I
Em Novembro de 1966 - numa manhã de frio agressivo, desses que açoitam os ossos flagelando-os até ao recheio de tutano -, António recebeu na aldeia uma epístola do amigo Jacinto, praticante convicto do êxodo rural que rumara à capital um ano antes, em busca do direito a um par de sapatos novos e pelo menos duas sardinhas no prato. Jacinto pegou desde logo na trolha, distribuindo, com parcimónia, cimento e cal sob a asa da empresa de construção civil de um castelhano obeso rendido aos bordéis de Lisboa e aos encantos do Estado Novo.
Em 1966, Jacinto trabalhava numa obra do Bairro Alto que carecia de um par de braços adicional. Expedito, o serrano sugeriu o pujante António ao patrão castelhano. Foi assim que o homem se viu a bordo da carreira da Rodoviária Nacional, rumo à Lisboa desconhecida, pela primeira vez longe do seu Manuel, a quem confiara as cabras, e de Amélia, a quem confiara as fazendas ao fundo do vale.
Foi numa noite de moelas e copos generosos de tinto que António catrapiscou Josefa, roliça de olhos azuis e peito farto que limpava o balcão da taberna lisboeta. A Josefa tratou logo de o catrafilar, comprimindo-lhe entre as pernas os rins até de madrugada, o pobre António a arfar de tanto vai-vem.
Não mais António deixaria de visitar, duas a três vezes por ano, a Josefa e o puto que daí a meses espreitava choroso e engelhado por entre as pernas da taberneira. Amélia, convicta de que o marido abnegado e afoito viajava até Lisboa duas a três vezes por ano para transpirar nas obras do Jacinto, agradecia ao Senhor, na eucaristia dominical, a graça do seu casamento acertado.
II
O Jaime tinha dezasseis anos quando deixou de estudar. Foi bom aluno. Rapaz sossegado, conquistou invariavelmente a simpatia dos professores que lhe passaram pela vida. Nunca levantou a voz para ninguém. Teve razões para o fazer. Encaixou demasiados murros e bofetadas dos colegas truculentos. Nunca ripostou. Nunca se queixou.
Certo dia, a Josefa, aconselhada por António – o mesmo é dizer comandada pelo marido bígamo -, proferiu o acórdão: "vais trabalhar para as obras com o Jacinto". O Jaime lá foi, contrariado. Acalentava o desejo de prosseguir os estudos, por via de um gosto genuíno pela leitura. Os colegas baptizavam-no de maricas por preferir refugiar-se com o Aquilino e o Torga naquele cantinho atrás de um dos pavilhões, encostado a um plátano, ao invés de ir jogar à bola, trocar pérolas de vernáculo ou amassar as bochechas alheias com os nós dos dedos cerrados. Mas não prosseguiu os estudos.
Em breve, por força das bolhas rebentadas e da carne rubra das mãos exposta ao ar pela aspereza do cimento e pela pouca ergonomia dos baldes, pás e carrinhos de mão, Jaime tornou-se naquilo que sempre abominou. O vocabulário tornou-se ríspido e o recurso à razão da força, em detrimento da força da razão, uma constante.
O Jaime tinha dificuldade em definir o que sentia pelo pai. Não gostava dele, era certo e sabido. Raramente o via, não percebendo muito bem porquê. O pai aparecia-lhe, duas a três vezes por ano, com uma barra de chocolate de leite ou um saco de rebuçados.
À noite, o Jaime esgueirava-se da cama e dirigia-se até à porta do quarto da mãe Josefa e do pai António. Espreitava por uma nesga, quando ela existia, e ficava deslumbrado com o que via. Não o chocava, de modo algum, pois já tinha lido tudo o que havia para ler sobre as práticas sexuais da espécie humana. Ficava deslumbrado por poder atestar da veracidade do conteúdo dos tomos. E tudo aquilo era muito rápido, o pai António a despachar-se e a deixar-se tombar para o seu flanco da cama, exausto, de boca aberta e adormecendo no espaço de segundos.
O Jaime regressava ao quarto, confuso. Tudo o que sabia acerca do pai era manifestamente escasso. Raramente lhe falava, dava-lhe rebuçados e punha-se em cima da mãe, amassando-a umas poucas vezes por ano. Como tal, reunida a escassa informação, não podia definir os seus sentimentos em relação ao pai. O que sabia não era suficente para gostar dele, mas as ideias negativas que mantinha não eram razão para nutrir um ódio intestinal.
No primeiro dia de trabalho, o Jaime apresentou-se de camisa engomada, penteado e com cheiro de talco. A chacota foi lesta: "Ó Jacinto, pá, andas a contratar putos do coro, é?". O Jacinto coçava a região do encéfalo, meio envergonhado, apesar de ser o patrão, desculpando-se como podia: "Pá, o puto é filho do António e da Josefa, tem este ar de lorpa, o que é que vocês querem que eu faça?".
Após um número satisfatório de lambadas na região anterior do pescoço, uma colecção de impropérios berrados bem perto dos pavilhões auriculares e muitos tijolos acarretados, o Jaime limitou os seus hábitos de leitura a um jornal desportivo por semana.
À margem: é irresistível. Sobretudo, é imperdoável que não se acompanhe
isto.
Isto, datado de 18 do 12, é igualmente saboroso.
Este sabe das coisas que dão sentido às coisas.