
Quem, depois deste fim-de-semana, procura apurar a composição do substrato ideológico do PCP pós-XVII Congresso deve ignorar os discursos do novo secretário-geral. Fazê-lo é poupar tempo e energia intelectual. Não. Bastará ler as reacções sincronizadas e as manobras de tropa na parada dos delegados e convidados.
O PCP de Jerónimo de Sousa é o partido unanimista das ovações bípedes, obedientemente observadas a cada ponto final parágrafo; o PCP "jovem" de Jerónimo de Sousa albarda o pescoço em
kaffyehs palestinianos, o cocuruto em bóinas bascas ou evocativas das glórias revolucionárias da Sierra Maestra e não pergunta ao secretário-geral, "eleito" em delírio ortodoxo pelo novo Comité Central – por sua vez entronizado por 95 por cento dos 1.298 delegados ao Congresso -, o que quer realmente dizer quando exorta os comunistas portugueses a fazerem prova, "se necessário", de "coragem física para encetar o caminho duma democracia avançada e do socialismo"; o PCP de Jerónimo de Sousa vê no PS uma espécie de Hidra de Lerna fascista camuflada de partido de esquerda, ao passo que nem sequer logra balbuciar uma opinião sobre a maior - e mais premente - ameaça eleitoral que impende sobre a sua cabeça: o Bloco de Esquerda; o PCP de Jerónimo de Sousa assobia e uiva às palavras do camarada Lopes Guerreiro, cuja estuporante heresia foi ter sugerido que o centralismo democrático "é sempre centralista", por mais democrático que possa ser.
A verdade é que, em matéria de "democracia avançada", a mais expressiva prova de "coragem física" que se viu ao colectivo reunido no pavilhão desportivo de Almada partiu do vereador da Câmara Municipal do Alvito, que, do alto da tribuna, se limitou a (d)enunciar os ingredientes que vêm ditando o tão evocado e tão pouco discutido "definhamento" do PCP (ver adenda).
A saber: a "verdadeira crise de identidade e (...) falta de respeito entre camaradas"; o défice de conhecimento e discussão (resultante, é certo, do simples desinteresse de muitos militantes, mas também dos procedimentos arcaicos, pesados e estéreis do Partido), por parte dos militantes alheios aos órgãos de direcção, das questões respeitantes à vida do PCP; a manutenção obtusa do centralismo democrático nos Estatutos – no número 2 do Art.º 19.º estatui-se que "devem ser contrariadas tanto tendências centralistas que diminuam a capacidade de iniciativa de organismos de responsabilidade inferior, como tendências sectorialistas que prejudiquem a unidade de acção", porém, quem conhece o PCP sabe que contrariar as ditas "tendências centralistas" equivale a cometer
harakiri; o "clima de crispação" alimentado pela direcção do Partido, preconizadora de "processos de intenção" que visam colocar "camaradas contra camaradas"; por fim, e mais importante, a facciosa atribuição de responsabilidades pela perda de influência eleitoral do Partido "aos que expressam posições mais críticas, nunca aos dirigentes".
O que dizia, a este propósito, o Projecto de Resolução Política (Teses) para o XVII Congresso? O que se segue: "No tempo decorrido desde o XVI Congresso, (...) no plano nacional prosseguiu a política de direita com o governo PS, aprofundada pelos governos reaccionários do PSD/CDS-PP, e a ofensiva para desvirtuar o regime democrático saído da Revolução da Abril. A que se somou, neste período e convergentemente, uma campanha dirigida contra o Partido, em que se integra a
acção fraccionista [o itálico é da minha responsabilidade], para o desagregar, deturpar as suas propostas, posições e actividade".
Mais adiante: "O Partido, embora com insuficiências e dificuldades, desenvolveu uma ampla e determinante intervenção com o envolvimento das suas organizações e militantes. Milhares de militantes do Partido assumiram de forma decisiva o esclarecimento, a mobilização e a organização da luta da classe operária, dos trabalhadores e de outras camadas sociais contra a política governamental em inúmeras lutas, de que se destaca a greve geral de Dezembro de 2002 contra o pacote laboral".
O "brilhantismo" deste diagnóstico, que os comunistas dos
kaffyehs abençoaram este fim-de-semana, é sublinhado, como se sabe, pelo crescimento acelerado da expressividade eleitoral do Bloco de Esquerda, pelas sucessivas derrotas eleitorais do PCP, sobretudo ao nível do poder local, e pela persistente caricatura, nas páginas da imprensa e, em boa verdade, um pouco por toda a parte, do léxico anacrónico e autista dos dirigentes do Partido.
Não obstante o benefício da dúvida a que os recém-eleitos secretário-geral e Comité Central têm direito, há um exercício de futurologia que me parece relativamente pacífico. Quem acabará por pôr as "barbas brancas de molho", as suas e as de um cada vez mais hipotecado "partido de classe", é o próprio Jerónimo de Sousa.
Adenda: No domingo, também o camarada Fernando Vicente, militante comunista desde 1962, subiu ao púlpito para defender a transformação do PCP num "partido aberto à vida, ao diálogo e ao debate, um partido que combata realmente a dogmatização e a estagnação teórica, que não transforme os princípios teóricos em verdades eternas e não ajeite a realidade à sua concepção e vontade". Não foi vaiado como Lopes Guerreiro, por certo para evitar o espectáculo de intolerância totalitária que as câmaras dos canais televisivos haviam registado na véspera.