O Sedentário

quinta-feira, novembro 27, 2003

TRATAR CONGESTÕES PASSADAS

Ei-la, a dor de alma. Uma faca que separa, com minúcia, o ventrículo esquerdo numa primeira fase, cortando, depois, a bomba às postas até à profusão do cloreto de sódio nas orlas dos olhos. É chorar. A alma acometida de dor quando envolta no manto diáfano da solidão. Só, sozinho, desacompanhado. Mantendo saborosas conversas com as paredes, auscultando a venerável sabedoria do reboco e a poesia porosa do tijolo. Só. A mesa posta para dois, apesar de não haver dois, porque para tal é fundamental somar um e outro e não há outro que não somente um.

É olhar o pássaro bebericando na poça infecta e invejar-lhe a felicidade. A felicidade da ave canora, porque não a tem, a dor de alma. Que animal tão estúpido. Sozinho. "Olha ali aquele senhor, mãe. Está a falar com o canário. O senhor é maluco, mãe?". Desacompanhado. Expliquem à criancinha, que ninguém a atura. Comprem-lhe lá a porcaria do rebuçado, o maior que houver na loja, para lhe encher a boca até ao limiar da sufocação.

E no entanto até é boa, a dor de alma. Ei-la cá dentro, dilacerando, cortando a bomba - ao som de bombos e bonecos oscilantes de magnânimas cabeças, que festa é festa - em bifes ou às postas, consoante o gosto do freguês. "Tenho aqui uns bifinhos do lombo, dona Gertrudes, que só visto"... A dor de alma também açoita o lombo, pois então. O lombo do suíno regado a vinho lá da terra. A terra, ao que parece, degusta, alarve, os olhos das pessoas. A vizinha de cima, que areja os borbotos do robe pela manhã, diz que vê com os olhos "que a terra há-de comer".

Se a plêidade (que belíssima palavra, porém dispendiosa) de dores - "ai que dores que eu trago nas costas, valha-me Deus" - pudesse ser arregimentada numa peça de vestuário, um vestido, por exemplo, a dor de alma seria quando muito a fímbria. Mas dói tanto. Só, sozinho, desacompanhado.

Contudo, é tudo uma questão de hábito, que, neste caso assaz bicudo e isósceles, faz literalmente o monge. Só. Só um monge e não dois, pois está sozinho. Mas tem de ser um monge budista, que está na moda.

A alma assa como uma dúzia de castanhas no interior dum fogareiro decorado a fuligem negra. A alma até fica saborosa, quentinha de tristeza - ai que coisa "mai" linda -, mas a casca apresenta-se feia, acinzentada. Não se pode tocar na casca, que os dedos ficam logo sujos. Assim, dando prossecução à política adoptada pelo Ministério do Fado de Coimbra e da Revista - em edição revista e actualizada - à Portuguesa e ao Português, ninguém toca nas castanhas, se faz favor! Ninguém afaga a alma de ninguém que possua alma e, claro está, dor da mesma, da alma.

Sozinho. Faz-se tarde, na jornada, na semana, no mês, no ano, na década, na vida tão desabrida. Faz-se tarde e a lágrima evapora-se já ali, são só mais duzentos metros, o senhor corta à esquerda e quando vir a farmácia, pronto, é aí mesmo. Agasalhe-se, olhe que esta humidade...

Adenda - Retomei o exercício. Assumindo como "repto" alguns recortes de mensagens de E-mail e dos meus textos mais "carunchosos", cozinhei - acrescentando-lhe algum tempero, claro - esta canja, que no Inverno sabe muito bem. Além disso, trazia a "tripa" congestionada...

POR UMA VEZ... A POESIA (EM CASTELHANO)

(...)
Tengo, vamos a ver,
que no hay guardia rural
que me agarre y me encierre en un cuartel,
ni me arranque y me arroje de mi tierra
al medio del camino real.
Tengo que como tengo la tierra tengo el mar,
no country
no jailáif,
no tenis y no yacht,
sino de playa en playa y ola en ola,
gigante azul abierto democrático:
en fin, el mar.

Tengo, vamos a ver,
que ya aprendí a leer,
a contar,
tengo que ya aprendí a escribir
y a pensar
y a reír.
Tengo que ya tengo
donde trabajar
y ganar
lo que me tengo que comer.
Tengo, vamos a ver,
Tengo lo que tenía que tener.

Nicolás Guillén
"Tengo", in "Obra Poética: 1958-1972"

INSTRUÇÕES PARA MORRER SÓ

I

Há algo de via sacra na forma como abandona diariamente o ninho cálido e percorre, indolente, o trajecto monótono. Não suporta cruz ou coroa de espinhos, mas sente o desânimo nas gotas de suor - ou sangue, não sabe - que lhe brotam da testa e o peito arquejante por via de um peso de madeira maciça.

O buraco na estrada, a erva daninha que subsiste teimosa por entre a pedra branca da calçada. O semblante áspero do solitário do prédio ao lado, que dá à chave do carro importado e olha de soslaio. As personagens envergonhadas que, como ele, deixam hesitantes os refúgios nocturnos. Enfrentam o primeiro sopro de dia, arauto de obstáculos, constrangimentos e crivos da felicidade que sonharam certo dia, quando os braços do pai ou as costas da mão materna asseguravam a imunidade.

É frio, o ar da manhã. Não importa a estação do ano, tão-pouco a do comboio em que terá de viajar. Pode ser Verão. Pode ser a estação de monstros de ferro mais exposta ao astro quente, que o ar é sempre frio. Penetra-lhe a pele e vai alojar-se junto da espinha, aninhado nas vértebras. É um frio triste.

Assume o seu posto no interior da carruagem. Olha os rostos, uns estéreis, outros impenetráveis, outros ainda que devolvem o olhar perscrutador. Há os que ensaiam diálogos vazios, os que olham a parada de vida através dos vidros frios. Há os que procuram o reflexo do seu próprio rosto no vidro, quando o sol resolve lembrá-los de que estão vivos, de que vão ali. Estão? Vão?

A viagem sabe-lhe a pouco. Se pudesse, passaria o dia no interior da carruagem, a ler olhares, adivinhando a hipocrisia nos lábios que rasgam sorrisos.

Chegou. Antevê o arrastar das horas e dos pés no soalho do local de trabalho, onde não é reconhecido e não quer que o reconheçam. Quer abandonar o cárcere e tudo faz para que não o desejem. Procura a rejeição nas entranhas da besta.

Ela senta-se à sua frente, sorri-lhe. É isso que o faz abandonar o ninho cálido. É por isso que percorre, indolente, o trajecto monótono. Sente-a na pele sem a tocar. Respira-a ávido. Mas não ousa arrebatar o inatingível.

Sonha cenários, palavras sussurradas que jamais ousará sussurrar. Alimenta-se com uma felicidade imaginária. Cerra as pálpebras e escuta com a alma o que os seus lábios não produzem: quanto toquei o teu cabelo senti calor. E mais significativo que o conforto interior foi ver os teus olhos humedecerem-se. Por instantes, correspondeste ao meu gesto. Terei eu o direito de te abalar desta forma? Ao tocar-te sinto-me completo, compreendido, tremo e temo não ficar por aí.

II

Vem cá, toma. Partilho-o contigo, se quiseres. É pouco, mas é o que tenho para ti. Vá lá... Tens um ar tristonho. Olhas-me cabisbaixo, submisso. Olhos húmidos. Queres? Vem cá, toma. Vês? Já não estamos sós, pois não? Deixa-me afagar-te o pelo, rapaz. Senta-te aqui a pé de mim e come. Compro a tua companhia com este naco de carne, essa presença fiel que nenhum bípede pode proporcionar. Os meus olhos estão solidários com os teus. Humedecem-se, vês?

Arrasto-me penosamente pela vida, sabes? Espero, em breve, fechar os olhos, dar descanso à metade de coração que insiste em bombear sangue através deste corpo rangente. Por que motivo me olhas assim? Que fracção do meu discurso não compreendeste? A metade de coração? Bom, isso é fácil de explicar! Alguém trincou a outra metade, rasgando-a. Fui amputado. Extirparam-me o afago no rosto, o beijo em lábios molhados, a pele com a pele e os meus braços a ensaiar abraços. Extraíram o perfume alheio a apaziguar-me o espírito. Toma mais. É pouco, eu sei, mas é tudo o que tenho para ti.

Vou explicar-te a minha teoria, que antecipo a confusão nesses teus olhos suplicantes. Alguns de nós passam a vida inteira à procura de alguém que os complete. Morrem sós.

terça-feira, novembro 25, 2003

ANTE O DÉFICE DE IDEIAS...

Aqui fica um artigo de Ruben de Carvalho publicado a 15 de Novembro no "Diário de Notícias":

"A verba presta-se a pequenos exercícios aritméticos.

Era suficiente, por exemplo, para assegurar um litro de leite diário durante dois anos a quatro mil crianças.

Poderia também pagar cinco anos de propinas máximas numa universidade a uns 450 jovens portugueses.

Igualmente chegava para pagar 14 meses de salário mínimo a umas quatro centenas de desempregados. Ou um ano de pensões a um milhar de pensionistas. Pagaria seguramente mais de meio milhão de refeições a sem-abrigo.

Seria também suficiente para comprar umas três dezenas de viaturas para corporações de bombeiros. Ou equipar uma centena de escolas com 40 computadores cada.

Segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística, equivale às despesas médias com alimentação durante todo um ano de umas 250 famílias portuguesas com dois filhos.

Nestes tempos de invernias poderia assegurar a vacinação gratuita contra a gripe a 200 mil idosos. O valor em causa é também aquele em que foram avaliadas as jóias com as quais um português pateta e ocioso se passeia de aeroporto para aeroporto e de festança para festança. No aeroporto de Lisboa trazia-as numa malinha com a fascinante designação de - nécessaire".

AINDA O VAZIO

Queria escrever o texto mais belo, arregimentar o palavreado nobre num exército engomado e obediente. Na manhã fria, saí para a rua e experimentei a fugaz inspiração, o sobressalto da ideia que nasce sem aviso, o sabor da fé renovada. Mas, logo ali, o pensamento recém-nascido caiu seco sobre o alcatrão. Ressequido.

Ainda assim, trouxe para casa o nado morto, acalentando a secreta esperança de lograr reanimá-lo, recorrendo à ordem desordenada do dia impresso nas rotativas. Continuou ressequido, o pensamento.

Dei por mim a aplicar a respiração boca a boca, as massagens cardíacas e os pachos mais referenciados em Vilar de Perdizes. Nada. Não havia forma de ressuscitar a ideia. E era tão bonita...

Estou para aqui vazio e oco como o castanheiro que sucumbiu aos rigores dos séculos - incorro na redundância, consciente. O problema é que, desta vez, até queria escrever; o texto mais belo.

segunda-feira, novembro 24, 2003

SEM ASSUNTO

Estou vazio, oco como o castanheiro que sucumbiu aos rigores dos séculos. Não quero escrever. Amanhã regresso.

sexta-feira, novembro 21, 2003

PROCLAMAÇÃO

Já está. Foi formalizado. Sou o militante número 112 447 do Partido Comunista Português.

quinta-feira, novembro 20, 2003

PARA TI

Encontrei os vestígios da poeira das estrelas. Transportava-os, incauto, junto ao peito, no bolso da camisa. Tomei-os na mão, deixei que se esvaíssem por entre os dedos. Fi-lo sem querer, tomado de uma febre hemorrágica. Agora, sozinho, percorro com os dedos a superfíce da fotografia, tacteando o teu rosto de mate.

Embalada pelo vento frio, a poeira foi cair em mãos alheias. O astro iluminou-se num sistema longínquo e a órbita do meu corpo celeste ficou órfã.

Desenhas um sorriso químico no papel, entreabrindo a boca de mel. Não eras feliz. Eu, contigo sem ti, envolvia-te num abraço protector. Restaram-me os vestígios da poeira das estrelas, aqueles que deixei escapar por entre os dedos. Para sempre.

quarta-feira, novembro 19, 2003

OS PNEUS QUEREM-SE REGADOS

Hoje testemunhei um acto de inegável simbolismo. E sem a presença de uma testemunha a meu lado, neste caso a minha mãezinha, ver-me-ia compelido a integrar, urgentemente, a agenda de um psiquiatra, convicto de ter experimentado a demência temporária. Por outro lado, vislumbrar o aparato genital de um transeunte com semelhante testemunha a meu lado anda longe de ser um episódio reconfortante. Mas aqui vai...

No trajecto que medeia entre a igreja de Queluz e o âmago da vila (recuso-me a empregar a designação cidade) - por ali conhecido como os Quatro Caminhos -, deparámos com uma criatura obesa do sexo masculino. Até aqui, nada de excitante, bem sei. O problema é que, de súbito e sem se fazer rogado, a referida criatura, que deveria rondar os seus 17 ou 18 anos, resolveu arejar a parafernália púbica, expondo o material a quem passasse. Não satisfeito, logo ali tratou de despejar o conteúdo amarelado da bexiga na direcção de uma roda traseira de um automóvel.

À nossa passagem, continuou a aspergir o pneu com a calma do monge...

Sintomático dos tempos que correm?

terça-feira, novembro 18, 2003

O QUE DIZ A SUMIDADE

Parte I

"O tempo é muito curioso. À medida que se envelhece o tempo é mais rápido. Ainda agora foi Natal e já vai ser Natal outra vez. Quando se é novo pensa-se que o tempo vai resolver os problemas e depois a partir dos 40 percebe-se que o tempo é que é o problema. Sou muito consciente de que tenho pouco tempo, de que posso fazer mais dois ou três livros e depois acabou. Preciso, no mínimo, de dois anos para escrever um livro".

"A morte de um amigo é uma ferida que não cicatriza nunca. Cada pessoa tem um lugar insubstituível (...)".

"Sempre me ensinaram o pudor em face das coisas realmente graves da vida como a morte ou a doença que conduz à morte. Coisas que a gente guarda só para nós e que obviamente aparecem nos livros. Os livros estão a rebentar de ternura por todos os lados mas não são muito demonstrativos".

"Às vezes é difícil dizer que uma pessoa tem um coração em cada objecto".

"Tenho uma certa desconfiança em relação à palavra pensar. Quando se está a escrever, pode-se pensar enquanto indivíduo, mas enquanto escritor... Sempre me fez confusão as pessoas que dizem: tenho um livro na cabeça, só me falta escrever".

"Não me interessa ser a voz mais expressiva de Portugal. É preciso dessacralizar os prémios. É evidente que são agradáveis. Os prémios, porém, não têm nada a ver com literatura no sentido em que não tornam os livros nem melhores nem piores".

"O drama para as pessoas verdadeiramente de esquerda é que são apátridas. A gente vai votar em quem?"

"Só há grupos onde existem fraquezas individuais".

"A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos".

- Excertos de uma entrevista ao "Diário de Notícias" conduzida por Maria Augusta Silva.

Parte II

"Uma melancolia parda que me lembrava a minha, aquela vontade difusa de morrer sem razão salvo a da vida não ter razão alguma".

in "Exortação aos Crocodilos"

segunda-feira, novembro 17, 2003

ISTO NÃO ANDA BEM...

"Tomo" I

Pretendem os doutos cérebros responsáveis pelo novo programa de Língua Portuguesa que a rapaziada do secundário cultive a dissecação das "relações semânticas de hiperonímia e hiponímia". Importante, está bom de ver!

A professora Maria do Carmo Vieira, contra quem os guardiões do ensino indigente dispararam as mais ferozes vergastadas intelectuais, cita, no "Público" desta segunda-feira, uma fatia suculenta de um compêndio de Língua Portuguesa para o 10º ano. Reza assim: "Cão é um hipónimo de animal; assim, animal é hiperónimo de cão. Lobo é um hipónimo de animal; portanto, animal é hiperónimo de lobo. Raposa é um hipónimo de canino (animal); logo, canino (animal) é hiperónimo de raposa. Cão, lobo e raposa são palavras co-hipónimas (!)".

Saliente-se - é apenas mais um exemplo retirado das directivas talhadas a martelo pelos "ascetas" das "Ciências da Comunicação" (isto soa a algo importante, não é?) - que Camões é arquivado na categoria do "texto de carácter autobiográfico (!)".

"Tomo" II

Há dias, sentado à mesa com a família, ante uma magnífica dourada grelhada, olhei a chuva substancial que caía na rua e afirmei: "temos um domingo à Lobo Antunes".

O elemento mais novo da casa fitou-me com um ar suplicante - de confusão incontornável -, incapaz de interpretar o que eu acabara de dizer. O elemento mais novo da casa frequenta o primeiro ano da Universidade.

Estou preocupado.

domingo, novembro 16, 2003

DEPOIS DA IRA

Enxugadas as pálpebras, o que resta? O que resta verdadeiramente? Nada! Subsiste a consciência antiga do ridículo. As descargas de fel sucedem-se, invariavelmente interrompidas sobre a almofada em que repouso o encéfalo cansado. Para não fugir à praxis dos prosaicos disparos aleatórios, arremessei projécteis a quem não merece.

Não será tempo de crescer?

A quem assacar a culpa, se não ao jogral de bochechas hirsutas que, do lado de lá do vidro, crê ser especial? Não passa de um crente defraudado, como os enfermos e aleijadinhos que acorrem à aldeola de Ancas para enxugar as pálpebras parafinadas da mãe do messias. Não quero a paz de plástico que apascenta as sedes de Benigna Pereira, proprietária feliz do relicário de alumínio branco.

Não será tempo de aceitar?

A resposta é-me servida na bandeja, que de alumínio não apresenta traço. Desculpem-me os "arautos e paladinos da integridade". Porque o são. Porque estou longe de o ser. É, aliás, por essa razão que disparo arbitrariamente - por despeito infantil, sintomático de uma alma plena de pudores e receios.

Não será tempo de abandonar a lamúria?

sexta-feira, novembro 14, 2003

SOBRECARREGADO

Todas as pessoas têm uma opinião, caramba! Todas as pessoas de barriga cheia opinam a torto e a direito, disparando sentenças sumárias e diagnósticos céleres. Estou cansado das opiniões alheias. Deixem-me em paz, arautos e paladinos da integridade! Raios vos partam!...

IRAQUE

Em suma...

A UM IRMÃO

"Nisto, descobriram trinta ou quarenta moinhos de vento que existiam naquele campo, e mal Dom Quixote os viu, disse ao seu escudeiro:
- A sorte vai guiando as nossas coisas melhor do que poderíamos desejar, porque vês ali, amigo Sancho Pança, a descoberto, trinta ou pouco mais desaforados gigantes, com quem penso travar uma batalha e tirar-lhes a vida a todos, e com os despojos dos quais começaremos a enriquecer. Pois esta é uma boa guerra e é um grande serviço que presto a Deus limpar da face da terra tão má semente.
- Que gigantes? - disse Sancho Pança.
- Aqueles que ali vês - respondeu o seu amo - de grandes braços, que me parecem ter alguns quase duas léguas.
- Olhe vossa mercê - respondeu Sancho - que aqueles que ali aparecem não são gigantes mas sim moinhos de vento, e o que lhe parecem braços são as velas que, movidas pelo vento, fazem andar a pedra do moinho.
- Bem parece - respondeu Dom Quixote - que não és cursado nisto das aventuras. Eles são gigantes. E se tens medo, fica aqui e reza enquanto eu vou entrar com eles em fera e desigual batalha".

QUATRO UNIDADES DA DIVISA CONTINENTAL

O rosto de trevas por detrás da fibra diáfana recebe-me sem sinal de expressão. Contorno a garrafa sobre a mesa e adivinho-lhe os contornos da nuca, a solidão da cúpula decepada. Entro.

Acolhe-me a caveira reflectida na esfera branca, os cambiantes dos reflexos, os negros e os brancos, os objectos parcialmente ocultos que se descobrem sem esforço. E os recortes de jornal arrendados à actualidade de sessenta, impregnados das entoações guturais de uma Europa superior e do óleo escuro que empregas.

A meio caminho - rumo aos azuis e brancos dos revoltos mares portugueses que me impelem para o exterior - naufrago numa tragédia marí­tima, sem escapar ao símbolo que se repete, rubro e verde.

Não me furto à luz que imita a realidade em painéis maiores do que a vida. Os ecrãs devolvem-me ensaios na praça dos bovinos negros, numa capital a preto e branco. De súbito, falas-me nos efeitos da distância da criatura desejada; ingénuo e crente, procuro decifrá-la nos retratos desfocados.

Quero tocar nas formas espessas que esculpiste nas telas, mas perseguem-me, receosos dos meus ímpetos.

Saio desconcertado, consciente de uma pequenez que, não raras vezes, me recuso a reconhecer na figura que o espelho me devolve. Queria estar oculto por detrás da fibra diáfana.

Adenda: decifrem o verbo por entre as paredes do Centro Cultural de Belém.

terça-feira, novembro 11, 2003

TRISTE

A minha amiga perdeu a mãe.

A minha amiga é um ser humano de recorte helénico. A minha amiga não merece as lágrimas de dor. A minha amiga é uma árvore alta, de folhagem espessa, a copa erguendo-se acima do meio que a circunda. A minha amiga é doce. Quero abraçar a minha amiga e protegê-la da chuva.

A minha amiga perdeu a mãe.

segunda-feira, novembro 10, 2003

HUMORES CREPUSCULARES

À medida que as horas se acumulam, o diagnóstico torna-se cada vez mais cristalino. A fraude...

HUMORES MATINAIS

Acordei com a convicção de que sou uma fraude; enquanto edifício humano, sou uma fraude. Não é agradável acordar neste estado. Ligo o rádio, em busca da verdade e do potencial prejuízo para a falácia. Trato do envólucro com o escrúpulo habitual. Preparo a estratégia da semana, empilhando "fichas clínicas" na secretária. Para quem remetê-las?

Não consigo deixar de crer que sou uma fraude. Íntegro, cumpridor, humilde... mas uma fraude, esgotada a reflexão.

Hoje estou assim, convicto de que sou uma fraude. Não é agradável viver neste estado. Paciência...

sábado, novembro 08, 2003

A PERPLEXIDADE DO COMUNISTA DESEMPOEIRADO

Então não é que Álvaro Cunhal, prestes a cumprir 90 primaveras, decidiu escrever no "Avante!" que continua a crer nos amanhãs que cantam dos "países nos quais os comunistas" permanecem à frente das massas? E aponta "China, Cuba, Vietname, Laos e Coreia do Norte" como "forças capazes de impedir que o imperialismo alcance o seu supremo objectivo"?

O problema não é tanto o que Álvaro Cunhal escreve - a necrose dos tecidos cerebrais tem destas coisas. O problema é que os camaradas se mostraram unicamente preocupados com facto de o referido texto, intitulado "O Mundo de Hoje", não conter qualquer referência ao marxismo-leninismo.

Cunhal deve pretender instaurar em Portugal os princípios do fuzilamento sumário, dos campos de prisioneiros, da bordoada "correctiva" e da indigência.

Há muito a fazer na Soeiro Pereira Gomes e no Vitória...

LARANJAS-AZUIS-AMARELOS GUINAM PARA A "TERCEIRA VIA"

Atapetadinha num espaço subterrâneo do "Expresso", a notí­cia mais importante das últimas semanas deverá passar incólume à atenção dos cidadãos do país dos coliseus da bola e da mãezinha de Cristo que chora lágrimas de cera à porta de uma garagem.

O nosso sebastiânico chefe do Executivo tricolor lá percebeu, depois de algumas cabeçadas dolorosas, que não pode fazer girar o leme da barcaça com o som de vaias a servir de banda sonora. Vai daí, consciente - e preocupado, pois "a esquerda não tem o exclusivo do coração" - da mí­ngua de pão, toca de hipnotizar a malta com a abordagem circense.

Afinal, Guterres não se foi embora para a Internacional Socialista sem deixar o trilho pavimentado. O Governo coligado entendeu por bem - hossana nas alturas! - ressuscitar o gabinete de imprensa da Presidência do Conselho de Ministros. Morais Sarmento, o Cassius Clay de São Bento, admite, com palavreado cauteloso, que o exemplo veio da terceira via de Blair - um dos "açorianos" que fez do mundo um lugar muito melhor para as gerações vindouras! - e do presidenciável (logo kamikaze político) Toñito Guterres.

"Não está em causa criar nada de novo, mas apenas tornar mais eficaz um serviço que já existia dos anteriores governos", admite, rigoroso, ao "Expresso". Nada de revisionismos, portanto! Acrescente-se que Morais, O Sarmento, não exclui a reactivação do centro de sondagens que, na era da rosa, dizia a António, o Guterres, se os portugueses andavam bem ou mal dispostos.

A imprensa maldizente, ao serviço de "uma certa esquerda", que se cuide. Especula-se já a possibilidade de o Sarmento ir à cata de todos os coronéis do lápis azul que ainda possam estar vivos e de saúde.

Percebe-se a opção do excelso Governo. No debate do Orçamento de Estado, o homem mais à direita de toda a esquerda, Jaime Gama, tornou cristalino o problema labiríntico de Durão, o Barroso: "O que o senhor nos veio aqui dizer foi que, em 2006, irá pedir o voto aos portugueses para eventualmente cumprir em 2010 as promessas que fez em 2002". Como fazê-lo sem aconselhamento profissional?

Bem podiam chamar Alastair Campbell, esse guru...

sexta-feira, novembro 07, 2003

SAUDADES DO NILO

Quero voltar às margens, ver as íbis e os barcos, sentir os cheiros e o bafo quente no rosto.

BEBER DA LUMINOSIDADE ALHEIA

Gosto de partilhar a mesa com aqueles de quem gosto, como se da última ceia se tratasse, como se a cruz se erguesse já ali, ao fundo da rua, aguardando a minha carcaça em nada messiânica; gosto de partilhar o pão e fazer da água o vinho com aqueles de quem gosto muito, como irmãos de sangue, sem recurso a milagre celeste. Irmãos de sangue que não o são. Mas não importa. Não interessa. Não é equacionado. É sabido que a compatibilidade do rubro preparado que nos traz bípedes ou acamados não sela, por si só, amizades fraternais...

Pai recente, o meu amigo dealba os espaços que ocupa. É inevitável. Transporta aquela humidade persistente nos globos oculares, faróis infalí­veis em qualquer costa atormentada pelas vagas. Olha o mundo com paixão renovada - a paixão do messias que se propôs morrer pelos outros. Por ter semeado a vida - a dele e a de todos nós -, entrega-se sem amarras à flor. E daria a vida por ela, se algum dia as chuvas se fizessem granizo. Porque é assim. Porque não saberia fazê-lo de outro modo.

O meu amigo sentou-me à mesa e sorriu-me. É difí­cil, às primeiras golfadas, manter a vista sã, mas depressa nos habituamos à luz. O meu amigo conversou comigo, naquele timbre que não chega a ser grave nem agudo, a voz embalada ao compasso do adagio de Joaquí­n Rodrigo.

Juntou-se-nos, então, outro amigo. E por ali ficámos, entre carnes de cariz esparso e cevada negra. O terceiro irmão exibe o tórax retalhado por lâmina fria. Tenho a certeza, porém, que também bebeu da luz alheia.

Uma citação a que não resisti

"Há dias, a (...) andava muito atarantada que a (...) bolsava muito, que a (...) não estava a engordar, e que isto e que aquilo. Coisas muito à portuguesa. E eu dizia-lhe, pachorrento, que não, que olha as bochechas, que olha para ela a rir-se para mim e outras coisas para apaziguamento da alma mater.

Resolveu depois a (...) que deví­amos comprar uma balança para pesar a (...) porque ir todos os dias a uma farmácia - que me parecia era a disposição da (...) - não dava jeito. Comprámos uma Phillips electrónica. Claro, e eu já o sabia mas não o disse, quando chegámos a casa demos conta que aquilo não ia resultar. Então, seguimos o método mais evidente. Um de nós pesava-se e depois pesava-se novamente com a (...) ao colo. Ou pesava-se com a (...) e depois pesava-se. De seguida, fazia-se a subtracção e tí­nhamos o peso da (...).

O que aconteceu foi isto. Pesei-me com a (...) e juntos pesavamos 63,1 kg. Dei conta depois que sem a minha filha eu não pesava nada".

Adenda: o meu amigo que dealba espaços escreve assim.

quinta-feira, novembro 06, 2003

O JORNALISMO DO INTELECTO

A edição desta quinta-feira do "Diário de Notícias" traz uma pedra preciosa, lapidada pela jornalista Ana Marques Gastão. A peça "A arte de Noronha da Costa num ecrã que é o mundo" é um verdadeiro compêndio da informação para as massas. Perpassemos então os olhos por um trecho da masterpiece que seleccionei...

"A sua arte não formula apenas uma exigência de rigor, torna-a sensível, sendo a pintura uma meditação sobre a pintura, esta mesmo dando ao criador recurso a algo próximo da palavra literária ou cinematográfica, no sentido de não se ficar pelos artifícios da técnica e de assumir como visão abrangente feita gesto e transcendência na acepção heideggeriana, ou seja a de que o fim para que o homem transcende é o mundo".

Raios me partam se isto é para informar quem quer que seja...

Adenda: O Centro Culural de Belém expõe, a partir de amanhã, uma retrospectiva de Noronha da Costa, que abarca o período 1965-1983. Eu vou. Porém, antes, tenho de apagar da memória o fraseado de Ana Marques Gastão.

FEBRE TOTALITÁRIA OU "APERFEIÇOAMENTO DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS"?

Os agentes políticos e económicos da Rússia de Vladimir Putin debatem-se, há mais de uma semana, com as ondas de choque provocadas por uma verdadeira pedrada no charco pastoso da lógica oligárquica. Detido desde 25 de Outubro no estabelecimento prisional Matrosskaya Tishina, em Moscovo, o antigo patrão da petrolífera Iukos, tido como o homem mais rico do país, aguarda o dia em que terá de ocupar o banco dos réus. Mikhail Khodorkovski, temível adversário político do presidente russo, é acusado de fraude e fuga ao fisco.

O discurso oficial do Kremlin continua frio e matemático, à imagem do pardacento ex-operacional do KGB que sucedeu a Boris Yeltsin. Mas o modus operandi do presidente russo é cada vez mais a negação da imagem baça que a comunidade internacional lhe conhece. Em entrevista ao jornal italiano "Corrieri della Sera", publicada na terça-feira – a 48 horas da cimeira com a União Europeia, em Roma -, Vladimir Putin disparou os mesmos chavões que tem vindo a disseminar desde a prisão de Khodorkovski e o subsequente congelamento de 40 por cento das acções da Iukos. Aos temores e suores frios dos potenciais investidores estrangeiros, Putin responde com a matriz seca empregue em Moscovo desde os tempos idos da bandeira rubra: "Também nos Estados Unidos, nos últimos dois anos, uma vintena de presidentes de empresas foram chamados à Justiça. Basta pensar no relevo do caso Enron, com directos na televisão. Mas não aconteceu nada de extraordinário e ninguém pôs em dúvida a existência do Estado de Direito. Também connosco não há nada de excepcional". Não?

Stephen Sestanovich, especialista do Conselho para as Relações Externas (CFR), uma organização não-governamental norte-americana com sede em Nova Iorque, propugna uma tese em tudo diferente. Sestanovich, citado pela publicação bimensal do CFR, "Foreign Affairs", não se coíbe de afirmar que "Putin está a enviar aos altos funcionários mesquinhos, por toda a Rússia, a mensagem de que é correcto molestar empresas". E vai mais longe: "Na Rússia, a ocupação de um cargo governamental tem, muitas vezes, sido vista como uma oportunidade de adquirir riqueza pessoal. Isto também acontece noutros países, claro, mas a ideia de um responsável governamental usar o seu poder para extorquir dinheiro ou para obter dinheiro de pessoas ricas é virtualmente parte da descrição das funções de muitos burocratas russos".

Na óptica de Sestanovich - e de muitos analistas políticos russos -, a "ofensiva" judicial contra a Iukos tem por base uma motivação política, precisamente aquela que Vladimir Putin não quer, aparentemente, confessar.

"A entourage de Putin no Kremlin é composta por muitas pessoas que não enriqueceram com a compra de propriedades do Estado nos anos 90 e que querem jogar à apanhada. Este motivo dá uma dimensão pessoal ao seu desejo mais amplo de afastar os oligarcas da política", defende o especialista do CFR.

Por sua vez, Vyacheslav Kostikov, jornalista do semanário russo "Argumenty i Fakty", assevera, citado pelo "Washington Post", que a detenção de Khodorkovsky resultou de "uma luta feroz no topo sobre a questão fundamental do caminho da Rússia de agora em diante". Nos dois flancos do campo de batalha, erguem-se duas facções desavindas da Administração russa: a primeira, aquartelada em São Petersburgo e afecta a Vladimir Putin, é composta por antigos elementos dos serviços secretos e das Forças Armadas; a segunda, ao que tudo indica derrotada, integra elementos da elite moscovita, alguns deles oligarcas, que foram introduzidos nos corredores do Kremlin durante a governação do antecessor de Vladimir Putin, Boris Yeltsin.

Também citado pelo diário norte-americano, o colunista russo Kirill Rogov traça as diferenças fundamentais que apartam as duas facções. O grupo moscovita, explica o colunista do jornal russo "Gazeta", é favorável a um "capitalismo privado", tendo sido responsável pela edificação de um sistema económico dominado pela oligarquia de 90. Os boys de Putin defendem, por seu turno, a prevalência de um "capitalismo de Estado", bebendo, de certa forma, inspiração no regime chinês.

Quer se trate de purgação das estruturas políticas ou de "aperfeiçoamento das instituições democráticas" – uma "promessa" de Putin na entrevista ao "Corrieri della Sera" -, o certo é que Mikhail Khodorkovski anda muito longe de ser um amigo do presidente russo.

O homem mais rico da Rússia

A história de Mikhail Khodorkovski, actualmente com 40 anos, é a epítome dos processos nebulosos de enriquecimento decorrentes da desagregação da União Soviética e consequente desconchavo da economia. Durante a década de 90, capitalizando a vaga de privatizações sob o beneplácito de Yeltsin, a casta dos oligarcas russos assumiu o controlo das principais empresas, amealhando fortunas incomensuráveis em tempo reduzido.

O que desde cedo distinguiu os oligarcas russos dos tycoons norte-americanos, como muito bem assinala Stephen Sestanovich, é o facto de não terem edificado de raiz um único projecto. "Eles não criaram companhias petrolíferas ou caminhos-de-ferro, ou sequer fundições. Eles simplesmente arrancaram-nas ao Estado", sublinha.

Na vertigem da liberalização febril da economia russa, os oligarcas adquiriram património estatal a preços irrisórios. E importa frisar que a voragem das privatizações teve início ainda sob o Governo de Mikhail Gorbachev, nos últimos suspiros dos anos 80 e, simultaneamente, do Bloco de Leste.

A corrupção terá sido, durante anos, o veículo mais apetecido. "Muitas coisas", prossegue Sestanovich, "foram vendidas mediante negócios corruptos internos que incluíam quebra de preços, subornos e tudo o mais". Khodorkovski construiu a sua fortuna colossal com recurso aos mesmo meios obscuros, primeiro na banca, posteriormente no sector do ouro negro. Em 1996, conquistou uma posição maioritária na Iukos pela módica quantia de 300 milhões de dólares.

Vladimir Putin é um confesso paladino da "democracia gerida", um conceito peregrino que esbarra em cheio na arrogância oligárquica de personagens como Mikhail Khodorkovski. Não espanta, por isso, que a trégua firmada entre o Kremlin e os oligarcas em 2000, ano em que Putin assumiu a presidência, tenha soçobrado de uma forma tão dramática.

Para além de atribuir financiamentos profusos a uma orgia de formações políticas da Oposição, o patrão da Iukos dedicou-se a uma prática desafiadora de intervenção directa na política externa russa, fazendo tábua rasa dos freios que o Kremlin visava impor ao meio empresarial; gizou, nomeadamente, planos com vista à exportação de petróleo para os Estados Unidos.

O charme eslavo de Khodorkovski depressa se fez sentir nos Estados Unidos. Logo em 2001, refere o diário norte-americano "New York Times", o magnata russo procurou agendar um encontro com Condoleeza Rice, a conselheira para a Segurança Nacional do então recém-empossado George W. Bush. A névoa que cobria o passado do empresário ter-lhe-á valido uma recusa sumária. Porém, Khodorkovski persistiu, injectando avultadas somas em organizações apartidárias norte-americanas e procurando criar uma "teia" de suporte nos EUA. Em Junho deste ano, adianta ainda o "New York Times", logrou chegar à fala com Spencer Abraham, secretário norte-americano da Energia.

Khodorkovski estaria alegadamente a preparar a venda de parte da Iukos a um gigante petrolífero do Ocidente, designadamente a norte-americana Exxon.

O apetite compulsivo de Khodorkovski pelos benefícios da influência política conheceu o seu auge em Abril de 2002, quando encetou uma série de contactos com as lideranças de partidos representados na Duma (câmara baixa do Parlamento russo) visando formar uma frente contra Vladimir Putin. O objectivo: as eleições parlamentares agendadas para o dia 7 de Dezembro deste ano.

Os expedientes do "califa" do petróleo russo redundaram num epílogo "hollywoodesco". A 25 de Outubro, na Sibéria, uma unidade de comandos tomou de assalto o avião particular de Mikhail Khodorkovski, que partilha, desde então, uma cela com outros três prisioneiros.

Putin bem pode apregoar que pretende "aperfeiçoar" o edifício político da Rússia, que os efeitos da sua estratégia estão à vista: Alexander Voloshin, chefe da administração presidencial conotado com a "facção de Moscovo", abandonou o Executivo em protesto contra o tratamento de choque administrado à Iukos; o presidente, esse, enfrenta a mais grave crise económica em quatro anos de mandato.

Nota: este foi para suprimir saudades da liça quotidiana, confesso... Deixo, por último, um link para um dos melhores artigos que encontrei sobre o processo Khodorkovski.

terça-feira, novembro 04, 2003

O APETITE VORAZ DO LEITOR

Aqui perto, muito perto, repousando insinuante ao lado do teclado da máquina, o livro "O Inimigo Sem Rosto - Fraude e Corrupção em Portugal" parece puxar-me pelo braço. A truculenta Maria José Morgado e o so called herói periodista do cada vez mais longínquo Timor pós-referendo, José Vegar, propõem-se "quebrar o vidro", pedindo emprestado o conceito à obra de Magritte que enfeita a capa.

No prefácio, escreve a meritíssima:

"A invisibilidade da grande corrupção foi das primeiras lições que me foram dadas pelos operacionais do combate ao crime económico, na minha breve comissão na PJ/DCICCEF (Direcção Central de Investigação da Corrupção e Criminalidade Económico-Financeira). Nos primeiros dias desse meu desempenho, os polícias explicaram-me que aquele trabalho de investigação não era como os outros no crime comum, ou no tráfico de droga, onde o inimigo tinha um nome, um sítio, uma cara. O inimigo que enfrentavam ali, no crime económico, todos os dias, era um inimigo sem rosto, não localizável ou identificável através dos métodos de investigação tradicionais (...) Era necessário quebrar o vidro falsamente transparente, penetrar as coisas para além das aparências, avançar num terreno minado sem nunca desistir (...) Quebrar o vidro, tal como no quadro, é pôr termo à falsa serenidade da paisagem, sem nunca sabermos o que pode acontecer a seguir".

Isto promete. O que me leva a prometer escrevinhar qualquer coisita sobre o contributo deste livro - estranhamente magro - para o azedume do fígado que este país vem provocando na minha pessoa.

Ora então, vejamos o que a senhora tem para me contar...

segunda-feira, novembro 03, 2003

SAI-SE DE CENA E PERDE-SE

Quiçá fatalmente conquistado pelo charme do crédito, o senhor João achou por bem refrescar os conceitos ergonómicos da civilização perdida. Mandou polir as cerâmicas há muito aplainadas por solas apressadas, afagou sândalos, mognos e pau preto de traça subsaariana e travestiu de frescos as paredes. Onde em tempos idos se insinuava a alvura plástica e acetinada, desenhou corpos desnudos em praia incógnita, resguardados pelo monte cuneiforme e afogados numa mágoa mal disfarçada, para sempre esboçada em sorrisos esquálidos.

Os perfumes do grão torrado e do vinho de casta pobre, esses, sobreviveram à vertigem renascentista do senhor João. O também esquálido Morris verde – caiado à pincelada rude - terá, no entanto, perecido, pois que se anuncia petulante um três portas da última geração. Seja.

As nádegas também agradecem. Como que temendo o avanço das águas turbulentas – a grande civilização ter-se-á perdido em tela sinónima -, o senhor João, que podia ser o Prestes, mandou que lhe preenchessem o templo báquico com cadeiras a estrear, que o óbito ao virar da esquina justifica o luxo. Lá estreei as peças de odor activo, acoplando os grandes glúteos ao acolchoado fibroso.

O senhor Fernando, sempre solícito, como que caminhando descalço sobre zinco em brasa, continua a percorrer o labirinto de mesas. O equilíbrio ainda é prodigioso, as sapatilhas ortopédicas visando as laterais como as barbatanas do pinguim. O senhor Fernando não se faz entender. O problema é antigo, tão antigo como o Morris do senhor João, que deverá já jazer nos jardins suspensos da Babilónia sucateira de Carenque. Responda-se-lhe com um sorriso e um aceno afirmativo, que o quid pro quo fica sanado ali mesmo.

O café “Atlântida” permanece aninhado num recanto de urinas nocturnas e espinhas de carapau sobre jornal desportivo, que a gataria desgrenhada e faminta lambe por conta da Lua. No interior, porém, quer fazer-se “Nicola” ou “Brasileira”. O senhor João bem podia mandar erguer um Pessoa em cimento no centro da esplanada estival, ou pôr o senhor Fernando a tartamudear, oscilante, um Bocage ininteligível.

Não adivinhei o “Atlântida” onde costumava bebericar o café com a minha avó, depois da bucha farta e de odre pleno. Sei, simplesmente porque sei, que a minha avó teria gostado de ver as cadeiras novas e as madeiras tratadas. E a verdade é que a minha avó era a única pessoa que lograva manter uma conversa eloquente com o senhor Fernando. Resta-me sorrir e acenar afirmativamente.