À BALA
A políticos da têmpera de Donald Rumsfeld, de Dick Cheney, de Paul Wolfowitz e, numa variante primária, do próprio presidente dos Estados Unidos, interessa pouco a desesperante lentidão das ferramentas diplomáticas. "Esmurrar primeiro e (talvez) dialogar depois". Assim se sintetiza a aberração que os dedicados evangelistas do "bem", supostamente consagrado em "exemplares" arquitecturas democráticas como a dos Estados Unidos - onde as miseráveis taxas de participação do eleitorado são, ao que parece, indicadores descartáveis -, têm vindo a baptizar como "guerra preventiva" e "luta pela liberdade", sendo que a segunda fórmula recrudesce quando, nos bocados de terra que se dizem "livres", fanáticos assassinam em nome de Alá ou da réplica à "cruzada" da Mesopotâmia.
Se é aceitável dizer-se que não se podia esperar da América uma resposta salomónica à ofensiva terrorista de 11 de Setembro de 2001, também o é diagnosticar, quase três anos depois, o fracasso da estratégia – desta estratégia - de combate ao terrorismo, abstrusa em toda a linha; uma estratégia que nasceu enviesada no Afeganistão, onde, para lá do derrube do regime Talibã e consequente afrouxamento do garrote fundamentalista, logrados após semanas confrangedoras de bombardeamentos contra a areia, pouco mais se conquistou; uma estratégia fatalmente contaminada pelas metastases de um tumor que a máquina bélica anglo-americana foi plantar no Iraque, retomando uma guerra, interrompida em 1991, sob o mentiroso pretexto da supressão do armamento de destruição em massa do regime iraquiano, também nebulosamente acusado de ligações a organizações terroristas; uma estratégia que, ao invés do que se agitou como fim último, levou a que o terrorismo da al Qaeda e sucedâneos se fizesse verdadeiramente multinacional e indiscriminado, matando cristãos, muçulmanos, judeus e quem quer que tenha o azar de partilhar um autocarro ou um comboio com um assassino de bomba à cintura ou embrulhada na mochila.
Charles A. Duelfer, que substituiu, em Janeiro, o incómodo David Kay no comando da equipa norte-americana de inspectores de armamento, foi ontem ao Congresso, em Washington, para repetir, com recurso a um receituário menos lapidar, é certo, não o que o seu predecessor havia afirmado – que as informações aventadas pelos serviços secretos antes da operação "Liberdade Iraquiana" eram incorrectas -, mas, essencialmente, o que Hans Blix andou a berrar enquanto chefe da UNMOVIC. Das referidas armas, nem sinal. Sobre o atropelo, por parte do antigo regime de Saddam Hussein, das resoluções do Conselho de Segurança, todos de acordo. Isto esvaziou, muito cedo, as justificações de Bush, primeiro, e de Blair e Aznar, depois, para pulverizar à força das armas o Baas iraquiano. Mas não demoveu a estúpida inclinação para o abstruso.
Não é intelectualmente saudável propor que se dialogue com agentes do terrorismo. Mas também não é honesto sustentar-se, como o faz Vasco Graça Moura na edição de hoje do Diário de Notícias, que o Iraque conhece uma "progressiva normalização da vida política e civil"; tão-pouco que o conceito das "intervenções preventivas" não está a encaminhar-nos, a todos, mais ou menos dormentes, para as premonições de Huntington.
A depressão colectiva, frequentemente delirante, que se abateu sobre a porta das traseiras da Europa adquiriu, num punhado de dias, uma roupagem mais senatorial. Fez-se escola, corrente idiossincrática, armamento político. Não tarda nada cria-se uma licenciatura; depois disso, uma secretaria de Estado ou uma repartição, um gabinete de estudo e uma comissão parlamentar - a ordem cronológica é arbitrária. A quem deve Jorge Sampaio atribuir uma grã-cruz no próximo 10 de Junho? Perfilam-se, agora apartados da concorrência mais directa, dois socialistas e um comunista, este último condenado ao degredo nas Canárias!...
Os dias não correm em doce remanso; a alma não se rendeu aos deleites do ócio. Rendeu-se, confesso-o com uma pitada de vergonha, à evidência. Daí os fiapos de texto que trazem O Sedentário numa falaciosa consciência, num coma mal disfarçado. Sedimentam-se os dias e eu não consigo - garanto que não consigo – segurar a Bic entre o polegar e o indicador sem que me invada, rápida, clínica, uma demolidora questão: “Mas que raio ando eu para aqui a fazer?”
O domingo eleitoral de Espanha baralhou as contas da intelectualidade neoconservadora. Que se dedica, de então para cá, a fazer proliferar a tese de que o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) de Zapatero arrebatou o Palácio da Moncloa com um empurrão da al Qaeda. Ou, dito de outra forma, que foram os sicários de Usama bin Laden a lograr a vitória nas urnas espanholas, por oposição à espinhosa evidência de que as exéquias de Mariano Rajoy foram preparadas – desde a cimeira tripartida das Lages, a 16 de Março de 2003, e não em quarenta e oito horas - pelo Executivo espanhol, com o presidente Aznar à cabeça. Ou, com recurso a uma fórmula ainda mais eloquente, que o eleitorado espanhol, aterrorizado com a chacina de 200 civis em Madrid, preferiu o acobardamento à carga de peito aberto, "o isolacionismo" à união dos países ocidentais, amantes da "liberdade" e da "democracia", contra a violência medieva do fundamentalismo islâmico.
"Especialistas", "comentadores", "analistas" entregam-se à dissecação do 11 de Março. Esgrimem argumentos soberbosos, analisam com detalhe o modus operandi e procuram determinar, científicos, "a quem serviu o atentado" de Madrid. "A quem serviu" um atentado que provocou 198 mortos e 1.463 feridos!...
1. A mortandade da manhã madrilena - pelo menos 190 vidas pulverizadas pelo mais sanguinário dos terrorismos nas estações ferroviárias de Atocha, El Pozo e Santa Eugenia - deveria ser mais que suficiente para acabar com os pudores e pruridos ideológicos, por parte de uma certa intelectualidade e de alguma comunicação social do nosso país, no que toca a catalogar a ETA na estante das organizações terroristas. Sabemos, tristemente, que não vai ser assim...
Tocaram os sinos na torre da igreja e aspergiu-se o chão de rosmaninho e alecrim. E ao fim da tarde, pela fresca, os devotos do professor de Boliqueime engrossaram as fileiras da procissão no terreiro da romaria – desta feita o auditório da Fnac, no Chiado. Escorado pelas flores no andor, Cavaco deu à luz, messiânico, sebastiânico, o segundo tomo da evangélica Autobiografia Política. "Neste livro não quis ofender ninguém", desculpou-se.
Nascido no Estado Novo, de Fernando Dacosta, solidarizou-se, ontem, com as minhas expectorações abundantes e tosses de cataclismo. E fê-lo de uma tal forma que, enquanto lia suculentos pedaços de texto sobre a profunda ruralidade de Salazar, dei por mim a passar um mata-borrão entorpecente sobre a flagelação da faringe.
