Prolixo
Desfaço as rugas do cobertor e componho a geometria da dobra do lençol a gesticular o mudra de um actor de Kathakali, o rosto verde e o enfunar das saias reflectidos no vidro morto da televisão, e no minuto herdeiro moldo cinco almofadas cor de sarampo, que disponho sobre o colchão num cerimonial de xamã suburbano. Depois incorporo o espectro da tia-avó, engavetada num ossário esculpido em mármore de Vila Viçosa, e atiro-me iracundo, a lâmina luminosa de um samurai na ponta de uma agulha de barbela, aos remates barrocos de um paramento e ao bico de um ganso em ponto cruz num pano de cozinha; daí que medite sobre as dores na base da espinha e as suas raízes, sobre as virtudes benzedeiras do parto numa banheira de água tépida; daí que cisme nos murmúrios que Oscar Peterson devolve ao trompete de Clark Terry enquanto escreve no piano uma história sobre Delisle Street, em Montreal, e tenha a fé de que ali, na taramela ancestral de um músico cor de café, haja a profecia redentora que me permita esconjurar o espectro da tia-avó, deixar o lençol e o cobertor num desalinho de filho único e principiar, de uma vez por todas, a intoxicação do leitor circunstancial com palavras ocas, homotéticas ou outras, como me explicou Rolin entre dois tragos de café e aspártamo, de forma que não reste pedra sobre pedra, mas antes palavra sobre palavra, e do desenho modorrento do meu bairro nasçam autocarros verdes numa avenida de Tunes e caleches pintadas de nódoas na marginal de Assuão, as luminárias da árvore de Natal do Rockefeller Center na praceta da churrasqueira e o mausoléu de Lénine encostado à Junta de Freguesia.
It doesn't matter how much artistry one has; it's how it's presented that counts. Those who criticize me for playing jazz too simply and such are missing the point; there is a jazz concept to what I'm doing, but I'm playing popular music and it should be regarded as such (Wes Montgomery).
A ideia de que as vicissitudes do jogo político dos nossos dias pedem menos democracia pode ser permeável ao rebate mais ou menos escandalizado. Mas não deixa de favorecer a reflexão, se passarmos os olhos, por exemplo, pela degradação qualitativa dos profissionais da política que, periódica e mecanicamente, elegemos para a gestão da res publica. Se a ideia é válida para o quadro político norte-americano, também o é para as democracias europeias. Entre as quais a portuguesa, que, 30 anos depois da Revolução de Abril, aparece-nos macerada por uma enfermidade degenerativa que não é de agora, tão-pouco da exclusiva responsabilidade do inenarrável bando que o Presidente da República trata agora de cilindrar, ou de uma única cor partidária obstinadamente inábil; paremos por um instante e imaginemos as distribuições de forças partidárias, nos últimos 10 anos (número redondo), pelo hemiciclo de São Bento: alguém pode dizer, com um pingo de honestidade intelectual, que a inabilidade não é transversal?
