
O mais obscuro contraforte do poder executivo, a "central de informação", intensifica, todos os dias, o seu labor. Paulatinamente, transmuda as construções de Abril para um qualquer gaveto arruinado da arquitectura política portuguesa e ressuscita os compêndios do marcelismo, com todas as rupturas, institucionais ou constitucionais, que esse empreendimento ambicioso exige. A verdade inquietante é que os prestímanos do Governo de Santana Lopes, ungidos por uma legitimidade mística – democrática não é, certamente -, impõem, em todas as frentes, uma regressão bem sucedida.
Em dois meses de exercício, o II Executivo PSD-CDS/PP nomeou
806 apaniguados. Destes, 56 foram agraciados pelo ministro de Estado e da Defesa (e dos Assuntos do Mar), 50 pelo ministro da Agricultura e 39 pelo ministro da Saúde. Para quem aprecia exercícios matemáticos, diga-se que são mais de 10 nomeações por dia; em dois meses.
Em dois meses de exercício, o ministro das Finanças dirige-se ao país para explicar que não há folga financeira que permita alterar as taxas de IRS – Bagão Félix promete, somente, mexer nos escalões de rendimento - e vê, daí a umas semanas, as suas posições terraplanadas por um chefe do Governo que, imagine-se, sente necessidade de "explicar" aos governados que é um coordenador de governantes.
Aos olhos do português comum, anestesiado com a morbidez mediática e popular da aldeia de Figueira ou puramente afogado nos ditames do crédito e do desemprego – real ou em forma de espada de Dâmocles -, estas decisões de gabinete, tomadas a coberto de um gigantesco sussurro sectário, são incompreensíveis; pior: inatingíveis. Há, hoje, na vida política portuguesa, uma espécie de exosfera protegida do escrutínio das massas.
Ontem, a "central de informação" fez exibir, à hora do jantar, uma alocução gravada do primeiro-ministro. Quem esteve atento reconheceu, em cada detalhe do cenário e a cada passagem da prédica de Santana Lopes, um revivalismo das
Conversas em Família – o tom familiar do chefe do Governo; o sorriso apaziguador; os movimentos resolutos da mão direita sobre a secretária; ao fundo, a fotografia do beija-mão a Sua Santidade; os chavões, as promessas e a demagogia; os avisos-anátemas a eventuais forças de bloqueio, nomeadamente a Presidência da República.
Em Portugal, "a liberdade comanda a vida", proclama o primeiro-ministro. E orienta as peças das canhoneiras para Belém: "Sei muito bem da importância da necessidade de os órgãos de soberania falarem, em nome do Estado, a uma só voz. Como sei da relevância que essa concertação tem na credibilidade externa de Portugal. Uma qualquer descoordenação nas posições dos órgãos de soberania de Portugal é sempre avaliada por outros, não ajudando à imagem do país e à defesa dos interesses portugueses. Pela minha parte, sempre que me pronuncio publicamente, exprimo convergência e nunca divergência com os outros órgãos de soberania. Não tenho dúvidas de que o interesse nacional assim o aconselha".
Sobre o torpedeamento de Marcelo Rebelo de Sousa – físico, por sugestão hipnótica ou maquiavelicamente auto-administrado, desconfio que jamais o saberemos -, o primeiro-ministro ensina que "o que não conta, certamente, são polémicas sobre princípios e regras que não estão em causa". E, contra o "ruído que vai à nossa volta", apressa-se a enumerar as medidas (aflitivamente avulsas) já tomadas - e os resultados obtidos - pelo Governo (menos pelo seu e mais pelo de Durão Barroso): a supressão do Serviço Militar Obrigatório, a substituição das cúpulas da Polícia Judiciária e da PSP na esteira do deboche das "cassetes", a implementação de um sistema de apoio a doentes de cancro, as pensões dos antigos combatentes, as Autoridades Metropolitanas de Transportes e o crescimento das receitas fiscais em sede de IRC e de IVA.
Em 2005, promete por fim Santana Lopes, haverá uma redução das taxas do IRS.
Quando, num profundo drama pessoal, o Presidente da República percebeu a dimensão do deserto socialista e sentou Santana Lopes em São Bento, fez questão de avisar que assumiria uma postura "vigilante"; uma postura atenta a derivas populistas e a abalos das instituições – em linguagem santanista, o "ruído que vai à nossa volta".