O Sedentário

sábado, fevereiro 28, 2004

UM PARTIDO PARTIDO

À falta de ideia melhor, a capitania Ferro Rodrigues escolheu Sousa Franco para encabeçar a lista dos candidatos socialistas à tachada europeia. O que não deixa de ser, mais uma vez, sintomático do atabalhoamento ideológico do maior clã partidário da Oposição.

O Expresso, que hoje cataloga Sousa Franco na coluna dos "Altos...", explana parte do currículo da (agora) nobiliárquica personalidade do Largo do Rato. Depois de, "entre o Golpe das Caldas e o 25 de Abril", ter almoçado "com Marcello Caetano no Forte de Oeiras" (DNa, 27/02), Sousa Franco presidiu ao PSD no estertor dos anos 70, foi presidente do Tribunal de Contas nos primeiros anos da boliqueimocracia e semeou o matagal despesista enquanto ministro das Finanças do Executivo Guterres.

A entrevista ao suplemento DNa, publicada ontem, é, em matéria de coerência, um tratado para as gerações vindouras de vira-casacas e especialistas no trapézio.

Pós-25 de Abril

"Fui namorado por amigos que estavam no PS, amigos que estavam no PSD e amigos que estavam no CDS. E o facto é que inscrevi-me no PSD em Setembro de 74. O PS já tinha um programa, aprovado em Bad Munstereifel. Li-o e era um programa à esquerda do programa do PC. Os meus amigos que estavam lá não eram, mas o programa era".

"Bom, mas é verdade que estive ali em Santa Catarina em reuniões de fundadores do CDS, como é verdade que estive em reuniões no Rato, quando o PSD ainda estava no Rato, antes de ir para a Duque de Loulé. Mesmo antes de ser militante, contribuí com textos escritos para o programa que foi aprovado no Pavilhão dos Desportos, em Novembro de 74. Porque é que eu não assinei o programa do CDS, sendo certo que também contribuí para a Declaração de Princípios – a que ainda hoje não tenho qualquer objecção? Porque nas reuniões preparatórias, o Diogo Freitas do Amaral e o Adelino Amaro da Costa pensavam muito como eu, mas estavam acompanhados por pessoas muito mais à direita. Eu estava socialmente um pouco à esquerda deles. No sentido económico, eles eram mais liberais".

Arriscar-me-ia a afirmar que a escolha de Sousa Franco para as europeias é quase tão brilhante como a opção por António José Seguro – essa sumidade académica - para a liderança da bancada parlamentar do PS...

sexta-feira, fevereiro 27, 2004

CONVERSAS EM FAMÍLIA

O velho tenente cofiava a barba farta - branca como a geada que lhe açoitava, pontual, a papada e o gorro encardido - quando foi surpreendido pelo compadre, que agitava uma sachola com ar de quem se preparava para semear a peleja ali mesmo, entre o batatal e a horta repolhuda. Antes de poder indagar, junto do compadre irado, a que se devia o balançar ameaçador da ferramenta àquela hora da jornada, encaixou uma primeira sacholada na testa, a que respondeu com pouco mais que um revirar de olhos e uma queda aparatosa num viçoso pé de couve. Ainda tentou gorgolejar o embrião de uma frase, mas não teve tempo para mais. O compadre abriu-lhe um lenho fresco no cocuruto como quem rasga um sulco em terra virgem.

O motivo da matança soube-se, já o sol não se via da ponte da Cabreira, a bordo de uma ramona da Fiscal. Vulnerável aos caprichos do macadame, o compadre explicava, choroso, que "não havia direito"; o velho tenente não podia desviar as águas da rega e iludir a justiça da sachola.

quinta-feira, fevereiro 26, 2004

DÓI

O guerreiro trespassou o que pensava ser o derradeiro peito inimigo e olhou em seu redor, procurando outros sinais de espada alheia. Foi precisamente aí que recebeu um golpe fundo. Uivou de dor e replicou como pôde, logrando, enfim, derrubar o opositor inesperado. Depois, recolheu ao leito para secar as feridas. Adormeceu e, logo ali, deixou que se esvaíssem uns quinze anos de vida.

quarta-feira, fevereiro 25, 2004

INUTILIDADE

Não há mezinha diplomática que resolva a gangrena norte-coreana. Mas os inquilinos neoconservadores da Casa Branca e do Pentágono sabem que não podem ir ao Conselho de Segurança da ONU soltar os mesmos cacarejos de garnizé que resultaram na resolução que permitiu pulverizar Hussein, o Leão da Babilónia. Porque o potentado Kim Jong-Il esbanja em armamento e operacionais o que poupa em alimentos para uma população famélica.

Meio ano depois do placebo diplomático de Agosto, cinco delegações – Coreia do Sul, China, Rússia, Estados Unidos e Japão - sentam-se à mesa com os "plenipotenciários" do furtivo Jong-Il para tentar persuadir este último a abandonar os seus programas nucleares.

Sabe-se, à partida, que Pyongyang vai manter a bravata do costume, ainda que o dólar gordo seja apetitoso. "Se alguém propõe durante as negociações a seis que a compensação seja precedida pelo congelamento [dos programas nucleares], a Coreia do Norte opõe-se terminantemente. Isso seria o colapso das conversações", berrou o regime em comunicado.

O subsecretário de Estado norte-americano, James Kelly, foi menos abrasivo, asseverando que a Administração Bush "será paciente quanto aos resultados da segunda ronda". Sempre foi dizendo, porém, que Washington não espera outra coisa que não a incineração completa das quimeras de tipo Armagedão estalinista acalentadas por Kim Jong-Il.

É a confrangedora inutilidade da diplomacia que se apresenta, mais uma vez, descarnada.

Os justiceiros de Washington não logram esconder que, a embarcarem na insanidade do combate a "eixos do mal", podiam muito bem encontrar a sua Némesis nas Forças Armadas norte-coreanas. Ainda que a verdadeira vontade de Bush filho ditasse o derrube do regime a golpes de um sucedâneo da Fat Boy.

A 20 de Agosto de 2002, Bob Woodward aflorou a questão norte-coreana durante uma entrevista a George W. Bush no seu rancho texano de Crawford. "Deixe-me falar da Coreia do Norte. Detesto Kim Jong-Il! Tenho uma reacção visceral a esse tipo, porque está a matar o seu povo à fome. E vi informação secreta desses campos prisionais, enormes, que ele usa para destroçar as famílias e para torturar pessoas", vociferou o presidente norte-americano.

Insolúvel...

RESSURREIÇÃO

Sed tantum dic verbo, et sanabitur anima mea...

REGRESSOS

Um dos pilares que sustenta o meu edifício afadiga-se nas estantes, dando caça feroz a tomos poeirentos e mofosos. Ao que parece, voltou a experimentar o prazer de passar os olhos por frases, parágrafos e capítulos. Absorve-os, voraz, enquanto o comboio percorre estações sem história e o autocarro alaranjado desespera em procissões madrugadoras. Diz-me que aprecia o alheamento que os senhores da pena lhe oferecem numa bandeja. Mas eu tenho a minha própria tese. Vendo-se na contingência de regressar, sozinho, às paragens que lhe amputaram os melhores anos da juventude, procura recrutar companheiros no porto de partida. Escolheu, para tal, os livros que acumularam os cheiros de casa no papel de que são feitos.

segunda-feira, fevereiro 23, 2004

JARDIM É FIXE

O líder da bancada social-democrata foi à arrecadação buscar a caixa de engraxador e desatou a polir o calçado dos "presidenciáveis", arrebanhando até o monarca madeirense - o único jogral da nação que secundou abertamente o presidente da Câmara Municipal de Lisboa na coutada de Belém. Diga Lá Excelência, exortaram o Público e a Rádio Renascença. E Guilherme Silva disse...

Ou melhor: sempre fiel a uma obediência de acólito, afagou o pêlo de uns e de outros, que nestas andanças nunca se sabe muito bem para que costas vira o leme.

Santana Lopes, propugnou o distinto parlamentar ilhéu, "tem todas as capacidades para ser Presidente da República", designadamente um currículo ideal para as glórias da suprema magistratura. "Não alinho em algumas coisas que tenho ouvido, de que Santana Lopes seria um desastre para o país", disse. Para logo acrescentar que, caso Sua Santidade de Boliqueime decida, de uma vez por todas!, emprestar o rosto macilento aos aventais de plástico e autocolantes a distribuir em bancas de peixe e legumes, Santana Lopes terá de protelar o desígnio.

"Qualquer dos candidatos terá a humildade (!) de se retirar na altura certa", profetizou.

Mais adiante, assaltado por uma pirose repentina, teorizou: "Noutro país qualquer, Alberto João Jardim já teria tido uma oportunidade das mais relevantes a nível da hierarquia do Estado".

Alberto João Jardim!... O eminente animal político que, ontem, enquanto desfilava trajado à João Gonçalves Zarco e azeitado de suor nas ruas do Funchal, martelava um pandeiro ao som do sambinha e prometia, cuspindo abundantes perdigotos para o microfone da SIC, marchar contra a comunicação social.

LEVANTAI HOJE DE NOVO...

A paternidade, sobretudo aquela que inaugura a "lide", tem destas coisas. A pena queda-se preguiçosa e o papel amolece. Perde o viço. Esgota-se o ideário no quotidiano parental – as fraldas, o biberão e a manta; um agitar de braços a decretarem colo a breve trecho e aquele sorriso verdadeiro a que ninguém consegue furtar-se. O destinatário desta prédica, que faz o favor de ser um queridíssimo amigo, escreve punhados de palavras sempre bem temperados; saborosos como uma pratada de rancho, quando se lhe inclina a verve para a comezaina de fôlego, ou doces como a aletria da minha tia-avó, nos dias em que decide entregar o leme à bomba cardíaca serrana. Mas o tipo anda arredio. Naufragado na condição de patriarca, esqueceu-se de que há por aí gente que gosta de ler o Quotidien Latin, assim como quem degusta um Licor Beirão enquanto estende os chispes na direcção da lareira. Será preciso lançar um abaixo-assinado?

domingo, fevereiro 22, 2004

LEITURAS DO SÉTIMO DIA

A razão humana, num determinado domínio dos seus conhecimentos, possui o singular destino de se ver atormentada por questões, que não pode evitar, pois lhe são impostas pela sua natureza, mas às quais também não pode dar resposta por ultrapassarem completamente as suas possibilidades.

Immanuel Kant

sábado, fevereiro 21, 2004

RECEITUÁRIO BACOCO

As virtudes da tela e do pincel. O Sedentário reduzido à condição de tubo de ensaio... outra vez.

BOCEJO

Tenho andado a experimentar uma espécie de sofrimento miudinho por causa do desinteresse aflitivo deste espaço. Para contrariar a evidência, procuro lembrar-me dos propósitos que me levaram a semear O Sedentário – a arrumação de ideias, o arquivamento de um ou outro fogacho episódico mal resolvido, a necessidade de manter a engrenagem oleada.

Acima de tudo, não posso cair na tentação quixotesca de institucionalizar o que não pode ser institucionalizado. Mais: não quero perder o Norte e apagar o conceito fundador - a autodisciplina emocional. E já me esqueci da "semente" por demasiadas ocasiões. Delete your blog, delete your blog. Já sonho com isto...

À margem: há pouco, quando consultava o marco do correio d’O Sedentário, deparei com um puxão de orelhas à moda de um mestre-escola. Um querido amigo verberava a minha "tendência demasiado evidente para a intelectualidade", traduzida, por exemplo, na opção por Francisco Repilado em prejuízo de Compay Segundo, nome de guerra. Defendi-me como pude. Porém, mais uma vez, a flecha alojou-se, certeira, na aorta.

sexta-feira, fevereiro 20, 2004

CHINA DAILY

Sair do país em pleno tórax da capital é uma experiência empolgante. As especiarias a profanar mucosas com o despudor de um celtibero a pilhar a aldeia vizinha.

Pequim e Xangai acondicionam-se no piso superior, entre gengibre, molhos agridoces e vestidos pejados de lantejoulas. Olhos rasgados estudam anúncios escrevinhados em pedaços de guardanapos de papel ou em folhas extirpadas sem critério. Faces do Oriente rasgam sorrisos de vergonha ou desferem um olhar de punhalada certeira, se o comprador não passa de hipotético a palpável. E não há legendas que decifrem o que se diz entre dentes à nossa passagem.

É estremamente (sic) proibido fumar dentro do estabelecimento.

Especulamos sobre as sevícias reservadas a quem não respeita o código e zomba do s em lugar do x. Vemo-nos dependurados em varões de aço inoxidável, a meio caminho entre uma camisa com um dragão estampado nas costas e um vestido de seda.

Degrau após degrau, sobrevoamos a China e a Ásia Meridional; depois de uma curta escala no Príncipe ou em Luanda, aterramos na contracosta, nas margens do Zambeze.

É uma Lisboa feita de pedaços de História que o mar trouxe de volta.

SONS DO CREPÚSCULO

Llevo tu mirar
Grabado en mi alma
Animando el dolor
De mi sufrir, mujer
Quisiera que tu amor
Por compasión me dieras
Para que la rosa de mi amor
No muera

Porqué condenas a mi alma
A amarte en silencio
Sintiendo la punzante herida
De tu cruel desprecio
No sabes que mi amor
Es puro como el sol
Amor gigante
Y aunque yo muera, mujer
He de adorarte


Amor Gigante, Francisco Repilado

quinta-feira, fevereiro 19, 2004

THE END

Na liça dos democratas norte-americanos, Howard Dean esgotou o combustível, esfumou-se ao décimo sétimo estado, o Wisconsin; quase tão prematuramente como quando anunciou a entrada na corrida à Casa Branca, há dois anos. "Já não sou candidato", proclamou ontem o antigo governador do Vermont, no último parágrafo de um discurso engomado à mão e regado com as lágrimas da sua entourage.

Que candidato foi este? Um fenómeno artificial da Web? Um político oco e insensível ao comportamento oscilante de uma parte decisiva – aquela que vota à esquerda ou à direita conforme o apetite conjuntural - do eleitorado norte-americano?

Citado pelo New York Times, Eric Davis, cientista político da universidade Midllebury, no Vermont, descreve a evolução do fenómeno Dean como "um dos mais rápidos declínios de qualquer candidato na história política da América".

Na capa da edição de 12 de Janeiro, a Newsweek perguntava: "Pode Dean bater Bush?". Algumas cabeças pensantes de Washington acreditavam nessa possibilidade. Dean cavalgara para o topo da agenda política norte-americana mercê de uma utilização tão inteligente como revolucionária da Internet e de um discurso em nada diplomático para com o neoconservadorismo de Bush-filho. O médico não padeceria, também, da míngua de dólares para a campanha – Dean angariou 50.3 milhões de dólares. Então, o que falhou?

Muito provavelmente, a transmutação de outsider para candidato "institucionalizado" - consubstanciada com o apoio de Al Gore -, o que viria a revelar a fragilidade do programa do candidato; ou, como argumenta, por outro lado, o New York Times, a obsessão narcísica da máquina eleitoral de Howard Dean, que preteriu o tratamento do conteúdo político da mensagem do candidato em prol de uma contabilidade inócua do número de cibernautas convertidos ao evangelho de deanforamerica.com.

Para lá da análise dos erros estratégicos que conduziram à queda do "cometa", nenhum especialista poderá afirmar que Howard Dean não deixou lastro. E os candidatos sobreviventes, John Kerry e John Edwards, sabem que terão de puxar o lustro ao médico do Vermont, se quiserem averbar o seu apoio.

Kerry começou a fazê-lo ontem: "é impossível não expressar admiração e respeito pela campanha que ele montou e pelo que atingiu. Ele fez um trabalho extraordinário ao revigorar um grupo de pessoas que estavam divorciadas do processo político".

quarta-feira, fevereiro 18, 2004

EM CHEIO

Custa-me absorver certas críticas, sobretudo quando são certeiras como uma flecha de sioux. Levo sempre algumas horas a concluir a digestão e a arquivar o processo na respectiva gaveta. Esta manhã, o elemento menos vivido da família leu um dos meus textos e sentenciou: "Tu, às vezes, és muito chato e obrigas a pensar demasiado".

O acórdão persegue-me desde o minuto em que foi proferido. Porque é uma verdade absoluta, dessas que não podem ser refutadas.

Há pouco, enquanto regressava a casa, cogitava sobre as possíveis soluções para o problema. A questão é esta: como peneirar cornucópias, talhas douradas e torneados?

terça-feira, fevereiro 17, 2004

PONTOS FINAIS

Habituei-me a sorver com avidez a prosa do Pedro Lomba no Flor de Obsessão e na Geração de 70, publicada às terças-feiras pelo Diário de Notícias. O vício era previsível. O Pedro, já o escrevi n'O Sedentário, foi uma das minhas referências intelectuais numa época em que os dias corriam folgados e as preocupações eram sempre de curto prazo. No liceu, onde partilhámos salas de aula, comecei a "imitá-lo", lendo, escrevendo, interessando-me.

O Pedro enfunou as velas para estibordo. Eu não. A minha admiração, porém, manteve-se intacta.

No Flor de Obsessão, o Pedro deu à luz o post de despedida. Não consigo deixar de me sentir mais pobre.

O blog foi uma das grandes experiências do meu último ano. Vou ter saudades. Estou a ser, bem sei, tão português por acabar com ele. Nós somos os únicos habitantes deste mundo que deixamos as coisas a meio, que não terminamos nada, que saímos quando ninguém espera. Adiar, interromper, parar, são verbos muito portugueses. Eu sei disso. Eu tenho todos os defeitos dos meus compatriotas, escreve.

Obrigado, Pedro.

FRANCAMENTE...

Observar o rosto de Morais Sarmento à hora da refeição tem contra-indicações. Disso já eu estava ciente. Mas ouvi-lo, em directo a partir do alfobre onde se reuniu a Comissão Política social-democrata, a brandir "sinais de retoma" é pior que encaixar uma marretada no estômago.

Sobretudo tendo em conta que, minutos antes, o mesmo serviço noticioso dava conta do crescimento contínuo - torrentoso - do número de desempregados.

Vergonha, f. Pudor; pejo. Receio da desonra. Desgosto produzido pela ideia de desonra. Desonra. Rubor que o pejo produz nas faces. Timidez, acanhamento.

Fonte: FIGUEIREDO, Cândido - Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa

BELÉM

Os exercícios de narcisismo do presidente da Câmara Municipal de Lisboa – em regime de meio gás, como sempre ditou a tradição santanista - trazem o baronato social-democrata a contorcer-se de pruridos. O problema não é de agora. Parte do estado-maior citrino não sabe o que fazer com os apetites oscilantes, e sempre febris, do sempiterno candidato a qualquer coisa que garanta holofote, objectiva e, pelo menos uma vez por semana, parangonas sísmicas.

Santana Lopes padece de uma variante aguda da inconstância. Os cargos que desempenhou, incluindo a cúpida incursão na pocilga futebolística, foram sempre encarados como um degrau, uma catapulta para a ascensão mediática. De Angola à contracosta, Santana, o político balão, vai gizando o seu mapa cor-de-rosa. Agora é o apelo de Belém que o move.

O que chateia profundamente a ala Boliqueime do PSD é a falta de reverência pelas tábuas de Moisés. Santana, pagão, calca Cavaco, entidade toda-poderosa e omnisciente, com o à-vontade de um Iscariotes a vender-se a Roma.

Na cada vez mais demoníaca entrevista ao Expresso, o "excessivo", assim cognominado por Marcelo Rebelo de Sousa – que, como se sabe, de excessivo não tem nada, à excepção, talvez, de um mergulho nas águas insalubres do Tejo ou de uma trapalhada envolvendo uma tal de vichissoise -, argumenta que Cavaco Silva não pode colher o apoio de ambos os partidos da coligação governamental, conhecidas que são as posições do professor em relação a Paulo Portas e restante pandilha do Caldas.

"Na minha opinião, qualquer candidato que não tenha bom ambiente com os partidos da coligação leva à dissolução da mesma num prazo curto. Esta é uma realidade inexorável", blasfema Santana.

Sociais-democratas e democratas-cristãos aproximam, diariamente, as bochechas daquela que deverá ser a primeira bofetada eleitoral – as Europeias. Bem pode a esquerda regozijar-se pelos serviços prestados por almas como a de Santana, sequiosas da trindade sonhada por Sá Carneiro. Pena é que a Oposição seja tão desgraçadamente incompetente.

domingo, fevereiro 15, 2004

LUÍS VAZ E A ARTE DE MARINHAR

Zarpámos ao crepúsculo com alma epopeica e coração temerário. Lusíadas, abordámos as águas bolinando sem receios, de espírito escancarado às essências de mundos novos e às vagas jamais experimentadas de mares nunca dantes navegados. Nunca dantes navegados - empunhe-se a bandeira e ice-se a vela com a cruz de Cristo, que a coroa espera canela, cravo e ardente especiaria.

Os perigos de redes perdidas. Não queríamos, sobretudo, quedar-nos emaranhados como o peixe incauto no arrasto ou sofrer o abalroamento do vaso italiano; "Oliveira e Carmo" de aço retorcido; a proa desfigurada da "Roberto Ivens". Mas como resgatar o casco à emboscada, se a Invencível Armada arremetia a estibordo e a bombordo?

Também nós olhámos Júpiter com semblante de súplica. Mas o mensageiro Mercúrio não veio e não lográmos porto seguro. O casco acusou o choque, a água a encharcar os compartimentos estanques dos nossos porões. O convés percorrido por grumetes alheios. Ainda assim, perseverantes, arrebatámos a batalha naval.

Como vereis o mar fervendo aceso
Cos incêndios dos vossos, pelejando,
Levando o Idololatra e o Mouro preso,
De nações diferentes triunfando;
E, sujeita a rica Áurea Quersoneso,
Até o longinco China navegando
E as ilhas mais remotas do Oriente,
Ser-lhes-á todo o Oceano obediente
.

Calados os canhões e recolhidos os sabres, virámos o leme para bombordo; aí, dois faróis guiavam o marinheiro incauto - como o peixe apreendido na malha fina. Mantinham o navio ao largo ou impeliam-no para rochas aguçadas e baixios fatais? Não pudemos compreendê-lo, pois a luz extinguiu-se por súbita decisão.

Meio caminho a noite tinha andado
E as estrelas no Céu co a luz alheia,
Tinham o largo Mundo alumiado;
E só co sono a gente se recreia.
O Capitão ilustre, já cansado
De vigiar a noite, que arreceia,
Breve repouso antam aos olhos dava,
A outra gente a quartos vigiava
;

Depois veio a voz de timbre doce, respirada com um gosto de alcaçuz. Comandante e imediato embalados ao som de um riso de sereia. Aportámos, por fim. "Niña" e "Pinta" desamparadas, que a "Santa María", nau capitânia, fundeara já noutro porto, porventura entre lençóis de linho perfumados. Mas que porto era esse? Em que águas lançara a âncora o pequeno navio mercante, que Cristobal considerou sofrivelmente apetrechado para a demanda do incógnito?

Para onde a empurraram os ventos alísios do Atlântico?

À primeira ilha que descobri dei o nome de San Salvador... tão verdejante que é um prazer olhá-la.

No fundo da alma, fomos em busca de que praças? De Cipango? De Calecute? E o que encontrámos? Fomos Colombo ou Gama? Disse alegre o piloto Melindano: «Terra é de Calecu, se não me engano»;

Como é bela a costa do Malabar...

sábado, fevereiro 14, 2004

SONS DA MANHÃ

Just before our love got lost you said,
"I am as constant as a northern star."
And I said, "Constantly in the darkness
Where's that at?
If you want me I'll be at the bar."
On the back of a cartoon coaster
In the blue T.V. screen light
I drew a map of Canada
Oh Canada
With your face sketched on it twice
Oh you are in my blood like holy wine
You taste so bitter and so sweet
Oh I could drink a case of you, darling
And I would still be on my feet
Oh I would still be on my feet (...)


Joni Mitchell - A Case of You

O FILHO DO HOMEM

Ando a escalpelizar, há dois dias, um artigo de fundo da norte-americana Newsweek sobre a mais recente obra cinematográfica de Mel Gibson – The Passion of the Christ. O filme, ao que parece, anda a chatear meio mundo entre a comunidade judaica. Gibson opta por retratar Pilatos como um homem sensível - "forçado" a condenar Jesus Cristo à morte quando confrontado com os ditames do Sinédrio e os gritos de raiva espumante da populaça.

Mel Gibson, explica a Newsweek, é um católico ultraconservador, "um tradicionalista que não reconhece muitas das reformas do Concílio Vaticano II". Em Janeiro, numa entrevista à Global Catholic Network, Gibson garantiu que "adora" os judeus e que não quis "linchá-los".

Não quero que o meu espírito fique poluído pelo excelente artigo da Newsweek. Vou aguardar, por isso, a estreia nas salas de Lisboa. Para começo de conversa, confesso que me agrada a possibilidade de visionar um filme integralmente interpretado em Aramaico e Latim. Agrada-me, também, que Gibson tenha optado por não fazer qualquer censura "gráfica" nas cenas de violência e sofrimento. Por último, quero ver como se sai James Caviezel na pele do messias.

sexta-feira, fevereiro 13, 2004

CINZAS

Não é fácil testemunhar, mediante o tacto e o vislumbre, a agonia de uma estrela. Não é fácil apagar, no papel timbrado da memória recente, o estertor da luminosidade. Por que calçadas sujas vagueia agora a luz que me cobria a pele com a pátina?

Procuro, nas vielas mais estreitas do teu olhar, os restos de poeira galáctica. Queria saber de que nuvem densa brotaste e devolver-te ao berço com cuidado. Observei, atento, os movimentos do teu corpo e assevero-te que não detectei hidrogénio, tão-pouco hélio.

Estremeço de saudade quando recordo os tempos em que fundias átomos com a nobreza de um astro de casta elevada - e enlevada.

quinta-feira, fevereiro 12, 2004

RAFAEL ALBERTI

A las Brigadas Internacionales.

Venís desde muy lejos... Mas esta lejanía
¿qué es para vuestra sangre que canta sin fronteras?
La necesaria muerte os nombra cada día,
no importa en qué ciudades, campos o carreteras.

De este país, del otro, del grande, del pequeño,
del que apenas si al mapa da un color desvaído,
con las mismas raíces que tiene un mismo sueño,
sencillamente anónimos y hablando habéis venido.

No conocéis siquiera ni el color de los muros
que vuestro infranqueable compromiso amuralla.
La tierra que os entierra la defendéis seguros,
a tiros con la muerte vestida de batalla.

Quedad, que así lo quieren los árboles, los llanos,
las mínimas partículas de la luz que reanima
un solo sentimiento que el mar sacude: ¡Hermanos!
Madrid con vuestro nombre se agranda y se ilumina.

Madrid,
diciembre 1936

Nota: agradeço ao meu amigo A. Pereira o enriquecimento fiel e cadenciado da minha caixa de correio.

REMETENTE, DESTINATÁRIO

Querido amigo,

Hoje lembrei-me de ti. A meio da manhã vi um rosto que não percorria, há anos, os recantos esponjosos da minha alma e lembrei-me de ti. Olhos naufragados em mares rosáceos. Lembrei-me de ti porque não quero ver os teus olhos a sofrerem semelhante castigo. Não mereces. Bem vistas as coisas, não há criatura que o mereça. Mas a mais ténue subtracção de luz em ti deixa-me triste. É isto a amizade?

E a voz? Passa dos adagios aos allegros - do sorriso ao tremor dos lábios no despontar de uma lágrima. Choras ou ris? Estás aí? Eu estou aqui. Perto. Sempre.

quarta-feira, fevereiro 11, 2004

SILÊNCIO

O quotidiano tem sido vergastado por fugazes percepções de realidade. Assumem a sintomatologia de um surto febril, mas não excedem os cinco minutos. Um afrontamento, um arrepio e uma vertigem. Depois, um fio de tristeza que escorre de alto a baixo. A consciência de que o tempo se esgota. É isto que me carcome ultimamente.

sábado, fevereiro 07, 2004

BAYERISCHER HOF HOTEL

Consumado o domínio dos recursos petrolíferos da Mesopotâmia, os senhores do mundo voltam a entregar-se aos prazeres báquicos da diplomacia. Mas terão realmente deixado de o fazer, mesmo quando os bombardeamentos de precisão reduziam a pó os mármores de Saddam e os tanques ocos da Guarda Republicana?

Donald Rumsfeld vem à Conferência sobre Política de Segurança, em Munique, para observar de perto os cacos do "poderoso" eixo franco-alemão, que se desfez, antes e depois da aprovação da Resolução 1441, em gritinhos histéricos contra o absentismo da justeza nos corredores do Pentágono e da Casa Branca.

Agora que o Iraque se encaminha para a plena democracia - como se vê todos os dias nas manifestações de júbilo da maioria xiita e no contentamento explosivo dos consulados da al Qaeda e da "resistência" - nova e velha Europa dão as mãos ao amigo norte-americano.

A 27 deste mês, Gerhard vai reunir-se com George. Scott Mclellan, psitacídeo oficial da Casa Branca, já papagueia que a Alemanha – a mesma Alemanha de um Joschka irado que, há um ano, verberava um Donald bocejante – é "um parceiro-chave para promover relações políticas e económicas mais estreitas entre os EUA e a Europa". No Eliseu, o ímpeto da reconciliação é mais contido. Porém, o "caminho da escuta recíproca num espírito de amizade e confiança" - la position oficielle - é inquebrantável.

É o ponto final parágrafo num arrufo de velhas amantes.

sexta-feira, fevereiro 06, 2004

CHÁ COM O PRESIDENTE

Decidi reler Bush Em Guerra, de Bob Woodward. Por causa da história principal da última edição da Newsweek, que, na capa, distribui em quadrados parcimoniosos os rostos decididos de Bush, Rumsfeld, Rice, Tenet & Cia. Título: Estávamos Todos Errados.

Woodward escreve com o à-vontade de uma "mulher-a-dias" da Casa Branca, uma espécie de Dona Isaura de George e Laura. Gosto muito de Bush Em Guerra. Não gosto mesmo nada de Bob Woodward.

quinta-feira, fevereiro 05, 2004

VINTE CÊNTIMOS

Conhecerás tu, que impregnas a carruagem com o odor agridoce do teu corpo, os meandros tortuosos da fórmula da felicidade? Por que motivo não ordenas à tua guarda avançada que se coíba de importunar a reformada da repartição ou a burguesa de rosto cremoso que areja os bicos de papagaio ao cuidado do passe social? Foste sempre assim, suja de um negrume encardido?

Percorres o chão de borracha com a planta do pé à mercê dos elementos. E não te incomodas com a opinião alheia, sussurrada nas tuas costas; risinhos de adolescentes frívolas ou admoestações indignadas de respeitosos contribuintes que dissecam jornais desportivos.

Balanças de mão estendida ao sabor dos carris, na cadência primitiva das rodas a castigar as juntas férreas. À tua frente, distribuis os putos andrajosos e sujos de terras e lixos variegados, a inspirarem um monco eterno que lhes trepa o nariz como um elevador. É aos pés do elevador também férreo que estendes a saia em ruína, recolhendo uma perna para pareceres inválida. Que outra coisa és tu, se não uma inválida? Destapa, pois, a perna. Exibe a pele feita sola à força de paralelos e arestas aguçadas de calçada portuguesa.

Foi teu marido quem redigiu o Português soluçante desenhado na cartolina? Por onde anda o autor das equimoses que ocultas com um lenço? São para ele esses tostões mendigados de manhã à noite por entre fezes de pombo e cascas de castanhas?

À saída da cidade, cedes o posto na composição ao par expelido por um Leste herdeiro de Ceausescu e quejandos. É preciso dizer que o turno tem agora uma qualidade em tudo superior. O teu número dos putos de mucosas congestionadas é suplantado por um acordeão de teclas sebosas, que parece incomodar ainda mais a classe média ciosa da sua apatia paliativa.

De que quelha vieram? Saberás - tu, os teus rebentos e o duo dissidente – que se contorce por aí uma impaciência cozinhada em lume brando?

"O patriotismo é a menos perspicaz das paixões", sentenciou Borges. Ninguém quer saber se comeste o último prato de sopa há três dias ou se os putos naufragam em expectorações nocturnas. O que desejam é que percorras o corredor central com suficiente rapidez – um trajecto eficaz que lhes permita enterrarem a cabeça no jornal ou orientarem os olhos para o enésimo vislumbre dos Pupilos do Exército e dos consumidores do supermercado psicotrópico em Campolide.

Sei que esse semblante torturado, suplicante, passou de ficção a realidade à razão de uma e outra pancada desferida no teu rosto. Mas, ainda assim, repito: conhecerás os segredos da felicidade?

Tu, que não tens de fingir a abastança com remendos sucessivos, percorres as carruagens e legas, no pior dos cenários, o odor agridoce do teu corpo. Eu, que imito os meus congéneres à tua passagem, nada tenho para legar. Só esta vaidade de um imenso nada.

CÂNDIDO

Pedro Strecht propõe, na edição de hoje do Público, a criação de um "Ministério da Infância e Juventude". E se desatássemos todos a pedir a criação do nosso próprio ministério? O Ministério dos Bombeiros, o Ministério da PSP, o Ministério do Fax, o Ministério do Formulário, o Ministério dos Vinhos de Palmela, o Ministério do Azeite, o Ministério das Quatro Paredes Caiadas...

Strecht quer um ministério. Mais um. A adicionar a uma arquitectura institucional que - avaliados a dimensão e o peso - bem podia gerir a Austrália e a Nova Zelândia, sobrando ainda algumas repartições, gabinetes e secretarias para parte da Indonésia.

quarta-feira, fevereiro 04, 2004

REQUIEM

Há, no íntimo luso, uma propensão para o drama fácil, para a lágrima lesta e para o compadecimento universal. Mas há, também, o egoísmo das almas pequenas, que cultivamos com o mesmo afã. É nesta espinha bífida que o povo "dos brandos costumes" funda a sua identidade, algures entre um soneto de Camões e uma quadra num manjerico.

Construímos, quando confrontados com a desgraça, "pontes sobre águas turbulentas" – que me perdoem Paul Simon e Art Garfunkel -, somente para derrubá-las ao primeiro sinal de prejuízo no horizonte próximo.

Humildamo-nos com a suprema tragédia. Depois, rendidos à mais falsa das vergonhas e ao mais cínico dos altruísmos, proclamamos a mudança dos hábitos. Se necessário, rastejamos na passadeira marmórea de Fátima ou dispomos placas com inscrições emocionadas e gratas na base de uma estátua do Campo Mártires da Pátria.

E tudo fica na mesma. Exacta e irremediavelmente na mesma. Uns extirpam cadeiras de plástico ao betão e arremessam-nas na esperança raivosa de rachar o crânio alheio, ao passo que outros proclamam que o país não interessa e que a panaceia vem anexada a um bilhete de avião para qualquer lado ao largo do Condado. Há também aqueles, como eu, que ameaçam o choro quando ouvem Puccini a ecoar entre bancadas e vêem onze atletas a carregar nas costas o nome de um companheiro fulminado sem edital prévio; no minuto seguinte, após uma garfada de fetuccini e um gole de refrigerante, já gargalham com qualquer disparate, esquecendo a própria condição de alvo daquilo que alguns - porventura mais felizes do que eu - denominam juízo celeste.

Hoje, a simetria que vejo no espelho envergonha-me. Sinto-me pequeno.

KAÚLZA DE ARRIAGA, 1915-2004

"Eu sou paternalista. Não há dúvida que os povos do Sul são menos desenvolvidos. O paternalismo não é crime nenhum, é o que está certo nos planos dos povos e da família".

segunda-feira, fevereiro 02, 2004

ADEUS?

Desliguei o motor do carro há quase uma hora e ainda não logro perceber o aperto do tórax que experimentei ao primeiro sinal do crepúsculo; precisamente num dos pórticos fluviais da cidade que sempre soube ser minha - sem, no entanto, sentir aquilo. Foi preciso ser confrontado com a possibilidade de ter de a deixar por uns meses largos.

Entrei a Nascente. E vi o Sol do outro lado a deitar-se sem pressa. Vi o lume já rarefeito de uma luz que só a minha cidade sabe oferecer. Enquanto atravessava um Tejo plácido, fui trespassado. Estava há muito enfeitiçado e não o sabia. Será isso?