Os agentes políticos e económicos da Rússia de Vladimir Putin debatem-se, há mais de uma semana, com as ondas de choque provocadas por uma verdadeira pedrada no charco pastoso da lógica oligárquica. Detido desde 25 de Outubro no estabelecimento prisional Matrosskaya Tishina, em Moscovo, o antigo patrão da petrolífera Iukos, tido como o homem mais rico do país, aguarda o dia em que terá de ocupar o banco dos réus. Mikhail Khodorkovski, temível adversário político do presidente russo, é acusado de fraude e fuga ao fisco.
O discurso oficial do Kremlin continua frio e matemático, à imagem do pardacento ex-operacional do KGB que sucedeu a Boris Yeltsin. Mas o
modus operandi do presidente russo é cada vez mais a negação da imagem baça que a comunidade internacional lhe conhece. Em entrevista ao jornal italiano "Corrieri della Sera", publicada na terça-feira – a 48 horas da cimeira com a União Europeia, em Roma -, Vladimir Putin disparou os mesmos chavões que tem vindo a disseminar desde a prisão de Khodorkovski e o subsequente congelamento de 40 por cento das acções da Iukos. Aos temores e suores frios dos potenciais investidores estrangeiros, Putin responde com a matriz seca empregue em Moscovo desde os tempos idos da bandeira rubra: "Também nos Estados Unidos, nos últimos dois anos, uma vintena de presidentes de empresas foram chamados à Justiça. Basta pensar no relevo do caso Enron, com directos na televisão. Mas não aconteceu nada de extraordinário e ninguém pôs em dúvida a existência do Estado de Direito. Também connosco não há nada de excepcional". Não?
Stephen Sestanovich, especialista do
Conselho para as Relações Externas (CFR), uma organização não-governamental norte-americana com sede em Nova Iorque, propugna uma tese em tudo diferente. Sestanovich, citado pela publicação bimensal do CFR, "Foreign Affairs", não se coíbe de afirmar que "Putin está a enviar aos altos funcionários mesquinhos, por toda a Rússia, a mensagem de que é correcto molestar empresas". E vai mais longe: "Na Rússia, a ocupação de um cargo governamental tem, muitas vezes, sido vista como uma oportunidade de adquirir riqueza pessoal. Isto também acontece noutros países, claro, mas a ideia de um responsável governamental usar o seu poder para extorquir dinheiro ou para obter dinheiro de pessoas ricas é virtualmente parte da descrição das funções de muitos burocratas russos".
Na óptica de Sestanovich - e de muitos analistas políticos russos -, a "ofensiva" judicial contra a Iukos tem por base uma motivação política, precisamente aquela que Vladimir Putin não quer, aparentemente, confessar.
"A entourage de Putin no Kremlin é composta por muitas pessoas que não enriqueceram com a compra de propriedades do Estado nos anos 90 e que querem jogar à apanhada. Este motivo dá uma dimensão pessoal ao seu desejo mais amplo de afastar os oligarcas da política", defende o especialista do CFR.
Por sua vez, Vyacheslav Kostikov, jornalista do semanário russo "Argumenty i Fakty", assevera, citado pelo "Washington Post", que a detenção de Khodorkovsky resultou de "uma luta feroz no topo sobre a questão fundamental do caminho da Rússia de agora em diante". Nos dois flancos do campo de batalha, erguem-se duas facções desavindas da Administração russa: a primeira, aquartelada em São Petersburgo e afecta a Vladimir Putin, é composta por antigos elementos dos serviços secretos e das Forças Armadas; a segunda, ao que tudo indica derrotada, integra elementos da elite moscovita, alguns deles oligarcas, que foram introduzidos nos corredores do Kremlin durante a governação do antecessor de Vladimir Putin, Boris Yeltsin.
Também citado pelo diário norte-americano, o colunista russo Kirill Rogov traça as diferenças fundamentais que apartam as duas facções. O grupo moscovita, explica o colunista do jornal russo "Gazeta", é favorável a um "capitalismo privado", tendo sido responsável pela edificação de um sistema económico dominado pela oligarquia de 90. Os
boys de Putin defendem, por seu turno, a prevalência de um "capitalismo de Estado", bebendo, de certa forma, inspiração no regime chinês.
Quer se trate de purgação das estruturas políticas ou de "aperfeiçoamento das instituições democráticas" – uma "promessa" de Putin na entrevista ao "Corrieri della Sera" -, o certo é que Mikhail Khodorkovski anda muito longe de ser um amigo do presidente russo.
O homem mais rico da Rússia
A história de Mikhail Khodorkovski, actualmente com 40 anos, é a epítome dos processos nebulosos de enriquecimento decorrentes da desagregação da União Soviética e consequente desconchavo da economia. Durante a década de 90, capitalizando a vaga de privatizações sob o beneplácito de Yeltsin, a casta dos oligarcas russos assumiu o controlo das principais empresas, amealhando fortunas incomensuráveis em tempo reduzido.
O que desde cedo distinguiu os oligarcas russos dos
tycoons norte-americanos, como muito bem assinala Stephen Sestanovich, é o facto de não terem edificado de raiz um único projecto. "Eles não criaram companhias petrolíferas ou caminhos-de-ferro, ou sequer fundições. Eles simplesmente arrancaram-nas ao Estado", sublinha.
Na vertigem da liberalização febril da economia russa, os oligarcas adquiriram património estatal a preços irrisórios. E importa frisar que a voragem das privatizações teve início ainda sob o Governo de Mikhail Gorbachev, nos últimos suspiros dos anos 80 e, simultaneamente, do Bloco de Leste.
A corrupção terá sido, durante anos, o veículo mais apetecido. "Muitas coisas", prossegue Sestanovich, "foram vendidas mediante negócios corruptos internos que incluíam quebra de preços, subornos e tudo o mais". Khodorkovski construiu a sua fortuna colossal com recurso aos mesmo meios obscuros, primeiro na banca, posteriormente no sector do ouro negro. Em 1996, conquistou uma posição maioritária na Iukos pela módica quantia de 300 milhões de dólares.
Vladimir Putin é um confesso paladino da "democracia gerida", um conceito peregrino que esbarra em cheio na arrogância oligárquica de personagens como Mikhail Khodorkovski. Não espanta, por isso, que a trégua firmada entre o Kremlin e os oligarcas em 2000, ano em que Putin assumiu a presidência, tenha soçobrado de uma forma tão dramática.
Para além de atribuir financiamentos profusos a uma orgia de formações políticas da Oposição, o patrão da Iukos dedicou-se a uma prática desafiadora de intervenção directa na política externa russa, fazendo tábua rasa dos freios que o Kremlin visava impor ao meio empresarial; gizou, nomeadamente, planos com vista à exportação de petróleo para os Estados Unidos.
O charme eslavo de Khodorkovski depressa se fez sentir nos Estados Unidos. Logo em 2001, refere o diário norte-americano "New York Times", o magnata russo procurou agendar um encontro com Condoleeza Rice, a conselheira para a Segurança Nacional do então recém-empossado George W. Bush. A névoa que cobria o passado do empresário ter-lhe-á valido uma recusa sumária. Porém, Khodorkovski persistiu, injectando avultadas somas em organizações apartidárias norte-americanas e procurando criar uma "teia" de suporte nos EUA. Em Junho deste ano, adianta ainda o "New York Times", logrou chegar à fala com Spencer Abraham, secretário norte-americano da Energia.
Khodorkovski estaria alegadamente a preparar a venda de parte da Iukos a um gigante petrolífero do Ocidente, designadamente a norte-americana Exxon.
O apetite compulsivo de Khodorkovski pelos benefícios da influência política conheceu o seu auge em Abril de 2002, quando encetou uma série de contactos com as lideranças de partidos representados na Duma (câmara baixa do Parlamento russo) visando formar uma frente contra Vladimir Putin. O objectivo: as eleições parlamentares agendadas para o dia 7 de Dezembro deste ano.
Os expedientes do "califa" do petróleo russo redundaram num epílogo "hollywoodesco". A 25 de Outubro, na Sibéria, uma unidade de comandos tomou de assalto o avião particular de Mikhail Khodorkovski, que partilha, desde então, uma cela com outros três prisioneiros.
Putin bem pode apregoar que pretende "aperfeiçoar" o edifício político da Rússia, que os efeitos da sua estratégia estão à vista: Alexander Voloshin, chefe da administração presidencial conotado com a "facção de Moscovo", abandonou o Executivo em protesto contra o tratamento de choque administrado à Iukos; o presidente, esse, enfrenta a mais grave crise económica em quatro anos de mandato.
Nota: este foi para suprimir saudades da liça quotidiana, confesso... Deixo, por último, um
link para um dos melhores artigos que encontrei sobre o processo Khodorkovski.