O Sedentário

segunda-feira, agosto 23, 2004

Ainda...

Venho aqui, muito fugazmente, para dar conta de um peso inultrapassável. Que se abateu, quando tentei redigir o auto do retorno, sobre a minha caneta de plástico transparente. Por ora, é-me fastidioso alinhar sujeitos, predicados e complementos directos; pior: adivinhar-lhes na leitura subsequente as mesmas manigâncias que me votaram a outros cadernos. O que acabo de descrever explica, antecipadamente, os próximos dias – não logro, desta feita, enumerá-los – de silêncio meditativo.

segunda-feira, agosto 16, 2004

Interlúdio

O escriba de serviço ausenta-se durante seis dias; o monge copista segue-lhe os passos. Há parágrafos que se destinam a outros cadernos.

sexta-feira, agosto 13, 2004

Rascunhos do cais – postigo com vista para Santo Ildefonso

A memória completa um círculo em torno de uma cintura redonda de avó, protegida por um avental; esboça, de seguida, fios quebradiços de cabelo branco poupados pelos ganchos, sulcos de ruína que vão da testa aos sinais fundeados no queixo. E isso não chega para que a moinha deixe de operar o castigo de um contentamento transacto.

Não é fácil resistir ao timbre mavioso de uma voz de avó, aquela mesma que se desloca vagarosamente, fitando-nos com doçura, por entre verduras repolhudas. Quando as pregas das pernas maciças ameaçam ruir como a pele do rosto, escora o peso e a silhueta de balseiro em bancas gastas e cestas prenhes de nabos. Mas o encanto da voz de avó permanece intacto, disseminando-se, quase intangível na base das escadas, para lá das quatro bicas do chafariz, entre o cheiro do pargo mulato e o assobio miudinho de um pardal que cumpre pena no outro extremo da galeria superior, à porta do açougueiro.

À entrada, mergulhámos numa penumbra fresca. Avançámos ao encontro dos fetos e das rosas, dos amores perfeitos ao Sol hesitante, a meio do pátio; o perfume de uma febra de porco a soltar-se no fumo de um fogareiro sujo. Detivemo-nos na base das escadas, avaliando o ónus de uma subida à força de pernas já castigadas pela Baixa. Coube à cintura redonda da avó circunstancial - e à voz que distribuía obrigados e epítetos açucarados - compensar a escalada.

Após o almoço, sentado a uma mesa arejada do Majestic, haveria de imaginar-me adoptado pela velhinha do Bolhão. E não há meio de curar a moinha.

quinta-feira, agosto 12, 2004

Brisa checa II

As notícias que me chegam de Praga mantêm a fórmula telegráfica. O meu apetite de viajante manietado, esse, segue em crescendo. É o transtorno de um espírito mais e mais esfaimado, cativo dos desmandos conjunturais e cingido à fidelidade discutível da imaginação.

Recebi, hoje, uma frase - residual na extensão e atiçadora no propósito, mas ensopada de estima no conteúdo. O meu amigo calcorreou a rua Na Příkopě. Andou à procura do número 10, por certo ávido. "Não resisti", desculpou-se, como se temesse uma represália celestial. Encontrou-o. E deve ter esboçado um sorriso ácido quando, num retrocesso artificial, mergulhou numa Praga comunista impregnada com os cheiros pestilentos dos hambúrgueres de matriz norte-americana.

O Museu do Comunismo nasceu da engrenagem "empreendedora" de um capitalista – moldado no coração do império ianque. Fico-me por aqui; a réplica contrária levar-me-ia, dizem-me os sábios, a uma recaída de estultícia ortodoxa.

quarta-feira, agosto 11, 2004

Percurso

A ideia brotou de esguelha no hemisfério mais esconso do bolbo. E andou por ali, de sulco em sulco, oculta nas sombras e ao abrigo das brigadas do ânimo. Propositadamente, calculista como as suas parentes mais notáveis, pouco se fez notar. Mas os dias sucediam-se, previsíveis e subordinados à mais doentia das pasmaceiras. A ideia, fatigada com tamanha inactividade e impossibilitada de fazer ruir, se tanto, a pedrinha mais ignota da muralha, decidiu agir por conta própria, à revelia das instruções da ponte de comando e do fígado volátil do oficial de quarto. À noitinha, alentada pelo fresco, despojou-se dos seus folhelhos de ideia conspiradora e, sem pedir chancela superior, vestiu o gibão do verbo. Fez-se, por fim, notar. "Sinto-me pobre", ouviu-se entre as mesas da esplanada.

terça-feira, agosto 10, 2004

Brisa checa

Um querido amigo percorre, por estes dias indolentes de Agosto, as margens do Vltava, em Praga. Imagino um olhar de menino desferido às pontes e à simetria graciosa que o rio reflecte. Por esta altura, cumprida a via férrea que o fez passar por Bratislava, deve andar em demanda dos resquícios de Carlos IV. Conheço-lhe as manhas e as sedes. Consigo adivinhar os esgares e as exclamações de júbilo descobridor – no Hradčany ou em presença do barroco em Malá Strana. Sei que não deixará de palmilhar o Palácio Sternberk, sorvendo os séculos, de XIV a XX.

Ontem recebi notícias do meu amigo, sopradas com a brevidade de quem não pode desperdiçar tempo. Dizia-se encantado com a beleza bípede da fêmea checa. Reconheço que a razão lhe pertence. Mesmo assim, lembrei-me de uma carta de Václav Havel – redigida no cárcere de Ruzyne, a 8 de Setembro de 1979 - à mulher, Olga, e do sentimento antagónico que aí expressou.

«E agora – para não fugir à regra -, notícias do meu quotidiano aqui dentro. Os meus companheiros são, no geral, gente boa e gostam de mim, mas trazem-me problemas porque estão sempre a falar e eu não consigo ler, pensar, etc. É claro que não há forma de impedir que o façam. Às vezes é de ficar louco. Mas basta que se calem só por 10 minutos e eu perco logo a raiva dissimulada e contida que sentia, fico numa disposição óptima e penso que é assim que continuo a subtrair-me ao perigo de qualquer aberração psíquica duradoura. Com uma excepção: quando me soltarem, e penso que enquanto viver, nunca mais me vou curar da alergia às conversas sobre mulheres.»

segunda-feira, agosto 09, 2004

Bloco de notas

A engrenagem intelectual de Miguel Portas rumina dentro das fronteiras da cartilha do Bloco de Esquerda. Uma doutrina que dita, desde logo, um desenho fronteiriço limitado.

Não me é difícil imaginar que, no momento da adesão à confraria, o novel soldadinho seja forçosamente confrontado com a variante gauchiste das Tábuas de Moisés - não dirás outra coisa que não este chorrilho de grugulejos moralistas; honrarás o verdadeiro socialismo; cobiçarás o eleitorado comunista e a falange descoroçoada do PS.

Com Portas, obreiro do Bloco, não terá sido assim. Porque a Portas, à partida prelado de casta intelectual cimeira, não foi necessário catequizá-lo. Portas ministra. A partir de Bruxelas, num parlamento cinzento mesmo quando o astro rei rompe as nuvens, ou de Vouzela.

Sustenta o eurodeputado que, "em Portugal, este Governo de Santana Lopes começa-se a assemelhar muito, à nossa escala, a um pequeno conselho de administração de interesses organizados, ou em privatizações ou em negócios preferenciais".

Depois, é preciso tornar a mimar o Presidente da República na prédica sabática. Jorge Sampaio, aponta Miguel Portas, abriu "caminho a um Governo carente de legitimidade", quando se lhe exigia que devolvesse "a palavra ao povo" – muito democratas, estes comunistas arrependidos -, e acabou por "abrir uma crise no PS, exactamente no momento em que seria preciso que fosse forte na oposição às políticas de direita que hoje carecem claramente de legitimidade popular" – leia-se "como seria bom ter logrado, em coligação com o PS coxo de Ferro Rodrigues, levar o Bloco de Esquerda, formação exterior aos bafios do sistema, à epítome desse mesmo sistema: o poder".

E é precisamente no PS que Portas introduz a cúpida colher do Bloco, quando teoriza, enquanto dirigente de um partido (com legitimidade popular) timoneiro da Oposição, sobre a eleição do próximo secretário-geral dos socialistas. No PS assiste-se a "quase que uma discussão sobre como é que pode regressar, embora através de outra pessoa, numa espécie de D. Sebastião, António Guterres recauchutado", explica. "Todas as declarações que José Sócrates tem feito são declarações que lembram o pior do guterrismo, que é conseguir dizer sobre cada assunto isto e o seu contrário", demole.

O Bloco de Esquerda é o fenómeno político mais desconcertante do Portugal pós-25 de Abril. O triunfo do verbo sonoro mas medianamente substantivo e uma composição elegíaca ao óbito da política.

sábado, agosto 07, 2004

Paperback writer

Pensemos por um instante. Será isto uma verdade ou uma impressão avulsa? Que alguém, laborando acidamente lá dos píncaros da intelectualidade, logre incorrer nas falhas que verbera. Generaliza-se uma diatribe à generalização, pelo que o crítico, ele próprio um generalizador, acaba por mergulhar na torrente de generalidades que o exaspera. Não verbera. Verbera-se.

sexta-feira, agosto 06, 2004

Rascunhos do cais II

Aqueles balaústres de madeira trigueira trazem à flor da seiva ressequida o traço indelével de um cortejo de mãos. Assim como o rubro dos degraus, aplainados por solas inumeráveis. Cheira ao papel ancião dos alfarrábios e dos cartapácios; foram dispostos em vitrinas de vidro baço, irmanados para a eternidade à guarda de efígies de mestres talhadas em tom mais funéreo que o das balaustradas. Há, entre os volumes mais venerandos, aqueles que partilham o nosso ar; temo que um folhear mais despreocupado os esboroe sem recuo.

Completo a ascensão ao piso superior. Detenho-me no vitral regado a luz portuense, sempre transitória e quebrantada; Decus in labore, proclama-se ali, enquanto um ferreiro ensimesmado vai castigando a bigorna. Dedico-me, coagido pela inscrição, ao labor da anotação no canhenho intracraniano.

A madeira do soalho range sob os pés, à medida que me aproximo da janela. Os dizeres das lombadas agrilhoam-me o passo, que, ainda assim, não deixa de se tornar mais e mais estugado; há névoa lá fora, a manhã é melancólica como os pombos fuscos da cidade e, a bombordo, adivinho os setenta e seis metros de granito que Nasoni esboçou.

Não transponho a porta, rumo ao enlevo da Avenida dos Aliados, sem desferir um último olhar reverencial aos rostos seráficos de Eça, Camilo e Antero. Repito, num quase silêncio, numa quase ladainha, a máxima do senhor Pinto: "Para mim, ninguém é superior a ninguém". Humildado por tal presença, esforço-me por continuar a anuir. Não é fácil.

quinta-feira, agosto 05, 2004

Mira

Douglas J. Feith é subsecretário da Defesa dos Estados Unidos. Na orgânica das competências do Departamento de Defesa, Feith assegura a orientação do planeamento da Defesa e da política de forças militares, a definição das políticas do Departamento no que diz respeito à interacção entre agências e, por último, as relações externas do ministério de Donald Rumsfeld, secretário da Defesa e o segundo homem mais poderoso (perigoso) do globo terrestre na lista de detentores de armas de destruição em massa – o primeiro, como é sabido, é um rancheiro de Crawford, Texas.

Terá sido Douglas J. Feith, avança a Newsweek, o signatário de um memorando em que se defendia, na esteira dos atentados de 11 de Setembro, o lançamento de ofensivas militares norte-americanas na América do Sul ou no Sudeste Asiático. Argumentava o responsável pela proposta – tão obtusa como irresponsável – que se lograria, desse modo, "surpreender os terroristas". A revista cita uma nota de rodapé do Relatório da Comissão 9/11.

Mas o insigne estratego do Departamento de Defesa foi mais além, sugerindo o "ataque a alvos fora do Médio Oriente na ofensiva inicial" ou – atente-se, de uma vez por todas, na formulação, que prefiro deixar na língua original – a designação de um non-al Qaeda target like Iraq; qualquer coisa como um alvo alheio à organização terrorista de Usama bin Laden, sendo que o diabólico regime de Saddam Hussein serviria para o efeito.

A recomendação de ataques na América Latina – a Newsweek revela que os planos incluiriam uma "região remota na fronteira do Paraguai, Argentina e Brasil", apontada em relatórios dos serviços secretos como alfobre do Hizzbollah secundado por Teerão – passou pela Sala Oval como vento frouxo. Mas a ideia de que havia demasiados mísseis para tão poucos tijolos barrentos no Afeganistão dos Talibã não se esfumou. O que levaria a que o regime autocrático de Saddam Hussein fosse, necessária e compulsivamente, "esfumado".

É sumarento, o relato – Bob Woodward, Bush At War - de uma reunião realizada, na ressaca dos atentados, no Laurel Lodge (Camp David). A conselheira para a Segurança Nacional, Condoleeza Rice, a deixar escapar um desabafo: "Ainda vamos ter pena de isto não ser os Balcãs"; George W. Bush, confrontado com os óbices à formação de uma aliança internacional, a falar do alto de uma arrogância muito neocon : "Até podemos ficar sozinhos. Por mim tudo bem, somos a América"; o vice-secretário da Defesa, Paul Wolfowitz, a argumentar que o Iraque, ao contrário da incógnita afegã, era "um regime frágil e opressivo que podia ser facilmente derrubado", acrescentando que havia "10 a 50 por cento de probabilidades de Saddam estar envolvido" no 11 de Setembro; o mártir Colin Powell, secretário de Estado, a colocar uma questão primária: "Se não atacámos o Iraque antes do 11 de Setembro, porquê atacá-los agora, se o problema em curso não é o Iraque?".

A ideia, muito difundida, de que "qualquer coisa é melhor que Bush" é perniciosa e não augura nada de bom para uma eventual Administração Kerry. Mas a camarilha de prepotentes que rodeia o actual presidente norte-americano, matriz de uma ordem mundial imposta à bomba, não pode permanecer no poder. Definitivamente.

quarta-feira, agosto 04, 2004

Alerta Laranja

Prudential Plaza, em Newark, casa-mãe da Prudential Financial Inc. Os edifícios do Citigroup, das Nações Unidas e da Bolsa, em Nova Iorque. As sedes do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, em Washington. Todas estas instituições são potenciais alvos de um atentado terrorista de dimensões potencialmente apocalípticas, de acordo com Tom Ridge, secretário da Segurança Interna dos Estados Unidos e, por inerência, habitual pregoeiro de um Armagedão que tarda.

O calendário dos alertas – três áreas urbanas dos Estados Unidos vivem, desde o fim-de-semana, em época laranja - emitidos pela Administração norte-americana obedece, segundo Ridge, a critérios imunes aos ditames da América política.

"Não fazemos política no Departamento de Segurança Interna. O detalhe, a sofisticação (...) desta informação, se lhe pudessem aceder, diriam que fizemos o que era correcto. O Governo deve deixar que o público saiba deste tipo de situações. Não tem a ver com política. Tem a ver com a confiança de que o Governo o revelará quando obtiver informações", explicou, citado por The New York Times.

Ninguém pode duvidar – e, ao fazê-lo, manter um grão de honestidade - dos propósitos medievos da multinacional terrorista de Bin Laden. Por aí, Ridge e a restante corte alarmista de W. Bush mantêm-se à tona do lodaçal da melhor tradição das políticas externa e interna dos Estados Unidos. O mais assustador ensinamento que a maldade maquinal da al Qaeda trouxe ao todo-poderoso Ocidente - em Nova Iorque, Washington e Madrid – é o da elementar facilidade. É infantilmente simples chacinar, nas democracias ocidentais, milhares de civis inocentes.

E também é simples, com alguma pertinência conjuntural e sem grande sofisticação analítica, explorar a arrogância das administrações conservadoras e empurrar eleitorados cansados para alternâncias imprevistas. A al Qaeda, ou um dos esparsos grupúsculos filiais que sorvem o verbo de Usama, testou-o com dramático sucesso na estação ferroviária de Atocha, em Madrid. Não é de estranhar que os inquilinos do número 1600 da Pennsylvania Avenue, em Washington, andem nervosos com a eventualidade, muito verosímil, de uma reedição terrorista em Novembro. Por aqui, é-lhes mais complexo ficar acima do lodo.

Do outro flanco da contenda, o comportamento não é melhor do que o de W. Bush. Se é indesmentível que o presidente norte-americano quer ser reeleito com base na noção de que mais ninguém está habilitado a garantir a segurança do solo pátrio - sobretudo com a bênção de um Deus (em primeiro lugar) texano e (depois) norte-americano -, também ficamos a saber que os democratas não deixarão de fazer do terrorismo um instrumento eleitoral e pós-eleitoral, quer arrebatem a Casa Branca ou incinerem mais um candidato.

Em declarações à CNN, a conselheira de John Kerry para as questões de segurança interna, Susan Rice, achou por bem sublinhar que o último alerta de Tom Ridge vem demonstrar que a América "ainda não está tão segura como poderia ou deveria estar".

O aproveitamento é subtil. Mas não deixa de ser um aproveitamento. Ainda que Susan Rice garanta, a posteriori, que "os terroristas não nos dividirão" ou que "John Kerry e John Edwards trarão todos os aspectos do poder da nossa nação para esmagar a al Qaeda e destruir as redes terroristas", o posicionamento é esclarecedor. Se, em Novembro, John Kerry for eleito para a Casa Branca, será no mínimo interessante acompanhar a relação da sua administração com a premissa de que "o Governo deve deixar que o público saiba" – a fórmula é de Tom Ridge, mas assenta às duas forças políticas que, ciclicamente, se revezam no poder.

A verdade é que a tentação de burilar a opinião pública, com o recurso a um argumento tão aterrorizador, é demasiado grande; para democratas, aspirantes à liderança do mundo livre, e republicanos, aspirantes à manutenção da ordem bélica internacional. Uns e outros empregam retóricas subtilmente dissonantes para um mesmo fim imperialista.

A reacção mais "revoltante" – a expressão é do senador democrata Joe Lieberman, ex-candidato à Presidência preterido nas Primárias – coube ao desbocado Howard Dean, que, à CNN, cometeu a suprema imprudência de dizer a verdade.

"Estou preocupado porque, quando acontece alguma coisa que não é boa para o presidente Bush, ele joga o seu trunfo, que é o terrorismo. Toda a campanha [republicana] é baseada na noção de que ‘eu posso manter-vos a salvo, por isso, em tempos de dificuldade para a América, fiquem comigo. É simplesmente impossível saber quanto disto é real e quanto disto é política. E eu suspeito que há um pouco de ambos".

Em Novembro saberemos quanto vale, na contabilidade eleitoral, um punhado de ruas nova-iorquinas recheadas de polícias equipados com coletes à prova de bala e metralhadoras. Até lá, pode ser que, em Nova Iorque, Washington e Newark, não morra ninguém por culpa de quem manda. Para o resto do mundo, com a Mesopotâmia à cabeça, é demasiado tarde.

terça-feira, agosto 03, 2004

Rascunhos do cais I

O leme comprido de um Rabelo hesita entre o Douro dócil e o Sol marejado de uma névoa translúcida. Um bando de gaivotas cruza o ar antes de amarar em reflexos de prata. Na outra margem, a pouca distância, os sinos fazem-se ouvir; compõem trechos amenos em conluio com o canto das aves.

A Ribeira desenha-se em fachadas estreitas, as cores em desmaio progressivo; o amarelo e o azul, a cor do vinho e os ladrilhos enegrecidos pela brisa salgada que chega do mar.

Há gente no cais, as peles temperadas pela luz interrupta e os sorrisos francos. As correntes encaixam os voos intrépidos dos putos. Gargalhadas sãs e reptos para estóicos mergulhos de cabeça misturam-se numa arenga complexa. Lá no alto, a pedra escura da Torre dos Clérigos preside ao casario em cascata.

Deste lado, ao abrigo do Sol de Gaia, encontramos amparo na Serra do Pilar. O que fazer com este vento que insiste em apontar-me o caminho de casa, sempre contra a minha vontade em crescendo e a expensas da paz que colho aqui, sentado num tapete fresco e verde...

O namoro começou na Foz, a caminhada interrompida por descobertas. Foi a Lua e o trilho de leite que as águas espelharam. A certeza de um vazio preenchido.

Não houve surpresa. Muito por culpa da família que me adoptou aos primeiros instantes durienses. A mesa do senhor Pinto – "sou conhecido pelo nome do meio", explicou-me a transbordar de alegria genuína – é a mesma mesa a que me sento em casa. Há luminosidade nos olhos, conversas entre iguais. E se o interlocutor do senhor Pinto experimenta, cedo, a reverência imposta pelos cabelos brancos, depressa se vê desarmado.

"Para mim, ninguém é superior a ninguém", prossegue o senhor Pinto. Define-se com uma frase. Concordo com um aceno afirmativo e levo à boca mais uma garfada de arroz apurado.