Mordi o isco mercantil lançado pela Caminho a propósito do lançamento de
Ensaio sobre a Lucidez, de José Saramago. Não posso, também, escamotear que a discussão atiçada pelas (cada vez mais) prosaicas teses políticas do autor, alcandorado nas glórias complacentes de um Nobel da Literatura, não esteve à margem da decisão; um ímpeto anormalmente lesto de subtrair o romance ao escaparate e começar, de imediato, a desvendar-lhe os meandros.
Preferi passar pela epígrafe – "Uivemos, disse o cão" (Livro das Vozes) – como vento frouxo pela espiga. Porque o uivo, no caso do escritor português, é mais expressão de azedíssima descrença, manifestada em golpes de punhal a cada cirúrgico regresso do exílio a que se entregou, e menos apelo ao agitar das águas estagnadas em que o país governado se deixou aprisionar. Chamado a explicar-se nos púlpitos da comunicação social, que tanto odeia e de que tanto precisa, José Saramago tratou de coarctar a soberania do futuro leitor de
Ensaio sobre a Lucidez. Se, quanto à fábula em 329 páginas, já pouco poderia contrapor, reservei-me pelo menos o direito de roçar, despreocupado, a exclamação canídea.
As considerações públicas do Saramago oral apartam-se da mensagem do Saramago escrito. E se o primeiro não inquina, lamentavelmente, a arte do segundo, é porque há um Prémio Nobel que lhe oferece a blindagem. No início desta semana, escorado, no auditório do Centro de Congressos de Lisboa, por Mário Soares, Marcelo Rebelo de Sousa e José Barata-Moura, o autor equiparou o uivo à "acção". Uma "acção" que José Saramago parece confinar ao microcosmos do voto em branco, por si apresentado como uma espécie de panaceia para os cancros do sistema representativo.
O Nobel da Literatura, comunista desiludido com os moribundos "faróis" do marxismo-leninismo, entristecido com a cegueira voluntária da ortodoxia, baralha-se na insanável contradição entre aquilo que, aflorando o pueril, apresenta como a "descoberta" de uma vida - a "arma" do voto em branco – e a "expressão de fidelidade", as palavras são suas, que é a inclusão do seu nome, em lugar não elegível, na lista do PCP às eleições europeias. Saramago bem pode arvorar-se num discurso de activa militância contra a ancilose da democracia representativa, que só não diagnostica quem tem algo a perder com o seu abalo. Porém, o que vem defendendo não é a "acção". É a desistência.
Uma raridade no actual registo pardacento do escritor foi a preocupação, manifestada durante o debate acima referido, com a possibilidade de o livro vir a ser "posto de parte como objecto literário, focando-se a atenção no lado político que assumidamente tem". A verdade é que o "objecto literário" cedo se quedou obnubilado pelas diatribes disparatadas de José Saramago. É pena.
Ensaio sobre a Lucidez não é um portento de literatura e não se lê, ao contrário do que sustenta José Barata-Moura, como um romance "alegremente sério e incómodo".
Ensaio sobre a Lucidez é, parece-me, uma efabulação bela, tristemente séria e pouco ou nada incómoda. Estão lá as conhecidas, e para alguns insuportáveis, minudências de estilo de Saramago, o afiado humor e a certeira ironia, a adjectivação científica e o brilhantismo do discurso directo. Mas, sendo um saboroso pedaço de leitura que prende a sede de quem o sorve ao terceiro ou ao quarto parágrafo, anda longe de constituir um "fazedor de consciências", uma "pedrada no charco". Tal é o extremo das soluções narrativas que Saramago talha a partir de uma premissa escandalosa: oitenta e três por cento de votos em branco depositados nas urnas pelos eleitores de uma familiar "capital".
Há, no livro de José Saramago, imagens de uma tocante e quase esperançosa beleza herdadas da matriz,
Ensaio sobre a Cegueira, tais como - são exemplos entre muitos - as passagens sobre as mulheres da capital sitiada que decidem tomar em mãos a limpeza das ruas, ou as marchas ordeiras dos cidadãos na esteira de um atentado cozinhado pelo governo. Mas o que o Nobel deu à luz foi um manifesto sobre o estertor da crença; desesperança incurável nos profissionais da política, desesperança virulenta nos media e desesperança paternalista nos governados. Isto não incomoda. Deprime.