O Sedentário

sexta-feira, julho 30, 2004

A caminho

«Norte, m. Um dos pontos cardeais, que nos fica à esquerda, quando nos voltamos para o nascente. Parte do mundo ou do horizonte, correspondente à Estrela Polar. Restrit. Pólo da Terra, que fica do lado da Estrela Polar. Vento frio que sopra dessa banda. Regiões que ficam para o lado do norte. Parte setentrional de uma região. Estrela Polar. Rumo; guia; direcção. Adj. Relativo ao Norte.»

in Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo (Livraria Bertrand).

quinta-feira, julho 29, 2004

Circense

Entre as chamas de um incêndio em Barranco do Velho, no concelho de Loulé, o repórter da estação televisiva de Pinto Balsemão arfa, saltita como um tonto de um lado para o outro e dá conta de mais uma prestação "heróica", ocorrida "há poucos minutos".

Vomita interjeições e diz, em directo, qualquer coisa como isto: "Sinto-me obrigado a dizê-lo... É uma equipa de exteriores que está aqui, isto não se resume ao jornalista que dá a cara. E as palavras da equipa, há pouco, foram ganda [o adjectivo foi pronunciado assim] susto!".

Depois opta pelo esgar comovido, dissertando sobre o "paraíso ecológico" que as chamas lamberam. Ficamos, ainda, a saber que "a equipa dormiu em Faro e, a caminho de Barranco do Velho, viu que a serra era linda". O jornalismo televisivo português é um cadáver.

Segunda mão

Gosto de um livro gasto. Acredito num livro cansado. Há um cunho de profunda legitimidade, uma quase autoridade veneranda, no perfume mofoso de uma pilha de páginas velhas. Gosto do papel debruado a amarelo. Desmaiado. E das orlas marcadas pela erosão paulatina das mãos alheias.

Não gosto, por outro lado, de encontrar sublinhados ou anotações marginais a meio de um capítulo intitulado - é um exemplo, um mero e insignificante exemplo - O PCP, força da liberdade e do socialismo. Condicionam-me a dialéctica subsequente. É suficientemente penoso destrinçar factos históricos e mistificações na prosa matreira do velho camarada. As profanações a lápis eram desnecessárias.

Admito que este manifesto sumário, aflitivamente redigido a centímetros da baioneta, também o seja. Desnecessário.

quarta-feira, julho 28, 2004

Iossif

A 21 de Janeiro de 1924, em Gorki, nos arredores de Moscovo, o corpo descarnado e irremediavelmente mudo de Lenine – um derradeiro ataque (7 de Março de 1923) coarctou o linguajar do patriarca bolchevique - depôs as armas; rumaria, por ordem do boçal georgiano Iossif Vissarionovitch (Estaline), à sinistra "imortalidade" embalsamada, religiosamente venerada no mausoléu da Praça Vermelha.

Estaline, "enlutado", dirigiu-se ao Segundo Congresso dos Sovietes da URSS em tom de tributo; geneticamente façanhudo, circunstancialmente palavroso e cientificamente hipócrita.

«Nós [comunistas] somos feitos de uma matéria especial. Somos aqueles que formam o exército do grande estratego proletário, o exército do camarada Lenine. Não há nada mais elevado do que a honra de pertencer a este exército. Não há nada mais elevado do que o título de membro do Partido cujo fundador e líder é o camarada Lenine (...) Ao deixar-nos, o camarada Lenine exortou-nos a erguer e a guardar a pureza do grande título de membro do Partido. Prometemos, camarada Lenine, cumprir a sua ordem com honra!...» – extirpado do compêndio autorizado/abençoado History of the Communist Party of The Soviet Union; International Publishers, New York (1939).

Dois anos antes, num diálogo telefónico inflamado, este mesmo orador arrebatado mimara Krupskaia, a mulher de Vladimir Ilich Ulianov, "grande estratego proletário", com o simpático epíteto de "puta sifilítica".

Os detalhes do episódio, muito estalinista, são contados pelo britânico Martin Amis na obra Koba o Terrível, editada em Portugal pela Teorema. É uma saborosa leitura; particularmente recomendável aos camaradas mais afeitos a delírios.

segunda-feira, julho 26, 2004

Não

Queimemos decretos e despachos. E já que o fazemos, lancemos também à pira deste país cadavérico os programas e os folhetos, os ofícios e os éditos. Incinere-se o edital afixado em cortiça antiga à porta da junta de freguesia; proceda-se do mesmo modo com facturas e recibos, ambas as classes reduzidas a cinzas irreconhecíveis. O lume chega, com certeza, para o papel timbrado, o modelo RC e os anexos correspondentes. Acabemos com o carimbo à moda de auto da fé; venha de lá essa bula de Sixto IV para as circulares amancebadas com agrafos. A purga fica por concluir se os alfarrábios lhe sobreviverem. E as capas de papel pardo dos livros de actas. Façamos tudo isto. Poupemos, no entanto, a Arrábida.

sábado, julho 24, 2004

Suão

Esquadrinho livros e jornais, recortes amarelados de velhice e artigos fotocopiados. Quero um tema, uma ideia, uma súbita iluminação inspiradora. Quero escrever. Mas o calor, este calor do Magrebe que trepa Península Ibérica acima como um poderoso exército mouro, liquefaz-me o intelecto. Zero. Só venho aqui, hoje, dia de testa suada e andrajos pegajosos, por gratidão. Hei-de explicar melhor esta ideia.

sexta-feira, julho 23, 2004

Carlos Paredes, 1925-2004

O silêncio. O vazio. A tristeza. A orfandade. O Canto do Amanhecer. Faz-se ouvir, hoje, cinzento e lúgubre. Ouço-o e compreendo o que nos furtaram. Não hoje. Antes. No dia em que a guitarra escolheu o silêncio. E agora? Quem fará o Desenho duma Melodia?

quinta-feira, julho 22, 2004

Curvas

Há pelo menos três explicações para a pirueta induzida, ao quinquagésimo minuto protocolar, a Teresa Caeiro. Que vai ocupar a secretaria de Estado das Artes e Espectáculos, esse contraforte da cartilha de Santana Lopes. Há uma explicação do CDS-PP, uma do PSD e uma outra do gabinete do chefe do Governo. São três argumentos interessantes. Porém, prefiro a versão dos sociais-democratas, mais condizente com os princípios de um "governo do século XXI".

No Público, um "dirigente social-democrata", a coberto de um anonimato cauteloso e profundamente sensato – nos dias que correm, o que hoje (agora) é confirmado amanhã (daqui a pouco) é desmentido -, desfaz a nebulosidade do processo. Teresa Caeiro, afinal, foi designada por Paulo Portas para a Defesa porque o primeiro-ministro, na distribuição de graças combinada anteontem com o líder democrata-cristão, não lhe garantiu uma das secretarias de Estado do Ministério da Cultura. Mas Santana Lopes - coisa rara - mudou de ideias entre o crepúsculo e a aurora.

Arreliadora coincidência, a de ter invertido a posição no dia em que os secretários de Estado eram empossados entre as paredes abafadiças do Palácio da Ajuda. Ainda mais arreliadora é a contingência de o ministro da Defesa estar, segundo a fonte social-democrata do Público, a bordo de um helicóptero Puma, entre Viana do Castelo e Lisboa, enquanto o primeiro-ministro tentava, presume-se que em desespero transpirado, contactá-lo. Teve de aguardar, muito aborrecidamente, pela aterragem.

Pedro Santana Lopes, por sua vez, sossegou o país com a habitual eloquência: tratou-se de um "acerto de última hora por boas razões".

Os psitacídeos de sempre advogam que nada disto é verdadeiramente importante. O olhar estuporado de Portas titular dos Assuntos do Mar, os fiapos de ideias reformadoras do primeiro-ministro, as páginas atropeladas de um discurso redigido à martelada, um atraso de 50 minutos numa cerimónia oficial, a promessa desrespeitada de um Governo com menos secretarias de Estado, a subordinação do Trabalho às Actividades Económicas, atribuídas ao ressuscitado Álvaro Barreto, e aquilo que o porvir não poderá deixar de ditar.

Contactado pela TSF, o administrador delegado da Lusa e cronista do reino, Luís Delgado, estabeleceu até uma comparação (?!) entre o arranque da regência Santana Lopes e os primeiros dias da Administração Clinton.

Segue-se o programa do Governo. Que, evidentemente, não é verdadeiramente importante. De agora em diante, nada o é. Verdadeiramente.

quarta-feira, julho 21, 2004

Eras...

Trazias nas maçãs do rosto a marca de uma tarde quente. Ardias em vermelhos vivos. De quando em vez, libertavas a testa de suores com as costas da mão. E voltavas a prender o cabelo, julgando-o rendido aos decretos acidentados do vento quente e inconstante. Dei por ti aos primeiros números da rua. Consegui identificar-te pelo cabelo, que costumavas dominar com um lápis. Lembrei-me de ti. Sentada à minha frente numa sala de aula em silêncio monástico. Creio que foi por isso que não te abordei. Lembrei-me, acima de tudo, das tuas costas. Se, então, me tivesses fitado mais vezes, teria interrompido, a meio de uma passadeira protegida por semáforos, o teu movimento de gazela. Tu, inesperadamente interpelada, retomarias o passo rectilíneo com a unção de um "boa tarde" arreganhado.

terça-feira, julho 20, 2004

Presente do indicativo

Cheguei, nas últimas horas, a uma conclusão. Situei-me. Finalmente. Percebo, agora, que ocupo um espaço sofrível entre o bode imarcescível, de Mário-Henrique Leiria, e o comandante William Goat, DSO, de John Steinbeck. Para ser equiparável ao primeiro, falta-me, apenas e só, garantir o acesso a uma repartição e aos seus apetitosos processos; no que ao segundo caprino diz respeito, careço de patente militar. Fico a meio caminho, a salvo das contingências da guerra e do gosto acre do papel timbrado. Ainda assim, "um bode jovem mas já com barba digna".

segunda-feira, julho 19, 2004

A escolha

O elenco do XVI Governo Constitucional, liderado pelo príncipe regente do PSD, parece ter sido talhado tendo em vista o gesto aprovador de três famílias: o patronato habitual, os fiéis companheiros de percurso de Pedro Santana Lopes e, com maior relevo, o CDS-PP. É no domínio do pendor ideológico do Executivo que o partido de Paulo Portas obtém a oficialização de um rumo até agora apenas "subentendido".
 
A preponderância acrescentada do segundo parceiro da coligação não resulta do aumento proporcional de pastas atribuídas, do atordoante apêndice "Assuntos do Mar" atribuído a Paulo Portas ou do advento de personagens incipientes como Luís Nobre Guedes, ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território, e Telmo Correia, ministro do Turismo. A manobra processa-se com a transferência de um "independente" ultraliberal do Ministério do Trabalho e da Segurança Social para as Finanças e Administração Pública.

Argumentam, uns, que Bagão Félix é escolhido para a mais importante das pastas porque nenhuma personalidade social-democrata com capital político e técnico deu o messiânico passo em frente; contrapõem, outros, que Santana Lopes pretendeu emagrecer a notoriedade do Ministério. Ambas são interpretações admissíveis, mas, para o caso, irrelevantes. O golpe está consumado e, se o novo ministro das Finanças e Administração Pública for fiel ao seu currículo de vénia ao patronato - amplamente exercitada, durante dois anos, na política laboral -, em breve o país gemerá de saudade de Manuela Ferreira Leite (!).

As confederações patronais aí estão, expelindo perdigotos de contentamento na direcção dos microfones. A 48 horas da cerimónia de tomada de posse do Executivo, já o presidente da Confederação da Indústria Portuguesa, Francisco Van Zeller, dizia, em declarações à agência Lusa, ver em Bagão Félix "um homem de confiança, um reformador incansável no diálogo".

A Oposição critica, por seu turno, a continuidade; a continuidade da depredação dos direitos dos trabalhadores, do anedótico combate à fuga ao fisco, dos benefícios fiscais à actividade especulativa, do jugo do IVA. É um erro de vocabulário. Do titular das Finanças indicado pelo partido do Largo do Caldas e da restante salada de sensibilidades que configura o XVI Governo Constitucional não se espera continuidade, antes agravamento.

O discurso

Não se percebe, também, que espécie de engenharia pretende o primeiro-ministro empregar para levar à prática o enunciado do inenarrável discurso da tomada de posse.

No decurso da trapalhada confrangedora que foi a sua alocução no Palácio da Ajuda, Pedro Santana Lopes garantiu que não está "aqui para cuidar dos poderosos". "A dimensão social – disse o primeiro-ministro – estará presente em todos os actos" do Executivo. Porém, o "rigor", esse mesmo "rigor" que mantém no desemprego meio milhão de portugueses, é para "manter".
A carga fiscal sobre as famílias, admitiu, pode ser revista, mas a consolidação orçamental é um rumo intocável. A concertação social e o diálogo serão privilegiados pelo Governo, mas não poderão substituir "a acção". Para cada medida prometida, a garantia do seu contrário.

O conteúdo daquelas folhas, que Santana Lopes virou e revirou com o desconforto de um cábula, coroou o processo de escolha do elenco governativo, levado a cabo, em quatro dias, com a habitual leveza e metodologia volátil do novo líder social-democrata.

Se, um dia, a incompatibilidade das escolhas e a paixão do populismo demagógico e eleitoralista ditarem as exéquias do "recobro" português, teremos um primeiro-ministro coerente com o seu trajecto; em fuga apressada para o próximo púlpito.

sábado, julho 17, 2004

Hoje?

Dizem-me que foi há 28 anos, em 1976. Não acredito. Creio, porque o sinto, que foi há quase um ano, em meados de Setembro; subi ao tombadilho de uma barca, a ferrugem caiada a branco rude e descascado. Vi uma íbis que cruzava o espelho do Nilo. Vi os colossos de areia numa margem. Nasci ali mesmo. O resto, a ter acontecido, é poeira.

sexta-feira, julho 16, 2004

Intrincado

Durante duas ou três horas, ocupei-me assim. Tentava, em exasperação crescente, encaixar o substantivo num pedaço de texto. Jacarandá. Queria-o, pelo menos, numa frase. Um substantivo que, redundantemente, substantivasse a substância do que escrevia. Ainda não consigo explicar a que propósito, ou despropósito, pretendia adicionar o dito jacarandá ao receituário. Não sei se me atraía o lilás em queda sobre a calçada ou, por outro lado, o exotismo do vocábulo; assim como quem pronuncia, por exemplo, do alto da sua erudição gramatical, "proparoxítono", ainda que jacarandá não o seja. Por fim, lá plantei um jacarandá, pressupondo um final de Maio, nos domínios reduzidos de um banco de jardim. Sobre o banco e sob o substantivo obsessivo, alguém lia. Era eu.

quinta-feira, julho 15, 2004

Argentina 1976-1983

Imagining Argentina, do realizador Christopher Hampton, é um filme poderoso. O que não significa que seja especialmente bem entretecido, ou que os estereótipos dos demais retratos da América Latina (sotaques hispânicos e quejandos) tenham sido deixados na borda do prato. Pouco importa, no entanto. É um filme poderoso porque vai beber a uma história poderosa e – imagino, pois não li a obra matriz - melhor contada; abandonei a sala de cinema com fome do romance de Lawrence Thornton.

Hampton transporta para a tela a memória, sistematicamente obnubilada pelas cúpulas políticas, da ditadura militar na Argentina (1976-1983), responsável pelo desaparecimento de mais de 30 mil cidadãos muito, pouco ou nada politicamente activos. E fá-lo com o recurso parcimonioso, sobretudo nas sequências iniciais do filme, a imagens reais, cruas. São poucas as manifestações humanas tão pungentes como as marchas das Mães da Praça de Maio, numa Buenos Aires de revolta quase segredada.

Hampton leu Imagining Argentina há 12 anos. "Creio que li o romance num avião, de regresso de Los Angeles. Ficou-me na cabeça, não conseguia deixar de pensar nele. É um tema de uma grande relevância, como o Holocausto [quase ubíquo ao longo do filme]. É muito importante que estas coisas continuem vivas, não devemos guardá-las no baú", afirma ao site mangafilms.es.

É um filme violento, mas não asperge de sangue as plateias. A violência advém, em maior medida, do requinte malévolo de personagens como Gustavo Santos, oficial da Armada interpretado pelo mexicano Kuno Becker - um sucedâneo do muito real "anjo da morte", Alfredo Astiz. O sangue e a violência física são ingredientes secundários, ou, antes, esforçadamente, e nem sempre com total êxito, minorados.

Tenho para mim que o gume de Imagining Argentina é mais cortante nas sequências em que os detalhes da violência, sob a forma de tortura física e psicológica, são deixados à imaginação de cada um. É aflitiva a cena em que Cecilia (Emma Thompson), sentada no catre de uma cela esquálida, sufoca um grito e chora em torrente enquanto a filha, Teresa (Leticia Dolera), é brutalmente violada numa sala contígua.

Antonio Banderas, por seu lado, não é brilhante, longe disso; o que só revela coerência de currículo. A sua interpretação de Carlos Rueda - director de um teatro de Buenos Aires que vê, ainda que não completamente impotente, o regime sequestrar-lhe a mulher, a filha e o melhor amigo – é um trabalho competente. Não marca e não aborrece, ao mesmo tempo.

quarta-feira, julho 14, 2004

Abreviado

O PS, dizem, tem uma "ala esquerda". Erradamente. Porque, se o parlamentar José Medeiros Ferreira, que hoje aparece citado no Diário de Notícias, é uma voz da dita "ala esquerda" do Largo do Rato, é mais rigoroso dizer-se "ala geriátrica". Para contrariar o pendor centrista de José Sócrates e demais filhos do guterrismo, José Medeiros Ferreira sugere a candidatura de... Manuel Alegre. "O candidato mais forte e consentâneo com esta fase" do partido, de acordo com o deputado. Alguém viu por aí o Partido Socialista?

terça-feira, julho 13, 2004

O construtor de pontes

Acabo de ler um artigo, publicado na edição internacional da Newsweek, que descreve o emigrante Durão Barroso como um "construtor de pontes"; essencialmente, repetindo-se fórmulas gastas, repesca-se o conceito de Mr. Compromise, já avançado por The Economist.

O autor da peça, Stryker McGuire, começa por relembrar os derradeiros dias antes do início, a 20 de Março de 2003, da operação "Liberdade Iraquiana", que redundou nesse farol da democracia transportada em entranhas de bombas que é o Iraque pós-Saddam. Evoca o autor, claro, o papel de Durão Barroso no assassinato do Direito Internacional, organizado com pompa, quatro dias antes do início da guerra, no enclave norte-americano das Lajes.

É também evocado, se bem que de uma forma ligeira – especificamente, em quatro vocábulos assépticos -, o saudoso "camarada Veiga", da Federação dos Estudantes Marxistas-Leninistas; esse mesmo que defendia apaixonadamente o Comité Lenine, estrutura dirigente do MRPP de Arnaldo Matos, e a incineração do PCP, por se tratar de um partido "revisionista".

"Enquanto adolescente maoista transformado em liberal do centro-direita, enquanto um construtor de pontes multilingue que é pró-europeu e atlantista, a candidatura de Durão Barroso diz muito sobre a nova UE alargada e as suas alianças em mudança", escreve McGuire.

Eis o bilhete de identidade de Durão Barroso, aliás José Manuel, aliás José Manuel Barroso; o tal peixe de águas profundas que sacrifica compromissos e princípios em prol da única paixão que, verdadeiramente, algum dia acalentou: ele mesmo.

segunda-feira, julho 12, 2004

Crise

O sistema político que gere o rectângulo mais ocidental da Europa é cristalino. Pelo que a dialéctica torrentosa das esferas politicamente encartadas, da direita à esquerda, passando pelos agentes ditos "independentes", porém dotados de "consciência politizada", se traduz, por mais ocasiões do que seria saudável e arejado, num exercício inconsequente, fútil e motor de alienação. Neste complexo de clãs mais ou menos bem intencionados, a coisa reduz-se a um ditame insofismável: quem detém o poder quer mantê-lo; quem o não possui quer obtê-lo.

O abalo resultante da emigração de Durão Barroso para a presidência da Comissão Europeia não passa de uma variação em torno do muito democrático "mais do mesmo". Convinha, desta feita, às forças políticas mais votadas nas últimas Legislativas que o actual inquilino de Belém fosse fiel à sua doutrina. E o que a doutrina Sampaio preconiza é o cumprimento – e o comprimento - das legislaturas. Entendeu o Presidente da República que a actual maioria dava garantias de produzir um Executivo fiel ao programa de governo parido em Abril de 2002 e de assegurar uma legislatura sem sobressaltos no rumo da enjoativa "consolidação orçamental". E fê-lo depois de cumprir escrupulosamente calendários e formalidades, imune a verberações disparatadas contra a "procissão de sumidades" a Belém.

A decisão de Jorge Sampaio traz a esquerda a carpir as mágoas de uma "traição". O Presidente, afirmam, arremeteu contra as suas próprias cores e contra a vontade de alternância que o eleitorado teria expressado nas eleições para o Parlamento Europeu, que, recorde-se, provocaram bocejos de indiferença a 5.364.512 portugueses inscritos nos cadernos eleitorais – é curioso comparar os comportamentos, ante níveis igualmente alarves de abstenção, de uma esquerda vencedora e de uma esquerda derrotada. Houve até tempo de antena, também muito típico, para o dislate de dirigentes - Ana Gomes citou uma providencial mensagem de telemóvel que crucificava Sampaio ao desiderato, em forma de tríptico, de Sá Carneiro (uma maioria, um governo, um presidente); o líder socialista, Ferro Rodrigues, aproveitou a conjuntura para se libertar do fardo que há muito o trazia a arquejar.

É uma reacção alérgica que perpassa, desgraçadamente, todas as formações distribuídas à esquerda da cadeira de Mota Amaral. Ontem, em Arcos de Valdevez, o secretário-geral do PCP lançou-se à carótida de Jorge Sampaio com igual virulência: "O PR, no nosso ordenamento constitucional, não é uma rainha de Inglaterra, nem pode sê-lo de facto, a coberto de muita retórica ética de esquerda, de promessas de vigilância e de discursos sem conta, sem qualquer efeito concreto. Não chega dizer-se que há mais mundo para além do défice ou criticar o Pacto de Estabilidade quando já todos o criticavam ou verter lágrimas pelos coitadinhos, quando depois, no concreto, na hora da verdade, se dá uma legitimidade acrescida e com novo fôlego àqueles que estavam condenados pelo povo, e que foram os responsáveis pela mais grave recessão da economia portuguesa e pelo sofrimento, sem conta, de milhares e milhares de famílias".

A esquerda pode (deve) queixar-se de si mesma; porque aquilo que Jorge Sampaio, sem qualquer tipo de conforto interior, se viu forçado a fazer foi sopesar duas desgraças e escolher a que entendeu ser menos onerosa. Ou seja, a esquerda - que o PS de Ferro Rodrigues quis liderar, mas cujo leme entregou ao Bloco de Esquerda - ainda não logrou construir, dois anos depois, uma alternativa consistente ao neoliberalismo infrene da coligação PSD-CDS/PP.

Agora teremos de aturar, alcandorado no poder, um político profissional que, no mesmo dia em que foi nomeado candidato à chefia do Governo pelo Conselho Nacional do PSD, admitiu, numa entrevista a um canal privado, um punhado de medidas tão fundamentais para a prosperidade nacional como a transferência do Ministério da Agricultura para Santarém ou a implementação da videoconferência no Conselho de Ministros.

quarta-feira, julho 07, 2004

Decrescente

As ideias, projectos de traço tosco, fazem-se areia e escapam-se-me por entre os dedos, após a travessia dos sulcos da palma. A caneta, essa, detém-se no topo da folha em branco, incapaz de avançar no desenho redondo de uma mera vogal. Depois, venho aqui e deixo crescer a certeza de que isto não é pertença minha. E de que não sou pertença disto. A solução tem passado pela distância. Mas por quanto tempo?

quinta-feira, julho 01, 2004

«Saddam Hussein, presidente do Iraque»

Saddam Hussein, capturado em Dezembro de 2003 num buraco barrento dos arredores de Tikrit, a Norte de Bagdade, ocupou, hoje, a cadeira do acusado num tribunal especial do novel - "democrático", "livre" e "legítimo" - regime iraquiano.

O "Líder Glorioso", "Leão da Babilónia", "Sucessor de Nabucodonosor", "Saladino Moderno do Islão" e "Descendente Directo do Profeta" apresentou-se, por duas vezes, como "presidente do Iraque". Ouviu, com uma máscara de desafio, as sete acusações preliminares de que é alvo; compreendem a invasão do Koweit, em 1990, o esmagamento da sublevação xiita, após a primeira intervenção militar norte-americana no Golfo, e a utilização de armas químicas contra as populações curdas. Recusou-se a assinar o auto de acusação e, a dada altura, terá cuspido: "Tudo isto é um teatro. O verdadeiro criminoso é Bush".

É trágico que o antigo ditador iraquiano, um dos piores hematozoários da História, logre fazer sentido e ter razão quando se pronuncia nestes modos.

Sugestão: The New York Times - The Trial of Saddam Hussein