O Sedentário

terça-feira, novembro 30, 2004

Sons da manhã

Moves like a fist through traffic
Anger and no one can heal it
Shoves a little bump into the momentum
It’s just a little lump
But you feel it
In the creases and the shadows
With a rattling deep emotion
The cool, cool river
Sweeps the wild, white ocean

Yes Boss. The government handshake
Yes boss. The crusher of language
Yes Boss. Mr. Stillwater,
The face at the edge of the banquet
The cool, the cool river
The cool, the cool river

I believe in the future
I may live in my car
My radio tuned to
The voice of a star
Song dogs barking at the break of dawn
Lightning pushes the edge of a thunderstorm
And these old hopes and fears
Still at my side


Excerto de The Cool, Cool River (Paul Simon)

Nota: não há tormenta que não ceda a um ou dois traços de luz, desses que rasgam muralhas de nuvens; o problema reside na morosidade. No entanto, explica-nos Séneca, "toda a nossa vida pretérita é já do domínio da morte". Eis, portanto, parte da chave que procuro.

segunda-feira, novembro 29, 2004

Camarada Guerreiro

Quem, depois deste fim-de-semana, procura apurar a composição do substrato ideológico do PCP pós-XVII Congresso deve ignorar os discursos do novo secretário-geral. Fazê-lo é poupar tempo e energia intelectual. Não. Bastará ler as reacções sincronizadas e as manobras de tropa na parada dos delegados e convidados.

O PCP de Jerónimo de Sousa é o partido unanimista das ovações bípedes, obedientemente observadas a cada ponto final parágrafo; o PCP "jovem" de Jerónimo de Sousa albarda o pescoço em kaffyehs palestinianos, o cocuruto em bóinas bascas ou evocativas das glórias revolucionárias da Sierra Maestra e não pergunta ao secretário-geral, "eleito" em delírio ortodoxo pelo novo Comité Central – por sua vez entronizado por 95 por cento dos 1.298 delegados ao Congresso -, o que quer realmente dizer quando exorta os comunistas portugueses a fazerem prova, "se necessário", de "coragem física para encetar o caminho duma democracia avançada e do socialismo"; o PCP de Jerónimo de Sousa vê no PS uma espécie de Hidra de Lerna fascista camuflada de partido de esquerda, ao passo que nem sequer logra balbuciar uma opinião sobre a maior - e mais premente - ameaça eleitoral que impende sobre a sua cabeça: o Bloco de Esquerda; o PCP de Jerónimo de Sousa assobia e uiva às palavras do camarada Lopes Guerreiro, cuja estuporante heresia foi ter sugerido que o centralismo democrático "é sempre centralista", por mais democrático que possa ser.

A verdade é que, em matéria de "democracia avançada", a mais expressiva prova de "coragem física" que se viu ao colectivo reunido no pavilhão desportivo de Almada partiu do vereador da Câmara Municipal do Alvito, que, do alto da tribuna, se limitou a (d)enunciar os ingredientes que vêm ditando o tão evocado e tão pouco discutido "definhamento" do PCP (ver adenda).

A saber: a "verdadeira crise de identidade e (...) falta de respeito entre camaradas"; o défice de conhecimento e discussão (resultante, é certo, do simples desinteresse de muitos militantes, mas também dos procedimentos arcaicos, pesados e estéreis do Partido), por parte dos militantes alheios aos órgãos de direcção, das questões respeitantes à vida do PCP; a manutenção obtusa do centralismo democrático nos Estatutos – no número 2 do Art.º 19.º estatui-se que "devem ser contrariadas tanto tendências centralistas que diminuam a capacidade de iniciativa de organismos de responsabilidade inferior, como tendências sectorialistas que prejudiquem a unidade de acção", porém, quem conhece o PCP sabe que contrariar as ditas "tendências centralistas" equivale a cometer harakiri; o "clima de crispação" alimentado pela direcção do Partido, preconizadora de "processos de intenção" que visam colocar "camaradas contra camaradas"; por fim, e mais importante, a facciosa atribuição de responsabilidades pela perda de influência eleitoral do Partido "aos que expressam posições mais críticas, nunca aos dirigentes".

O que dizia, a este propósito, o Projecto de Resolução Política (Teses) para o XVII Congresso? O que se segue: "No tempo decorrido desde o XVI Congresso, (...) no plano nacional prosseguiu a política de direita com o governo PS, aprofundada pelos governos reaccionários do PSD/CDS-PP, e a ofensiva para desvirtuar o regime democrático saído da Revolução da Abril. A que se somou, neste período e convergentemente, uma campanha dirigida contra o Partido, em que se integra a acção fraccionista [o itálico é da minha responsabilidade], para o desagregar, deturpar as suas propostas, posições e actividade".

Mais adiante: "O Partido, embora com insuficiências e dificuldades, desenvolveu uma ampla e determinante intervenção com o envolvimento das suas organizações e militantes. Milhares de militantes do Partido assumiram de forma decisiva o esclarecimento, a mobilização e a organização da luta da classe operária, dos trabalhadores e de outras camadas sociais contra a política governamental em inúmeras lutas, de que se destaca a greve geral de Dezembro de 2002 contra o pacote laboral".

O "brilhantismo" deste diagnóstico, que os comunistas dos kaffyehs abençoaram este fim-de-semana, é sublinhado, como se sabe, pelo crescimento acelerado da expressividade eleitoral do Bloco de Esquerda, pelas sucessivas derrotas eleitorais do PCP, sobretudo ao nível do poder local, e pela persistente caricatura, nas páginas da imprensa e, em boa verdade, um pouco por toda a parte, do léxico anacrónico e autista dos dirigentes do Partido.

Não obstante o benefício da dúvida a que os recém-eleitos secretário-geral e Comité Central têm direito, há um exercício de futurologia que me parece relativamente pacífico. Quem acabará por pôr as "barbas brancas de molho", as suas e as de um cada vez mais hipotecado "partido de classe", é o próprio Jerónimo de Sousa.

Adenda: No domingo, também o camarada Fernando Vicente, militante comunista desde 1962, subiu ao púlpito para defender a transformação do PCP num "partido aberto à vida, ao diálogo e ao debate, um partido que combata realmente a dogmatização e a estagnação teórica, que não transforme os princípios teóricos em verdades eternas e não ajeite a realidade à sua concepção e vontade". Não foi vaiado como Lopes Guerreiro, por certo para evitar o espectáculo de intolerância totalitária que as câmaras dos canais televisivos haviam registado na véspera.

sexta-feira, novembro 26, 2004

Dr. Fernando Valle, 1900-2004

Este é um povo por quem tenho grande admiração. Penso como o Raul Brandão: este não é um povo de desgraça, mas que resiste contra os profetas da desgraça e até contra a própria desgraça.

«Por aquelas serranias de sombras e luares, silêncios e alcateias, onde não se chegava de carro, era preciso andar sobre sela, mais a passo do que a trote, por vezes acompanhado por um lampião que o vento apagava. Chegava a ir ao Piodão, a mais de 40 quilómetros (...) E a demorar um dia inteiro, da alba à noite, para chegar a terras como Teixeira. Em muitos desses sítios, pastores e camponeses pagavam-lhe com uns ovos ou um frango - riqueza de pobre. No regresso, era capaz de tirar esses "honorários" do alforge para dar a outros doentes (...) E, inúmeras vezes, na mesinha de cabeceira onde pousava a receita deixava também a nota para a pagar ao farmacêutico.»

Fernando Madaíl, Fernando Valle - Um Aristocrata da Esquerda, Lisboa 2004, p. 101.

quinta-feira, novembro 25, 2004

Retornado

Atroz fadário, este de esgaravatar a sarça de mãos despidas; espinhos cravados nas falanges, esporos requintados a arreliar mucosas, riscos de hemoglobina sem ordem aparente. Triste verdade, esta de existir de permeio com a mentira; céu pouco nublado, mesmo assim o chuvisco frio a cair na testa; temperatura a namorar o Estio, o da vida e o outro, e os açoites de vento glacial nas cornucópias das orelhas. Falso quadro clínico, este das pústulas cá dentro que ninguém vê e da cefaleia que não chega a sê-lo; rádios e cúbitos vergam com o peso do mundo sem cuidar de o tomar.

Nota: percebi, nestes dias de silêncio, que não nutro O Sedentário; já o contrário aproxima-se mais da verdade. O fim chegou a estar decretado.

quinta-feira, novembro 18, 2004

Encruzilhada

Todos os ciclos conhecem um termo. Sem prazos e completamente imune ao julgamento alheio, o autor deste blog está a reflectir sobre a necessidade da sua existência. São dias decisivos para a sorte de O Sedentário.

sexta-feira, novembro 12, 2004

Verbo alheio

Sem o silêncio de quem sabe que as palavras morrem quando mal ditas... não sou nada.

Por aqui ecoa, hoje, uma boa parte daquilo que me assola o crânio. Para quê um tropel de frases mais ou menos narcisistas, se um olhar certeiro é quanto basta para condensar enciclopédias?

quinta-feira, novembro 11, 2004

Conversa vespertina

- Eh pá, tens de escrever sobre o Arafat!
- Por que motivo?
- É uma figura histórica que desaparece, pá, o grande Abu Ammar, o símbolo da resistência palestiniana.
- Então e os milhões de dólares sonegados à Autoridade Palestiniana entre 1995 e 2000? E a mesada de 100 mil dólares atribuída a Suha Arafat? E a fortuna pessoal, que se estima chegar aos seis mil milhões de dólares? E a ambiguidade quanto às acções dos movimentos extremistas?
- Isso não interessa para nada, pá...

quarta-feira, novembro 10, 2004

Boa tarde. Como está?

Ao fim de hora e meia de interrogatório minado, conduzido pela melhor encarnação de Tomás de Torquemada que alguma vez descortinei aos comandos tecnocráticos de uma secretária, sou tomado de assalto pela pergunta sacramental: que fazer deste nada que é tudo?

terça-feira, novembro 09, 2004

Vazios

Ocupava um banco caiado a quatro mãos e contemplava o vidro espesso de uma garrafa de gasosa; estampas de um olho pisco e de uma boca linear, repetidas a norte, a sul e nos antípodas da garrafa, pediam-me que vertesse o líquido gasoso para uma caneca medalhada com uma recriação da escadaria do Bom Jesus de Braga, vergada um ano após outro aos delírios impressionistas de um mistifório de dedos. Lascas de alho chiavam sobre a costeleta de porco lançada à frigideira; torrões de arroz branco adernavam com vagar no oeste do meu prato, próximo da latitude de folhas de alface e circunferências de tomate; e eu cuidava ver-me na escadaria impressionista, trepando-lhe os degraus até a um menino Jesus perfumado de alho e louro e a levitar de braços abertos entre bolhas ascendentes de gasosa.

Às vezes, o banco que ocupava não era caiado a quatro mãos, antes forrado a napa verde polida por uma inquietude de nádegas várias; não havia dois bancos iguais na cozinha da minha avó; não havia banco que não suportasse - sólido como o pedestal da padroeira de Queluz, arrumada no flanco da pia baptismal de uma igreja quadrilátera - a malga de sopa de feijão servida ao pobre com uma barba de cerdas, sentado à hora certa nas escadas do prédio; a minha avó a esvair-se em desculpas por não ter mais pão e o pobre a esvair-se numa vénia e num ó minha senhora Deus lhe pague. Se bem me lembro, Deus não chegou a repor as parcelas que a minha avó ia apontando no caderno dos fiados.

Se bem me lembro, a gasosa chamava-se Rical e era comprada na outra margem da D. Pedro IV, num lugar de paredes húmidas, a mão crestada do merceeiro a anestesiar os láparos à chapada antes de lhes extrair o pêlo e os intestinos. Se bem me lembro, poisava a tabuada que rendia a costeleta de porco e fazia do quintal um galeão, da nespereira um mastro, da capoeira o castelo de popa. Se bem me lembro, depois de fundear afogava bolachas Maria no café de arraial da minha avó. Lembro-me.

25 anos - "a poder de lágrimas e ais"

Isto às vezes é tremendo porque a gente quer exprimir sentimentos em relação a pessoas e as palavras são gastas e poucas. E depois aquilo que a gente sente é tão mais forte que as palavras... Dizem que Putshkin quando usa a palavra "carne", a gente sente-lhe o gosto na boca. A palavra carne é sempre a mesma, depende das palavras que se põem antes e das palavras que se põem depois. Para que as pessoas sintam o gosto na boca eu tenho que trabalhar como um cão, até encontrar as palavras exactas antes e depois (...) Se trabalhar muito no osso, despindo da gordura – adjectivos, advérbios de modo, proposições – acaba por chegar lá.

Quando o [primeiro] livro saiu eu fui de férias. Quando voltei (já estava a escrever o terceiro livro) era famoso. O livro estava em todo o lado, vendia imenso, fizeram-se várias edições, e eu ia à noite – tinha vergonha de ir durante o dia – espreitar as montras da Baixa e ver o meu nome impresso.

A frase mais importante que eu ouvi na minha vida foi na Faculdade de Medicina, numa aula de Neurologia com o professor Miller Guerra. A doente era uma senhora com Parkinson, com dificuldade em mover-se. "Como é que a senhora consegue fazer a lida da casa?", perguntou-lhe o professor. "É tudo a poder de lágrimas e ais". Eu tinha 20 anos e nunca mais esqueci. Se eu pudesse escrever assim!...


António Lobo Antunes
Fragmentos da entrevista conduzida por Adelino Gomes (Público, 9 de Novembro).

segunda-feira, novembro 08, 2004

Mel

Transpiro por dentro. Exsudo gotas de um mel cor de âmbar que enche frascos de pouca monta, excepto quando essa tua voz de riso cristalino vem adoçar-me o ouvido sem cobrar o que quer que seja - dizem ser isto a amizade. Quando assim é, o mel escorre caudaloso; vai desenhar na tela mais profunda o teu sorriso – não quero crer que o deixes mais e mais rarefeito -, que aí fica indelével, minorando os dias anuviados e as noites maculadas pela vigília assustada, o medo a tomar o leme sem desvelo e as gotas de mel cor de âmbar a tornarem-se chuva cor de tristeza. Mas hoje transpiro por dentro, aconchegado na tua candura.

Nota: conversámos há pouco ao telefone. Obrigado.

sexta-feira, novembro 05, 2004

Vocabulário

A giba; a bujarrona; a vela de estai; a polaca; o traquete; o velacho; o joanete de proa; a formosa; a grande; a gávea; o joanete grande; estai do joanete grande, estai da gávea, estai do grande, estai real da gata, estai da gata e estai da sobregata; a gata e a sobregata; a mezena; a vela da ré.

Um pedaço da dissertação do aspirante a tenente James Mowett, instado a descrever a corveta em que navega: Começaremos pelo gurupés. Há uma verga que o cruza, com a cevadeira ferrada nela. Essa é a verga da cevadeira, naturalmente. Depois, passando ao mastro de proa, a de baixo é a verga do traquete e a grande vela redonda ferrada nela é o traquete; a verga do velacho cruza por cima desta; depois, temos a verga do joanete de proa e a verga do pequeno sobrejoanete com a sua vela ferrada.

Esta noite fiz-me ao mar com Patrick O’Brian. Aportei de madrugada.

quinta-feira, novembro 04, 2004

Retórica - epílogo

To make this nation stronger and better, I will need your support, and I will work to earn it. I will do all I can do to deserve your trust. A new term is a new opportunity to reach out to the whole nation.

George W. Bush, Presidente reeleito dos EUA
3 de Novembro de 2004 - Edifício Ronald Reagan (Washington)

Adenda: O Sedentário vira a página.

quarta-feira, novembro 03, 2004

A declaração, o Ohio, a psicose

Não é saudável erguer a carcaça dormente e despertar a engrenagem encefálica ao som de uma afirmação deste tipo: John Kerry and I made a promise to the American people that in this election every vote would count and every vote would be counted. Tonight, we are keeping our word.

Às primeiras horas da madrugada de uma quarta-feira sombria, a equipa de Mary Beth Cahill faz subir o candidato democrata à vice-presidência ao palco de Copley Square, em Boston. John Edwards esperneia. Esperneio com ele.

terça-feira, novembro 02, 2004

Em dólares

No dia em que os eleitores norte-americanos optam entre uma centelha (apenas e só uma centelha) de esperança e um caminho obstinado para a aniquilação da espécie, ocorre-me uma ideia; a ideia de que é possível apurar o preço da pulverização da ordem mundial – os 273 milhões de dólares que a máquina eleitoral do GOP angariou e despendeu para reeleger o Presidente George W. Bush.