um sorriso puro. Com olhos cristalinos, desafiou-me a segui-la rumo a uma dimensão que apaguei, à medida que a minha alma se quedou poluída pela mesquinhez da condição adulta. É difícil suster o apelo do magnetismo daqueles olhos sem maldade, absorventes, genuinamente exultantes. É difícil devolver-lhe um esgar à altura da sua alegria. Tentei. Queria ter a chave daquele idioma ininteligível, só ao alcance de um âmago de anjo. Queria poder perguntar-lhe a que sabe ser assim pequeno e verdadeiro, viajar de colo em colo, sentir a cabeça afagada por existir, somente por existir; o que anda longe de ser fácil, numa aguarela sempre a caminho do borrão. Enquanto me açucarava a alma, segurou-me um dedo, com a maior firmeza que conseguiu produzir, e transferiu, generosa, parte daquela luz para uma alma pardacenta. O pai, um amigo com raízes profundas, diz-me que é angustiante viver com a preocupação perene. Compreendo-o. Depois de ter sido apanhado na rede daquele olhar, eu, que em nada contribuí para o nascimento daquele ser frágil e perfeito, não posso deixar de suportar uma fracção do jugo paternal.

Adenda: é forçoso. Este texto vai ser estampado - com um título diferente - num outro blog, restrito e de índole familiar.

terça-feira, janeiro 13, 2004

PURGAR

Gostaria de poder crer que nunca escrevi isto...

Não percebo. Garanto-te que não consigo perceber. E não é por falta de perseverança. Sucedem-se as horas de privação do sono dos justos. Sim, porque é de um sono merecido que aqui falamos. Não te parece que mereço dormir? A verdade é que não consigo perceber.

Percorro os caminhos da vida com requintado vagar. Gosto assim, com calma, sem correrias. Não gosto dos estúpidos prazeres húmidos da exsudação, que me empapa a roupa, deixando-a pegadiça e pouco convidativa aos protocolares abraços masculinos, desses que gostamos de sublinhar com uma valente traulitada nas costas do parceiro, deixando-o arfante, de beiças retesadas e às portas da paragem cardíaca.

Desconfio da existência de uma irmandade da estupidez arreigada, com sede num qualquer subúrbio deprimente onde se realiza um concurso anual da "varanda mais bela" ou do "automóvel mais lindo".

É pois com vagar que empreendo o esforço de discernimento. Porém, não chego lá. Negro, forte, espesso, macio. A moldura perfeita para o bonito quadro do teu rosto. Agita-se, move-se em ondas que me inebriam. Embriaga-me. Hipnotiza-me. Tocar-lhe é respirar, viver. Mergulhar os dedos nesse negro mar de beleza é regressar a um ventre de mãe e voltar a nascer. Por outro lado, senti-lo no rosto é morrer contente de uma doce falta de oxigénio. O teu cabelo. Como podes entregar o teu cabelo às minhas mãos de mortal? Não percebo. Garanto-te que não consigo perceber.

Agora basta. Está exorcizado.

CAMINHO DO GUERREIRO

Ontem vi algo que me remeteu para um crepúsculo de infância recheado de sonhos romanescos, de geografia próxima, e de augúrios de glória no Sol nascente, longe, muito longe. Sou acometido de saudades de Walter Scott - Caminhando a passo num esplêndido cavalo negro, o Desdichado atravessou o recinto fechado e bateu com o ferro da lança no escudo de Bois-Guilbert. Pedia um combate de morte... - e de Musashi, eu que ainda não logrei "tornar-me o caminho".

Era feliz. Não vivia num mundo palpável. Mas era feliz.

segunda-feira, janeiro 12, 2004

TOMAHAWK e AYATOLLAH

I
O secretário de Estado norte-americano é, no fundo, um bom rapazinho. E deveria até receber uma comenda por ter de arcar com o peso da vacuidade encefálica de Bush II. Num artigo a que deu o título espantoso de Uma Estratégia de Parcerias, publicado na Foreign Affairs, Colin Powell embrulha a cupidez do Uncle Sam numa sopinha de letras reconfortante.

Logo abaixo do subtítulo Interesses e Responsabilidades, Powell disserta sobre o messianismo da Administração Bush. Deixemo-lo discorrer: queremos promover a dignidade humana e a democracia no mundo, ajudar as pessoas a erguerem-se da pobreza e transformar o inadequado sistema de saúde pública global. Estamos a prosseguir estes objectivos agora mesmo. Mas só se a paz profunda da nossa era for "preservada, defendida e expandida" – para usar as palavras do presidente [George W. Bush] – é que poderemos prosseguir estes objectivos durante o tempo que for necessário para atingi-los.

E segue triunfante, proclamando que estes são os objectivos centrais da política americana no século XXI.

Nós combatemos o terrorismo porque devemos, mas buscamos um mundo melhor porque podemos – porque é o nosso desejo e o nosso destino (...) É por isto que nos devotamos à democracia, ao desenvolvimento, à saúde pública global e aos direitos humanos (...) Estes não são enfeites para os nossos interesses. Estes são os nossos interesses, os propósitos que o nosso poder serve.

O nosso destino; os propósitos que o nosso poder serve. É difícil ler isto e não desatar a berrar, com a mão sobre o peito: oh say can you see, by the dawn’s early light.What so proudly we hailed at the twilights last gleaming? Whose brought stripes and bright stars, thro’ the perilous fight...

II
Em Teerão, a liberdade e a democracia xiitas prosseguem a sua marcha firme e irreprimível. Os paladinos da Constituição, arregimentados num Conselho dos Guardas (!) – seis teólogos e seis juristas –, pulverizaram um vasto número de candidaturas do campo reformador – entre duas a quatro mil almas bem intencionadas. As eleições legislativas realizam-se no próximo mês.

Ali ao lado, no Iraque, o destino dos Estados Unidos manda que se organize, algures no futuro, umas eleições livres, democráticas. Não sei se é para rir ou para chorar.

DOSES PARCIMONIOSAS DE PALIATIVO

Em entrevista ao Diário de Notícias - publicada neste dealbar hesitante da semana - o editor José Cruz Santos explica a fórmula de uma vida com substância.

E diz isto...

O velho Gallimard dizia que o verdadeiro editor é aquele que inventa os livros que ele gostaria de encontrar. Não os encontrava, criava-os. Acontece, às vezes, o mesmo comigo. Imagino uma obra que gostaria que existisse, começo a pensar se é possível dar-lhe forma...

Eu nasci para isto, gosto de fazer livros. Mas é uma paixão que decorre da leitura. Eu reconheço-me muito na paixão do João Cabral de Melo Neto quando dizia que, entre o escrever e o ler, ele gostava mais de ler.

Nunca escrevi, por ser leitor. Mandam-me muitos originais de poesia, por causa da colecção Pequeno Formato - sempre mandaram, mas agora mais - e eu verifico isto: as pessoas não devem ler! Se lessem não me podiam mandar aquilo. Noventa e nove por cento do que recebo não tem interesse nenhum. Por isso, eu não posso escrever - sou leitor.

domingo, janeiro 11, 2004

O ESPLENDOR DE PORTUGAL

Ciclicamente, os pensadores, os ilustres académicos, os praticantes da verborreia opinativa e os afins do Condado Portucalense, apaixonados pelo som da própria voz, proclamam a abertura de certames da vaidade, à guisa do que se faz com o gado de Trás-os-Montes ou com o equídeo lusitano. No sábado, gravatas lustrosas, fatiotas engomadas e egos intumescidos trocaram vénias em Lisboa, no concílio fundador do Clube do Chiado.

O Clube do Chiado é um filho do centro-esquerda; isto equivale a dizer que é um produto de uma esquerda que tem vergonha de dizer que é de direita. José Lamego, o homem-Iraque, assegura, citado pelo Público, que a nova arquiconfraria de mútua bajulação não é conexionada (sic) "com qualquer estrutura partidária". Já havíamos percebido que José Lamego não é alma para se deixar aprisionar por questões de somenos importância como a ética ou a lealdade. Não era mister reforçá-lo.

Pretende o Clube do Chiado que o país discuta, analise. Mas não o país que vota! Isso é que não pode ser... Para aquela que é uma das figuras maiores da diplomacia de tipo Lajes, matérias como o tratado constitucional europeu devem ser deixadas aos cuidados da elite que funda clubes de inspiração narcísica. "Decisões de longo prazo", advoga, não podem suportar o jugo poluente da "participação excessiva da opinião pública".

Democrata, este Clube do Chiado...

VERDADE, AZEITE, ÁGUA...

Há poucos dias, enquanto mastigava um bife sofrível, ouvi Alberto João Jardim cuspir para os microfones das televisões que, no reino da Madeira, respira uma "outra civilização", pelo que as maleitas morais que assolam o Continente ainda se vão mantendo ao largo do arquipélago. Alberto João Jardim é uma figura fundamental do edifício institucional português; uma corte sem jogral de serviço revela-se incompleta, sensaborona. Alberto João Jardim experimenta dificuldades de digestão com reportagens como aquela que Ana Cristina Pereira assina no Público deste domingo.

sábado, janeiro 10, 2004

GRAVADO A BÍLIS E CLORETO DE SÓDIO

É sábado. E então? De segunda a sexta o quadro não se altera. Os matizes são os mesmos. Chove, não chove. O sol rompe por entre nuvens espessas enquanto permaneço acaçapado. Como o fio dos dias. Um vulto pouco vultoso. Esta vida não o é realmente. Este fluir de águas turvas que não cessa. Esta vida dá lugar a um rendilhado de memórias, umas gratas outras espinhosas. Só memórias, nada mais. Não há presente; presente indicativo de que haja permutas de oxigénio e dióxido de carbono.

E não cerra os lábios. Não se cala por um segundo; a trégua que não chega. Vomita currículos, distinções, menções honrosas. Atropela. Tece uma teia que ascende a mortalha. Amortalha peles, olhares, âmagos. Exclusivos. Sempre exclusivos. Não sobrevive a uma mesquinhez despeitada que espreita lá dentro, se não trouxer o apenso soberboso. Apóstrofe aqui, apóstrofe ali... Por que raio escreve ele assim? Para subir a um Olimpo contrafeito?

É sábado. Por uma vez, queria ser o bode imarcescível de Mário-Henrique Leiria. Tragar com satisfação edições de epopeias encadernadas em couro azul escuro e com ilustrações de Lima de Freitas.

Vejo-me a tropeçar em cabos de guitarras alheias, entorpecido pelo fumo entorpecente. Vejo-me a transpirar profusamente para auferir pouco ou nada. Vejo-me feliz. No pretérito perfeito.

Vejo-me abraçado por braços de porcelana, entontecido pela paixão em série e a metro. Vejo-me infeliz. No pretérito imperfeito.

Vejo-me a pressionar teclas de plástico, entristecido pelo rendilhado de memórias que me agrilhoa. Vejo-me insignificante. No tempo verbal mais que óbvio...

sexta-feira, janeiro 09, 2004

A IRONIA DA ESPUMA (FRAGMENTOS ESPARSOS)

I
Manchada pela tinta negra das rotativas, a classe política da cauda da Europa estremece de indignação e afina catapultas em direcção à liberdade de imprensa. O poeta-deputado, superior parlamentar do punho que se fez rosa somente para tornar a punho, exorta os membros dessa Loya Jirga portuguesa que dá pelo nome de Conselho de Estado a reunirem-se para suster os pilares do coliseu. Assunção Esteves, por sua vez, sustenta que aos autores da soez ofensiva ao Estado de Direito – os jornalistas, pois então... – não deve ser permitido o abate da vaca sagrada que é o segredo de justiça. Sugestão: ao invés do Senado, que tal a instituição de uma confraria do lápis azul?

II
Álvaro Siza Vieira assinala, na Big Apple, meio século de carreira. Álvaro Siza Vieira foi distinguido, em 1992, com o Pritzker. Segundo Santana Lopes, a primeira preocupação de Frank Gehry quando aterra em Lisboa é saber por onde anda Álvaro Siza Vieira. Em Berlim, escreveram assim numa parede traçada por Álvaro Siza Vieira: Bonjour Tristesse.

III
O Queen Mary II, ontem inaugurado por Her Majesty Isabel II, constitui um bonito hino aos caprichos e delírios do Hemisfério Norte. O navio custou 825 milhões de euros, pesa 150 mil toneladas e é senhor de uma área de 550 mil metros quadrados. Por uns económicos 30 mil euros, o passageiro pode ocupar uma suite e desfrutar dos cuidados de um mordomo. Em Southampton, a figura maior da casa de Windsor quebrou o Veuve Clicquot contra o casco do mais recente orgulho da Grã-Bretanha – construído em estaleiros franceses (!). Sugestão: a rota do primeiro cruzeiro bem podia incluir uma escala em Umm Qasr, na Mesopotâmia.

IV
As mui honradas forças armadas paquistanesas, alimentadas a dólar farto, dão caça feroz aos sicários de Bin Laden acantonados na fronteira com o Afeganistão. God save Musharraf, esse Reza Palevi da Ásia Meridional...

quinta-feira, janeiro 08, 2004

AFORTUNADA OEIRAS

Tenho queda para os cabrões. Disse-o com o habitual absentismo de poeiras pudentes. Disse-o sem traço de bravata, com olhos quase vítreos de tão sérios; olhos que roçam o jade sem deixar o fruto do castanheiro. Olhos que deveriam trazer a turba da testosterona hipnotizada pelas brisas salgadas que sopram entre os ocres da falésia e os verdes do tapete aquoso. Não trazem, garante. Não é fácil encaixá-lo; eu que ainda não logrei misturar fórmula magna que descreva aquelas retinas. Queda para os cabrões, disse ela, com o recorte facial de uma mulher de Dostoievski...

Sofia Ivanovna? Gruchineka? Sei, porque sei, que um Fedor contemporâneo – deixa-me ensaiar, eu que fico sempre aquém, a ficção... - teria baptizado uma destas senhoras com o teu nome, acaso a história dos Karamazov tivesse sido contada junto ao mar da Marginal.

Aqui atrás, no leitor de discos, Shannon Hoon pune-me o aparelho auditivo com Change. When you fell your life ain’t worth living/ you’ve got to stand up and take a look around you/ than a look way up to the sky/ and when your deepest thoughts are broken/ keep on dreammin’ boy/ cause when you stop dreammin’ it’s time to die... É louvável, a suprema lata deste tipo. Que, na vida, pouco mais fez que morrer...

Espanta-me a arte marialva de quem ousa preterir o alabastro em prol do calcário, o sândalo em prol do plástico, o ouro em prol do pechisbeque de traça tosca.

Abordas o perímetro, dealbas o espaço com uma luz que ameaça cegar a vulgaridade vigente, compões com naturalidade os fios de seda que te cobrem a cabeça, sorris um sorriso que eleva a Via Láctea aos píncaros da felicidade e depois, com a simplicidade dos justos, falas. Sem poeiras pudentes. Sem máscaras.

A verdade é esta: bem podia eu prescindir de vez do oxigénio exterior, alinhavando odes até ao óbito, que jamais estaria à altura do poema que és.

HOJE PEÇO EMPRESTADO

Na manhã plena de mantos celestes - alvos e humedecidos -, enquanto removia o pó das minhas estantes, tropecei num punhado de palavras espalhado por uma contracapa.

Reza assim...

Um dia, leitor, hei-de contar as ânsias e tormentos com que se vai martelando esta artesania da escrita, em que ainda sobrevive a mão do caldeireiro ou, talvez, do fazedor de autómatos, e explicar como é desolador chegar ao nascer da roxa aurora e ao rumor dos primeiros autocarros apenas com duas ou três páginas sofrivelmente apontadas. Só este trabalho de minuciosa lavra, em traiçoeira brenha, não contando com o resto, havia de ser, não principescamente, não regiamente, mas imperialmente pago.

Estas palavras jazem, imperiais, na porta dos fundos de Fantasia para Dois Coronéis e uma Piscina, de Mário de Carvalho.

quarta-feira, janeiro 07, 2004

PAÍS SURREALISTA ou INGENUIDADE CRÓNICA

Fiquei a saber, esta tarde, por meio do verbo em catadupa de uma directora de um jornal regional, que a democracia continua arredada do paí­s dito rural. Prevalece o caciquismo. E como se isso não fosse, só por si, suficientemente perturbador, fiquei também a saber que ainda é possí­vel, hoje, num paí­s membro da União Europeia, ser-se privado da mais basilar dignidade por nutrir um amor genuí­no à verdade. Ou então, nada do que ouvi - incrédulo e necessariamente céptico - é, em si mesmo, verdade. Fiquei confuso, atordoado. Nada disto é palpável.

Quer se trate da verdade ou de uma versão apaixonada - talvez mesmo psicótica - da verdade, o que ouvi da boca de uma suposta jornalista no decurso de três horas de conversa leva-me a ponderar as seguintes hipóteses académicas: 1) a retórica da classe polí­tica de Lisboa não passa disso mesmo - retórica inútil -, o que anda longe de ser inédito; 2) antigos apaniguados da PIDE apresentam-se, hoje, em pontos do mapa onde o Estado de Direito não chega, como democratas de sempre - isto também é pouco para uma tese; 3) uma psicose grave é propiciadora de raciocínios tão disparatados que, a serem consubstanciados, significariam que Portugal não é um país, antes um estado de espí­rito.

Sinto-me perdido. Tenho entre mãos um pacote de informação que só pode ser uma de duas coisas: uma caixa de Pandora ou um compêndio da esquizofrenia.

terça-feira, janeiro 06, 2004

ÚLTIMO DEGRAU

O Sedentário atingiu a forma definitiva.

DIZER SEM DIZER, SER PELA METADE

Deve o Presidente da República subir ao púlpito televisivo para verberar o procurador-geral, a equipa de João Guerra e demais agentes da Justiça, os causí­dicos-estrelas da Nação e os jornalistas ignorantes? Sim. O regime democrático arrasta-se no lodo e Jorge Sampaio tem a obrigação de velar pelo asseio do edifício.

Deve o Presidente da República ameaçar o pranto e soltar a voz embargada quatro dias depois da divulgação, no Jornal de Notí­cias, de uma carta anónima anexada ao processo da Casa Pia? Não. Eduardo Dâmaso escreve assim no editorial do Público: a verdade é que Sampaio, ontem muito emocionado, não se pode colocar a si próprio numa posição que acabe por dar embalagem a uma exploração populista deste processo ou fertilizar um justicialismo perigosíssimo. O tom lacrimejante de Sampaio deixa a pairar a seguinte questão incomodativa: por que motivo não foi tão veemente mais cedo? Com esta reacção tardia e de argumentação repetitiva, não colhe outro fruto que não o da amplificação de um facto que poderia ser pouco mais que residual - num processo mais que intoxicado.

Deve o Presidente da República lançar anátemas indecifráveis? Não. Se decide subir ao púlpito do prime time, Sampaio deve clarear sujeitos, predicados e complementos directos. Isto soa a ameaça: trata-se de crimes que terão de ser punidos, na sede e momento próprios, pois não é legí­timo que o chefe de Estado deixe passar em claro ofensas que têm as mais graves consequências no respeito e consideração que são devidas ao Presidente da República. Jorge Sampaio não foi colocado em Belém para fazer ameaças.

Deve Souto Moura dar lugar ao senhor que se segue? É para ontem, se faz favor...

Para dar por terminado este mergulho em águas insalubres, furto as palavras de um amigo: isto não são já questões da Justiça, do país, do bem comum. O tema foi arrecadado para uma guerra entre senhores de poder.

USURPAR O VERBO ALHEIO

Mesmo a cinzento, podemos ver muitos tons... Para 2004, quero um estojo de aguarelas como um que tive na infância, nunca tive coragem para o utilizar, abria-o e ficava a ver os vários tons de azul, os laranjas, os verdes e pintava com a imaginação.

O meu querido amigo vai perdoar-me esta ousadia. Sei-o de antemão, pelo que nem por um instante experimento a tremura da usurpação. Por vezes, é preciso deixar que a mão alheia pinte a nossa tela. E neste caso, subscrevo a petição sem hesitações.

segunda-feira, janeiro 05, 2004

O CORPO QUASE INERTE

Soergues sem pressa o corpo quase inerte. É cedo. Levantas a carcaça antes de o astro aparecer lá ao fundo, por detrás de um monte; um monte de coisas que ficaram por fazer, um monte de cheiros que não definiste, um monte de... nada. Tratas de ti com um certo desvelo, programada, mecânica, regular. Foi isso que o tempo te ensinou. Foi isso que escolheste. Ou não. Não me interessa. A sério que não me interessa. Minto. A sério que minto.

Esta tarefa é dispendiosa. Afinal, sucedem-se as horas de uma ponderação estéril. Os ponteiros descrevem um e outro círculo e eu penso, continuo a pensar. Escrevo argumentos para a tua vida, como se necessitasses de um criador de vão de escada. Tento apascentar-me, no fundo; no fundo de uma arca carunchosa que teimo em carregar. Expiar os meus desmandos pecaminosos com o peso do globo às costas - a elipsologia que é a minha existência.

Tu és a felicidade, por mais que busque paliativos no cinzento dos meus dias. Eu sou a porta do Inferno – deixai toda a esperança, vós que entrais. O Inferno está repleto de defensores da neutralidade. Não tarda nada, a noite chega e garanto três assoalhadas ferventes para o futuro. Ministrem-me uma broncoscopia compulsiva, para ver o que me traz a vomitar suspiros de um fel triste e invejoso.

Mas então, se és a felicidade, o que é feito do teu sorriso? Por onde anda o menear da anca que arrastava pulsações à sua passagem, como um El Niño a varrer paredes pré-fabricadas e persianas de esteira?

Introduzes-te no automóvel de cor pluviosa e fazes dançar as mudanças, programada, mecânica, regular. Das nove às dezassete, das dezassete às vinte. Sorves uma sopa instantânea bombardeada num forno de microondas e deitas-te. Às terças, experimentas o corpo alheio. Tratas de o fazer com um certo desvelo, programada. Aqui, porém, não aprendeste ser mecânica. Não julgues que escapas ao golpe fatal do calendário...

Há pouco, enquanto extirpava das seis cordas um James Taylor sofrível, compreendi que a vida seria mais aprazível se gozasse da ordem cósmica de um dó maior; o que me leva, forçosamente, a concluir que não foi na areia fina que os meus pés ficaram atascados, antes numa cave húmida feita sala de ensaios. E se assim é, não és assim tão relevante.

Tudo isto faria sentido se não fosse mentira. Tenho saudades. É isso.

domingo, janeiro 04, 2004

AS TIAS

Há uma tristeza que se aloja nos sulcos da pele. Não é minha, não foi talhada por estas mãos que me assistem. Mas sentimo-la, pesada e irreprimível. E no entanto, há a ternura que os anos não apagam. Ainda assim, há a ternura. A ternura de um xaile negro sobre os ombros, do cabelo rarefeito, dos olhos cheios e da voz abundante. A ternura de um s que se faz x e de um agudo que quis ser grave. A ternura de um par de chinelos gastos. Duas mulheres feitas folhas secas de um plátano grande. Duas mulheres velhas, tristes, a transbordar de um calor de avó.

A luz que teima em existir, pelos outros, sempre pelos outros, como se o ar que respiram nos trouxesse vivos. A nós, que nunca sonhámos o que elas viveram. Existir. Apesar do lume que se extingue com o vagar do ocaso. Há o ocaso. E é o ocaso que empunha a tristeza.

A alma nédia de quem já vê o ocaso no horizonte e procura a paz. Consigo. Com os outros.

Tias-avós que se esfumam sem pudor do vislumbre alheio. Estar com elas é regressar ao frio de Melo, degustar o queijo amanteigado e sentir o aroma das farinheiras sobre o lume. Sento-me a uma mesa redonda e tacteio as rendas tecidas ao serão. Ouço os contos de uma América de 1950, de um Central Park com um c que se faz x, como o s.

O parente escritor que se afastou, naufragado em letras e fraseados complexos. Depôs as armas ao primeiro sinal do óbito fraternal.

Depois, desperto e torno a experimentar a tristeza. As duas mulheres velhas e tristes desaparecem à minha frente. Não há ternura eterna.

Fracções

Para sempre. Aqui estou. É uma tarde de Verão, está quente. Tarde de Agosto. Olho-a em volta, na sufocação do calor, na posse final do meu destino. E uma comoção abrupta - sê calmo. Na aprendizagem serena do silêncio. Nada mais terás que aprender? Nada mais. Tu, e a vida que em ti foi acontecendo.

Preparar o futuro - o futuro... E uma súbita ternura não sei porquê. Silêncio. Até ao oculto da tua comoção. Preparar o futuro, preparação para a morte. Está certo. Parte-se carregado de coisas, elas vão-se perdendo pelo caminho. Se ao menos uma breve ideia. Não tenho. Não é bem a vida que faz falta - só aquilo que a faz viver.

Vergílio Ferreira - Para Sempre

sábado, janeiro 03, 2004

GLOBALIZAÇÃO, SEGUNDO O EXPRESSO

Espuma I

O advogado de Carlos Silvino, José Maria Martins, foi sondado pela Liga Árabe com vista a integrar a equipa que vai assegurar a defesa de Saddam Hussein, o Leão da Babilónia, o Sucessor de Nabucodonossor, o Descendente Directo do Profeta. Diz-me o Expresso que o eminente causídico, esmerado praticante da abordagem de tipo Chico-esperto - cuja jurisprudência é, em Portugal, abundante -, ainda não decidiu se lhe interessa anuir ao convite. Percebe-se. Nos tempos que correm, escasseia o tempo livre para tais peanuts.

Espuma II

A revista The Nation Magazine editou The Bush-Hater’s Handbook, uma espécie de Talmude para os que, agravando sobremaneira as figadeiras neoliberais, professam a obsessão antiamericana – furto, em consciência, o título da obra de Jean-François Revel. Sintomatologia: o manual vende que se farta.

Espuma III

Chicago é – passo a citar – "a capital dos homicídios". Em 2003, 599 almas foram subtraídas ao mundo. Logo abaixo, situam-se Nova Iorque, com 596 execuções sumárias, e Los Angeles, com 499. Esta é, arrisco defendê-lo, a notícia mais relevante – porventura só ultrapassada pelo brilhante scoop sobre a polémica lista de convidados para a inauguração do Estádio do Dragão – que o Expresso alguma vez publicou.

Para cá da margem: País à deriva? Nahhh, do escriba do Quotidien Latin, faculta a panaceia para o processo da Casa Pia. É para levar a sério...

sexta-feira, janeiro 02, 2004

PALAVRA DO SENHOR...

Nesta pitoresca sucursal de Madrid - terras de Espanha, areias de Portugal -, há três tipos de jornalismo. Há o jornalismo da espinha dorsal; há o jornalismo invertebrado; há o jornalismo da espinha de carapau. O abnegado autor de Linhas Direitas - alinhavadas em matizes alaranjados, ao serviço da Pátria e da cartilha mercantil - pratica o terceiro. À frente da unidade fabril de enchidos Agência Lusa e numa tira pouco palavrosa do Diário de Notícias, o escriba de São Bento esmiuça o lombo temático até ao espinhaço.

Essa figura maior do periodismo nacional passou um ano inteiro - atente-se na condição hercúlea da tarefa - a asseverar retomas e recuperações, felicidade ao virar da esquina e augúrios de um mundo melhor semeado com Daisy Cutters e Bunker-Busters. Não é fácil...

Esta sexta-feira, em novo mandamento intitulado Um bom 2004, o cronista do reino volta a escarafunchar o que resta do pescado. Deixemo-lo versar:

Nos finais de 2002 e primeiros dias de 2003, as análises, comentários e previsões eram apocalí­pticas, demolidoras, depressivas, ao ponto, consensual, de se dizer que seria o pior ano de sempre para Portugal e para o mundo. Era natural (...) Tudo isso aconteceu, e passou, melhor do que se esperava, e a partir do segundo semestre a confiança e a economia foi melhorando, gradualmente, até atingir recordes impensáveis no final do ano. Portugal não foi excepção, por muito que pensem o contrário: batemos no fundo no final do primeiro semestre, mas a "bola", ou o gráfico, começou a subir a partir daí­, e isso foi visí­vel em todas as áreas, excepto naquela que ainda vai sofrer mais uns tempos - o desemprego.

E o verbo prossegue pujante, rumando temerariamente contra as vagas. Agora é sempre a subir, anuncia, qual Moisés.

Que se calem os catastrofistas, os miserabilistas! O que podem a pobreza, a Educação medíocre, o desemprego, a Justiça esboroada contra esse alento inquebrantável de uma crónica de Luís Delgado?

Afinal, a "bola" descreve uma trajectória ascendente...

Proposta de leitura: no mesmo jornal, a ministra da Justiça assina um despacho que é, a todos os tí­tulos, um hino à retórica. É bonito quando a imprensa "de referência" serve de tribuna ao poder.

A PREVALÊNCIA DE UM EU RIDÍCULO

Gosto de disciplina. Gosto do rigor, da arrumação. Em tudo. Sobretudo no labor das rotativas do intelecto. Assim, esforço-me por expurgar do sótão as fés cegas num além redentor e as superstições que, nas almas reduzidas, substituem os espinhos da adversidade pelo pacho cálido da ignorância confortável. O esforço nem sempre resulta...

Transporto cá dentro uma criatura cultivadora de uma estupidez irritante, supersticiosa e cobarde. De quando em vez, o homenzinho pequeno toma conta da ponte de comando e dita a agenda do imediato.

O parto de 2004 ocorrera havia escassos segundos. À minha volta, criaturas alcoolizadas à força de preparados robustos recheavam a boca de passas. E enquanto mastigavam, formulavam os irreprimíveis desejos egocêntricos, que não verbalizavam, e os outros, os protocolares – a paz e a saúde para todos e outras verborreias estéreis -, que todos repetiam como se de uma prece se tratasse.

Célere, o homenzinho que habita em mim logo se fez anunciar, levando os meus dedos em direcção à taça das uvas ressequidas. O combate foi feroz, mas creio que ganhei. Corajoso, comi somente onze, em claro desafio às convenções.

Haverá medicação para isto?