O Sedentário

segunda-feira, fevereiro 28, 2005

Último

Ocupa a madeira matizada de uma cadeira sem alma e, mão descarnada a emular tecido vivo sobre o leme, deixa-se transportar à enseada do ocaso pelas marés serenas da aposentação às sete décadas, três meses, um dia e um quarto de hora. Alheia-se da quilha que roça ao décimo sexto minuto num recife de acrílico; range um ilíaco, estala um sacro, os dois sacudidos pelo pasodoble de uma rebentação desusada. Passam quadris, um, dois, para lá, para cá; cabelos densos como colinas de plantas gramíneas, a vaga pancada de um Great Big Bertha numa bola branca e mastigada, ao longe. Dois segundos: a sépia dos olhos ensaia um tom fulvo, tímido e passageiro, para logo regressar ao espelho de um tampo de mesa e aí somar o décimo sétimo minuto à procura de alguém, não importa quem.

sexta-feira, fevereiro 25, 2005

Reencaminhamento

Sobre a "síndroma Seabra" e o "ar de tia incomodada" que a condição induz; sobre o abismo comparativo que aparta navegação e flutuação à tona; sobre o líder quixotesco "sem fidalguia nem sonho"; sobre o aplauso acrítico dos "postulantes" arquiduques socialistas ao discurso do nada; sobre o nada de um discurso mecânico que o eleitorado teve de sufragar para remover um quisto purulento. Para ler.

quinta-feira, fevereiro 24, 2005

Magnânimo

Trezentas e oitenta e uma páginas semeadas a grânulo miudinho e geométrico, a geratriz de uma náusea na gravidez adiantada de um b, a ponta de um r a afundar-se no crânio, um estalar de castanha assada esmagada entre dedos, a que se segue o uivo de Trotski no México, num eco de 1940 já pouco mais que ciciado. Os dedos - um polegar e um indicador rasgados de rugas prematuras e enxertados de tecido mortiço; um anelar e um mindinho abandonados ao ócio vítreo de um açor embalsamado no castelo de popa de um móvel numa adega - a trocar tarefas e turnos na safra, ora guindando o peso do papel numa coreografia perpétua de oriente a ocidente, ora pintando espirais suadas de impaciência a cada canto superior direito, vincando-lhes por vezes as pontas, por vingança e ódio à preposição betuminosa, por desespero, por trezentas e oitenta e uma páginas de suplício, pelos pregos que se enterram nos pulsos e nos peitos dos pés na reedição dos madeiros no Gólgota um t após outro. Trezentas e oitenta e uma páginas volvidas, a anedota do pós-1975: Eles fingem que nos pagam decentemente e nós fingimos que trabalhamos decentemente. A neve cai sobre o Kremlin, sobre as cúpulas de São Nicolau dos Tecelões, sobre a água do Moscova. E o livro redime-se.

quarta-feira, fevereiro 23, 2005

Fundeado

- Eu produzi uma ideia. Garanto-te que a produzi!
- Se é assim, de que estás à espera para pôr isto em andamento?
- É que já não sei em que gaveta a acondicionei…

segunda-feira, fevereiro 21, 2005

Véspera

«Na manhã seguinte, porque o empreiteiro avisara que o trabalho era de sol a sol, Gregório apareceu na estrada ainda com escuro. O Sol perdera-se entre nuvens espessas de trovoada, empapadas de água, e que depressa alagaram a estrada e a roupa da malta, mal definida no lusco-fusco da manhã.

Começou a tarefa. Sentado num montão de pedras, pernas abertas e dorso arqueado, Gregório deixou cair o martelo da britagem, vibrou os primeiros golpes no silêncio. Ritmados, outros martelos ripostaram. A sinfonia cresceu de volume, estendeu-se aos outros instrumentos de trabalho – maços e picaretas – regidos pela batuta invisível do empreiteiro.»

Soeiro Pereira Gomes - Engrenagem

quinta-feira, fevereiro 10, 2005

Parêntesis

Os resultados da primeira cimeira entre a nova liderança palestiniana e o Governo israelita, em Sharm el-Sheikh (Egipto), são assinaláveis e certamente sonoros. Mas não são, pelo menos por agora, mais "históricos" do que os compromissos diplomáticos predecessores; não podem, por isso mesmo, servir de adubo a um optimismo infrene, ou levar a comunidade internacional a acalentar uma esperança desbragada na boa-fé dos beligerantes.

Para além de (a jusante) andar longe de ser inteiramente inaudito, o acordo para a suspensão das hostilidades assumido a 8 de Fevereiro não depende exclusivamente (a montante) da boa vontade pródiga do primeiro-ministro israelita Ariel Sharon e da legitimidade política do presidente palestiniano Mahmoud Abbas - ambas recém-adquiridas e a aconselharem um prudente cepticismo, em qualquer circunstância.

O chefe do Governo israelita já demonstrou à saciedade - ao longo de uma carreira militar e política que compreende as brutais intervenções militares de 1982 nos campos de refugiados palestinianos de Sabra e Chatila, no Líbano, ou a recente construção de um ominoso muro de separação entre Israel e os territórios palestinianos (meros exemplos curriculares seleccionados ad hoc) - que não é propriamente um candidato, a curto-prazo, ao Prémio Nobel da Paz. Por outro lado, quando, do alto de uma autoridade governativa com escassa expressão prática nas ruas de Gaza, Tulkarem, Ramallah ou Qalqilya – onde impera a lei das AK-47, dos rockets Katiucha e dos suspensórios armadilhados dos movimentos radicais -, o presidente da Autoridade Nacional Palestiniana proclama "o começo de uma nova era", está a atribuir à reunião de Sharm el-Sheikh um significado no mínimo imprudente.

Ao cabo destes quatro anos da segunda Intifada, é aceitável dizer-se que Israel e a Autoridade Palestiniana estão perante uma oportunidade única - porventura a derradeira - de alcançarem a paz na região. Percebe-se, nas movimentações diplomáticas da Casa Branca e dos seus interlocutores no Médio Oriente, uma vontade renovada de capitalizar o virar de página da cúpula política da Autoridade Nacional Palestiniana. Mas nem o desaparecimento de Yasser Arafat e a subsequente eleição de Abbas para (I) a liderança da OLP e (II) a presidência da Autoridade Nacional Palestiniana, nem a unção por parte da secretária de Estado norte-americana à nova liderança, nem a retórica da declaração oficial de Ariel Sharon em Sharm el-Sheikh – "Queremos conduzir um diálogo genuíno e honesto por forma a transformar estes primeiros passos numa base sólida para os alicerces das nossas relações" - garantem, separadamente ou em cadeia, a prevalência do mais recente acordo do Mar Vermelho. É a História que demonstra a verdadeira medida da fragilidade da diplomacia no Médio Oriente.

O acervo cronológico de malogros diplomáticos é extenso, mas importa citar um punhado deles: 1) Em 1998 Yasser Arafat e o então primeiro-ministro israelita, Binyamin Netanyahu, assinam o memorando Wye River, com vista à implementação dos acordos de Oslo II; 2) Em 1999 - face à paralisia na implementação dos acordos de Oslo – o chefe do Governo israelita Ehud Barak e Yasser Arafat assinam o memorando de Sharm el-Sheikh; 3) Em 2000 a cimeira de Camp David entre Ehud Barak e Yasser Arafat redunda num fracasso e Ariel Sharon, candidato do Likud a primeiro-ministro, passeia-se pela esplanada das mesquitas, em Jerusalém, acabando por levar os palestinianos a lançarem a segunda Intifada; 4) Em 2001 George W. Bush assume a Presidência dos Estados Unidos e Ariel Sharon arrebata as eleições em Israel. As conversações israelo-palestinianas de Taba acabam sem efeitos práticos e o processo de Oslo queda-se congelado; 5) Na sequência de uma série de atentados suicidas perpetrados pelos movimentos radicais palestinianos, Ariel Sharon lança a Operação Escudo Defensivo, dando início à ocupação de territórios sob o controlo da Autoridade Nacional Palestiniana. Por esta altura o Quarteto (Estados Unidos, União Europeia, Rússia e Nações Unidas) torna público o Road Map (Roteiro para a paz), que prevê a criação de um Estado palestiniano independente até 2005.

Estamos, portanto, conversados quanto às virtudes das iniciativas diplomáticas naquela região do mundo. E desta feita, apesar dos sinais positivos e de certa forma encorajadores – a reactivação das representações diplomáticas da Jordânia e do Egipto em Israel é, certamente, o sinal menos importante, quando comparado com os 390 milhões de dólares que Washington se prepara para entregar aos palestinianos -, não há, em bom rigor, razões suficientemente sólidas para abandonar a prudência e crer que o terreno onde se pretende semear a paz deixou de estar minado. Isso mesmo, aliás, acabam por reconhecer as duas partes nas declarações finais da cimeira: Mahmoud Abbas admite que israelitas e palestinianos divergem em "várias questões", nomeadamente "os colonatos, a libertação de prisioneiros e o muro"; Ariel Sharon sublinha que "esta é uma oportunidade muito frágil, que os extremistas vão querer explorar".

O acordo de Sharm el-Sheikh enferma, sobretudo, de uma deficiência inescapável: o livre arbítrio das diferentes facções radicais palestinianas.

Sentadas à mesa das negociações, as delegações israelita e palestiniana firmaram, é certo, um acordo para a suspensão imediata de "todos os actos de violência contra israelitas e palestinianos em todos os territórios". Contudo, se, por um lado, o poder político de Telavive exerce um controlo efectivo sobre os recursos militares do Tsahal, e por isso Ariel Sharon está em condições de assegurar um cessar-fogo, Mahmoud Abbas é, por seu turno, um líder político com um alcance de poder incompleto e pouco sustentado, incapaz, na prática, de exercer a sua autoridade junto de movimentos como o Hamas ou até mesmo as Brigadas dos Mártires de Al-Aqsa, conotadas com a sua própria formação política, a Fatah.

O Hamas deixou claro que não se considera vinculado ao acordo de cessar-fogo logo após a conclusão dos trabalhos em Sharm el-Sheikh. E responsáveis palestinianos, citados pela agência noticiosa Reuters, avançaram que o Hezbollah xiita libanês estará já a procurar recrutar bombistas suicidas para incinerar a suspensão das hostilidades.

Hoje, três dias após a declaração de tréguas, membros das Brigadas Ezzedin al-Qassam, braço armado do Hamas, dispararam granadas de morteiro contra colonatos judaicos de Gaza, o que já levou Telavive a protelar as conversações de coordenação das questões de segurança com as autoridades palestinianas. O caminho, como se vê, é mais que tortuoso.

Poderá Mahmoud Abbas conquistar as facções extremistas para a "causa política" e cumprir a promessa de "uma lei, uma autoridade, uma arma"? Conseguirá Ariel Sharon concluir, contra uma feroz oposição interna – o próprio ministro israelita dos Negócios Estrangeiros, Sylvam Shalom, assume um posicionamento de insubordinação e exige a realização de um referendo -, a retirada unilateral das forças israelitas e o desmantelamento dos colonatos judaicos da Faixa de Gaza e do Norte da Cisjordânia?

As respostas a estas questões ditarão o verdadeiro significado do dia 8 de Fevereiro de 2005.