O Sedentário

sexta-feira, outubro 29, 2004

"Panos do berço"

Hoje, dia inaugurado com os açoites madrugadores de um vento gelado e à mercê de uma chuva transversal, dou descanso à usine e cedo o pergaminho a Tocqueville (1805-1859).

«Um homem acaba de nascer; os seus primeiros anos passam-se obscuramente entre os prazeres ou as incumbências da infância. Depois cresce; começa a virilidade; as portas do mundo abrem-se finalmente para o acolher; ele entra em contacto com os seus semelhantes. É então que é estudado pela primeira vez e que se julga poder ver nele a formação do germe dos vícios e das virtudes da sua idade madura.

Se não me engano, isto é um erro enorme.

Regressai atrás: examinai a criança ainda nos braços da sua mãe; olhai como o mundo exterior se reflecte pela primeira vez no espelho ainda fosco da sua inteligência; contemplai os primeiros exemplos que atraem o seu olhar; escutai as primeiras palavras que despertam nele as potencialidades adormecidas do pensamento; por fim, observai as primeiras lutas que ele é chamado a travar, e só então podereis compreender de onde vêm os preconceitos, os hábitos e as paixões que irão dominar-lhe a vida. O homem está, por assim dizer, inteiramente contido nos panos do seu berço.»

Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América, vol 1, Lisboa 2002, p. 65-66.

quinta-feira, outubro 28, 2004

Aturdimento

Se o vaudeville da Florida não for reeditado em 2004 – especula-se, este ano, sobre o potencial teatral do Ohio - e se nos for dado a ver, nos ecrãs de televisão da madrugada eleitoral, um senador do Massachussets a desenhar o sorriso melancólico dos prosternados, veremos pulular entre analistas e operacionais partidários do Império uma miríade de teorias sobre a génese do reavivar tardio da candidatura democrata. Entre essas teorias andará, é quase certo, o "factor aturdimento", fulcral num combate político plasmado em guiões rigorosíssimos de political business e, nas Presidenciais de 2004, pobremente manobrado pelos homens de John Kerry; foi preciso chegar à última semana da campanha para ver o campo democrata deixar aturdida a equipa de Karl Rove.

Quando The New York Times e a CBS News noticiaram, na segunda-feira, o desaparecimento de 380 toneladas de explosivos do complexo militar iraquiano de Al Qaqaa, resultado da negligência e da cupidez petrolífera das legiões norte-americanas, a candidatura republicana patinou seriamente, optando por selar, num primeiro momento, os lábios de George W. Bush. Ao fazê-lo, fez passar a imagem de um Presidente em fuga apressada à realidade, ou, como disse o senador John Kerry num dos seus comícios, in the state of denial.

A meio da semana, os puppeteers do Presidente norte-americano perceberam o erro colossal da opção pelo silêncio, que os democratas, caso raro, souberam capitalizar a reboque da imprensa "amiga". Resultado: depois de o assunto ter viajado de forma errática de gabinete em gabinete, de Scott McClellan, porta-voz da Casa Branca, à conselheira Condoleeza Rice e ao vice-presidente Dick Cheney, puseram George W. Bush a papaguear o ensaio atrapalhado de uma contra-ofensiva. O Presidente, portanto, deixou de estar em fuga para estar à defesa – precisamente onde não pode estar a seis dias do escrutínio.

Ainda pior do que dar corda ao retardador a um Presidente desassisado como Bush é deixá-lo responder a um elemento novo na contenda eleitoral com fórmulas entretecidas em tempos tão idos como o cair do pano sobre as Primárias do Partido Democrático.

O candidato democrata, repetiu ontem o Presidente dos Estados Unidos em Pontiac, Michigan, anda a "denegrir as acções" das forças norte-americanas destacadas para o atoleiro iraquiano. Limitado, o léxico republicano.

"As nossas forças militares estão a investigar vários cenários possíveis, incluindo o de que os explosivos podem ter sido levados antes de as nossas tropas chegarem ao local (...) Esta investigação é importante e está a avançar. E um candidato político que tira as suas conclusões sem conhecer os factos não é uma pessoa que queiram como vosso comandante supremo". Assim falou Bush. Mal e a más horas.

No reino da "Política TV, Dinheiro e Crossfire" – título de um artigo de Fareed Zakaria publicado na Newsweek -, importa pouco saber se os explosivos desapareceram antes da supressão do regime de Saddam Hussein, quando o então ministro iraquiano da Informação, Mohamed Saeed Al-Sahaf, explicava que os exércitos do "Leão da Babilónia" se movimentavam astuciosamente "como cobras no deserto". No jogo político do espectáculo e da deixa polida, soa muito melhor dizer ao Presidente, como fez John Kerry, que "não honra ou protege melhor as tropas ao deixá-las em maior perigo".

Libelo

A quem procura um acervo robusto de argumentos consubstanciados contra o currículo da Administração W. Bush, recomenda-se a leitura de The Election and America’s Future (The New York Review of Books) – cortesia do meu estimado amigo A. Pereira.

quarta-feira, outubro 27, 2004

Bem e mal

Para além da inabilidade inicial dos ideólogos da campanha democrata, que outro ingrediente pode explicar a resistência da candidatura Bush-Cheney? O mais obtuso dos maniqueísmos, apelativo o suficiente para abrir caminho, a 2 de Novembro, a mais quatro anos de imperialismo belicista – nem que para tal seja necessário, como indiciam os cachos de sondagens, operar um sucedâneo do milagre da Florida e evocar a jurisprudência do Supremo Tribunal dos Estados Unidos.

A mensagem de Bush, alicerçada no tríptico ideológico "força, carácter e fé", parece ter o condão de neutralizar, nas consciências de milhões de "fiéis" à América castigadora, a capacidade de discernimento. À excepção, até ver, da segurança nacional, principal contraforte da campanha eleitoral de George W. Bush, a Administração republicana semeou erros de gestão e colheu fracassos onerosos nos pilares mais críticos da governança da superpotência – a Política Externa, hoje inseparável da máquina de guerra, e as Finanças.

No caso ulterior, o mismanagement é de tal forma óbvio, que a ideia de um eleitorado pró-republicano consciente e informado não pode ter grande sustentação.

Quando George W. Bush ocupou a secretária da Sala Oval, encontrou um excedente orçamental de cerca de 400 mil milhões de dólares – um quadro de superavit que marcara os últimos quatro anos da Administração Clinton. Rendeu-se ao primado da popularidade. Teimosamente, quando (primeiro) o cataclismo do 11 de Setembro e (segundo) a sucessão de operações militares começaram a desgastar os cofres, avançou com medidas populistas de financiamento a torto e a direito - agricultores, reformados, sistema escolar - e promoveu sucessivas reduções de impostos, estoutras elitistas; sublinhe-se que os contribuintes norte-americanos cujos rendimentos anuais ultrapassam um milhão de dólares (um por cento) sugaram bem mais de um terço dos benefícios daí decorrentes. A 14 deste mês, portanto quatro anos e duas guerras depois (ambas por concluir), o Departamento do Tesouro divulgou os números do défice de 2004: 413 mil milhões de dólares.

Para a contabilidade eleitoral do campo democrata, subsiste um problema essencial. É que ao eleitorado, nomeadamente o eleitorado indefectível de George W. Bush e aqueles norte-americanos que acabarão por votar nele por não compreenderem John Kerry em tempo útil, interessa pouco o significado de um retrocesso de 800 mil milhões de dólares em quatro anos. Interessa, por outro lado, perceber que a inflação continua aceitável, que as taxas de juro continuam reduzidas como nunca e que o desemprego, apesar de os Estados Unidos serem "uma nação em guerra", anda pelos 5.4 por cento, o que, na perspectiva distorcida do GOP e do seu gado, não é mau de todo.

Regressemos, por um instante, à raison d’état e à arte de "cativar, pela manha, o espírito dos homens". No último confronto televisivo com o candidato democrata, em Tempe, Arizona, George W. Bush referiu-se às reduções da carga fiscal nestes termos: "A maior parte dos cortes nos impostos foram para os americanos de rendimentos baixos e médios". Ou seja, mentiu. Ou seja, para além do despertar tardio da candidatura Kerry-Edwards, só a idiossincrasia a preto e branco dos eleitores pró-GOP pode justificar que o mais lamentável Presidente norte-americano da História ainda esteja em condições, nesta altura, de (des)governar a América e o mundo por mais quatro anos.

terça-feira, outubro 26, 2004

Estilhaços

A equipa de estrategos da candidatura Bush-Cheney divisou uma solução interessante para os estilhaços oriundos das ruas poeirentas de Falluja, Baquba ou Bagdade; sobre o amontoar de malogros no Iraque, nem uma só palavra brota dos lábios obedientes de George W. Bush.

É uma solução interessante porque parece ter sido decalcada, pouco imaginativamente, dos bolores da raison d’état. Se pensarmos que o editor Bernardo di Giunta publicou postumamente O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, em 1532, percebemos que não é coisa pouca, esta trasladação secular. Mas os pilares da doutrina aí estão: o objectivo da consolidação do poder legitima o recurso aos expedientes mais amorais, nomeadamente "cativar, pela manha, o espírito dos homens"; para manter a ordem e a reverência para com a autoridade vigente, impõe-se aconchegar os governados nas cobertas da ignorância.

Quarenta e nove recrutas da Guarda Nacional Iraquiana são chacinados por um comando terrorista numa estrada perto de Baquba. Nos discursos de campanha do Presidente norte-americano campeia a omissão. Pouco depois, sabe-se, através do New York Times (confesso sustentáculo do candidato democrata) e da CBS, que a Agência Internacional de Energia Atómica alertou repetidamente as autoridades norte-americanas para a existência, no complexo militar de Al Qaqaa, de toneladas de explosivos vulneráveis à pilhagem infrene; ficamos a saber, ainda, que as chefias militares norte-americanas não destacaram um único marine para o local e que, por essa razão, 380 toneladas de explosivos de grande potência estão nas mãos sabe-se lá de quem. No discurso extenso e enfadonho de George W. Bush em Greeley, Colorado, campeia a omissão.

Ao lado de Rudy Giuliani, antigo mayor de Nova Iorque, o Presidente reproduziu a habitual colecção de chavões e dardos apontados ao senador do Massachussets: "Deixem-nos terminar o que começámos"; "Nos dias bons e nos dias maus, quer as sondagens estejam em alta ou em baixa, eu estou determinado a vencer a guerra contra o terrorismo e apoiarei sempre os homens e mulheres de uniforme"; e por aí adiante.

Os soldados de Karl Rove, conselheiro-mor da candidatura Bush-Cheney, têm resvalado pouco ou nada na campanha eleitoral. O registo do Presidente tem sido néscio, arrogantemente messiânico e patriótico o suficiente para encantar a "América profunda". Mas tem sido coeso e pouco atreito a derrocadas. De tal modo que o eixo da força eleitoral do candidato republicano, a sacrossanta segurança nacional, terá saído intocado dos confrontos televisivos com John Kerry. Como é que se explica, então, que as hostes republicanas tenham deixado o peito do Presidente a descoberto, delegando em figuras secundárias – como o psitacídeo oficial da Casa Branca, Scott McClellan - o "trabalho sujo" do dossier Al Qaqaa? Percebe-se a intenção de manter George W. Bush à tona do charco. Percebe-se também o erro primário, que deixa o Presidente a oscilar entre duas posturas: a fuga e a defensiva.

Entretanto, a candidatura democrata, sequiosa de tudo o que possa desequilibrar a balança do eleitorado a seu favor, capitaliza inteligentemente – até mesmo o confrangedor flip-flopping (expressão cozinhada pela equipa de Bush) de John Kerry tem os seus limites – o aparente estupor republicano.

Kerry resgata Bill Clinton aos pachos pós-bisturi e vira a toxina do medo, que tanto tem verberado, contra o adversário: "George W. Bush fala com dureza e gaba-se de tornar a América mais segura, mas, mais uma vez, falhou-o. Hoje, a América ficou a saber que [os explosivos] desapareceram e podem estar nas mãos de terroristas que podem usar esse material para fazer explodir os nossos aviões, os nossos edifícios, matar as tropas americanas".

A candidatura democrata aprendeu. Tardiamente - teme-se por estas bandas.

segunda-feira, outubro 25, 2004

O factor Deus

Na última das três contendas televisivas entre os candidatos à ufania da Sala Oval, a 13 de Outubro, John Kerry enveredou pelos lamaçais já percorridos pelo candidato democrata à vice-presidência, John Edwards. Transportou para o púlpito a orientação sexual de Mary Cheney, filha do vice-presidente. Não se percebe o fito da opção estratégica. Tal como não se percebe, globalmente, de que é feita afinal a coluna vertebral da alternativa que o candidato democrata apresenta ao eleitorado norte-americano - 217 milhões de cidadãos (dados do US Census Bureau) em condições de optar entre uma ordem mundial apocalíptica e uma centelha de redenção.

O senador do Massachussets saiu de Tempe, Arizona, com uma ligeira desvantagem para George W. Bush – 46-48, de acordo com uma sondagem da Newsweek – e pôs-se a jeito para a injecção da toxina do flanco republicano, que se apressou a denunciar os contornos de "baixa política" de um ardil destinado a minar o apoio cristão evangélico de W. Bush. Agora, a aflitivos oito dias das Eleições, Kerry parece emaranhado numa teia confusa – mais uma, aliás coerente com um currículo de senador... incoerente - de profissões de fé, citações das Escrituras e "garantias" de independência em relação à sua confissão religiosa, a Igreja Católica, a propósito do aborto e da investigação científica com células estaminais embrionárias.

Entregue ao périplo tríplice da derradeira semana de campanha eleitoral – o Ohio, a sensível Florida e a Pennsylvania; no escrutínio, o candidato que conquistar dois destes estados decisivos deverá ocupar a Casa Branca durante os próximos quatro anos -, John Kerry foi a Fort Lauderdale, Florida, com a Bíblia na mão.

"As Escrituras ensinam-nos: Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize [João, 14:27]. O que esta gente quer é que vocês tenham medo. Tudo o que querem é assustar a América", predicou.

Quanto às questões de "fractura", que já lhe valeram a acidez dos católicos mais fervorosos, explicou: "Eu amo a minha Igreja. Eu respeito os bispos, mas discordo respeitosamente [daqueles que pretendem] inscrever toda a doutrina na Lei. Isso não é possível ou correcto numa sociedade pluralista. Mas a minha fé dá-me valores para viver e aplicar às decisões que tomo". Ámen...

Cá temos a política-espectáculo circense dos Estados Unidos em marcha inquebrantável. No âmbito do "canto de sereia" para os eleitores indecisos, absolutamente vital às candidaturas republicana e democrata nesta fase do mano a mano, as acções de campanha de Kerry começam a aparentar um desesperado vale-tudo endereçado a tudo e todos, ao passo que a retórica patrioteira da candidatura Bush-Cheney parece medrar entre os norte-americanos de Stetson à cabeça e Star Sprangled Banner no alpendre, que, desiluda-se a Velha Europa, já não saberão o que pensar do candidato democrata a tempo de lhe confiar o voto.

Porque a substância das propostas e dos programas não dita o resultado das Eleições Presidenciais norte-americanas; prevalecem os chavões, as fotografias, os penteados e a cor das gravatas.

Na prática, as ideias basilares agitadas pelos dois candidatos na derradeira recta são análogas; trata-se de fazer vingar a convicção de que o adversário não está em condições de assumir a liderança dos Estados Unidos e – dossier primordial na corrida à Casa Branca de 2004 - do mundo. O problema de John Kerry é o mesmo de há um mês, altura em que percebeu que a candura da sua abordagem e o grau de consistência do seu Plano para a América não o levariam a lado algum: too little, too late. Não se percebe.

terça-feira, outubro 19, 2004

Perguntas, respostas

- Que diabo é que tu tens, afinal?
- Dói-me.
- O quê?
- Caminhar resoluto na direcção de nenhures.

segunda-feira, outubro 18, 2004

Novembro – o ensejo, a quimera

Eis aquele que esteve a ponto de dominar o mundo. Os povos acabaram por vencê-lo.
Bertolt Brecht

Nota: assim nasce a minha semana, tímida mas substantiva.

quinta-feira, outubro 14, 2004

Sons da manhã

Uma pergunta: haverá algo mais digno do que escanhoar os queixos embalado pelo trabalho das baquetas de Art Blakey em Evidence?

Outra pergunta: poder-se-á classificar como "decente" uma colecção discográfica que não inclua Art Blakey's Jazz Messengers with Thelonious Monk?

If I'm in a joint which is damp, I try to tune them up to a certain pitch where I can hear the sound I want. I don't tune them to any notes. The africans don't tune their drums, and they beat the shit out of them... An african uses whatever sounds good to his ear at that time.

Art Blakey entrevistado por Arthur Taylor (Notes and Tones: Musician To Musician Interviews).

quarta-feira, outubro 13, 2004

Século XII

Já o escrevi, mas apetece-me repeti-lo. As posições do José Saramago oral só não inquinam a arte do José Saramago literário porque há um Prémio Nobel que lhe confere uma blindagem intransponível. A mais recente pérola de intelectualidade exilada foi desferida em Salamanca, Espanha, onde Jorge Sampaio é agraciado com o Prémio Carlos V. Numa troca de impressões com o Presidente da República – e posteriormente ao microfone sequioso da TSF -, o rajá de Lanzarote evocou D. Afonso Henriques; munido daquela ironia poluente e ancilosada a que nos acostumou, advogou o regresso do rei e da sua espadeirada higiénica. Estará já a preparar o terreno para o lançamento da próxima obra, As Intermitências da Morte, que vai burilando no desconforto monástico do exílio. Para cada obra, um disparate. É coerente.

terça-feira, outubro 12, 2004

Ruído

O mais obscuro contraforte do poder executivo, a "central de informação", intensifica, todos os dias, o seu labor. Paulatinamente, transmuda as construções de Abril para um qualquer gaveto arruinado da arquitectura política portuguesa e ressuscita os compêndios do marcelismo, com todas as rupturas, institucionais ou constitucionais, que esse empreendimento ambicioso exige. A verdade inquietante é que os prestímanos do Governo de Santana Lopes, ungidos por uma legitimidade mística – democrática não é, certamente -, impõem, em todas as frentes, uma regressão bem sucedida.

Em dois meses de exercício, o II Executivo PSD-CDS/PP nomeou 806 apaniguados. Destes, 56 foram agraciados pelo ministro de Estado e da Defesa (e dos Assuntos do Mar), 50 pelo ministro da Agricultura e 39 pelo ministro da Saúde. Para quem aprecia exercícios matemáticos, diga-se que são mais de 10 nomeações por dia; em dois meses.

Em dois meses de exercício, o ministro das Finanças dirige-se ao país para explicar que não há folga financeira que permita alterar as taxas de IRS – Bagão Félix promete, somente, mexer nos escalões de rendimento - e vê, daí a umas semanas, as suas posições terraplanadas por um chefe do Governo que, imagine-se, sente necessidade de "explicar" aos governados que é um coordenador de governantes.

Aos olhos do português comum, anestesiado com a morbidez mediática e popular da aldeia de Figueira ou puramente afogado nos ditames do crédito e do desemprego – real ou em forma de espada de Dâmocles -, estas decisões de gabinete, tomadas a coberto de um gigantesco sussurro sectário, são incompreensíveis; pior: inatingíveis. Há, hoje, na vida política portuguesa, uma espécie de exosfera protegida do escrutínio das massas.

Ontem, a "central de informação" fez exibir, à hora do jantar, uma alocução gravada do primeiro-ministro. Quem esteve atento reconheceu, em cada detalhe do cenário e a cada passagem da prédica de Santana Lopes, um revivalismo das Conversas em Família – o tom familiar do chefe do Governo; o sorriso apaziguador; os movimentos resolutos da mão direita sobre a secretária; ao fundo, a fotografia do beija-mão a Sua Santidade; os chavões, as promessas e a demagogia; os avisos-anátemas a eventuais forças de bloqueio, nomeadamente a Presidência da República.

Em Portugal, "a liberdade comanda a vida", proclama o primeiro-ministro. E orienta as peças das canhoneiras para Belém: "Sei muito bem da importância da necessidade de os órgãos de soberania falarem, em nome do Estado, a uma só voz. Como sei da relevância que essa concertação tem na credibilidade externa de Portugal. Uma qualquer descoordenação nas posições dos órgãos de soberania de Portugal é sempre avaliada por outros, não ajudando à imagem do país e à defesa dos interesses portugueses. Pela minha parte, sempre que me pronuncio publicamente, exprimo convergência e nunca divergência com os outros órgãos de soberania. Não tenho dúvidas de que o interesse nacional assim o aconselha".

Sobre o torpedeamento de Marcelo Rebelo de Sousa – físico, por sugestão hipnótica ou maquiavelicamente auto-administrado, desconfio que jamais o saberemos -, o primeiro-ministro ensina que "o que não conta, certamente, são polémicas sobre princípios e regras que não estão em causa". E, contra o "ruído que vai à nossa volta", apressa-se a enumerar as medidas (aflitivamente avulsas) já tomadas - e os resultados obtidos - pelo Governo (menos pelo seu e mais pelo de Durão Barroso): a supressão do Serviço Militar Obrigatório, a substituição das cúpulas da Polícia Judiciária e da PSP na esteira do deboche das "cassetes", a implementação de um sistema de apoio a doentes de cancro, as pensões dos antigos combatentes, as Autoridades Metropolitanas de Transportes e o crescimento das receitas fiscais em sede de IRC e de IVA.

Em 2005, promete por fim Santana Lopes, haverá uma redução das taxas do IRS.

Quando, num profundo drama pessoal, o Presidente da República percebeu a dimensão do deserto socialista e sentou Santana Lopes em São Bento, fez questão de avisar que assumiria uma postura "vigilante"; uma postura atenta a derivas populistas e a abalos das instituições – em linguagem santanista, o "ruído que vai à nossa volta".

Prometedor

«E eram! Eram três arcas de pedra que nos davam pela cintura, ocupando os três lados de uma espécie de alcova tenebrosa. Duas estavam fechadas com imensas tampas de pedra. A tampa da terceira estava encostada à muralha. Baixámos a lâmpada para dentro. Não pudemos distinguir nada ao princípio, deslumbrados por uma vaga refracção prateada que faiscava e tremia. Quando os olhos se habituaram àquele brilho estranho, vimos que a arca imensa estava cheia até ao meio de diamantes brutos!»

in As Minas de Salomão, de Rider Haggard - tradução de Eça de Queiroz.

Nota: há um novo blog.

sexta-feira, outubro 08, 2004

O Sedentário completa um ano

Melancolia, incerteza, obsessão, lágrimas fugazes e lágrimas pertinazes. Feito à pressa e devagar. Feito de pedra, lâminas de xisto escuro. Feito de barro, por vezes de cristal. Cristalizado. Liquefeito. Feito de febres. Feito de espasmos. Moldado. Gravado a cinzel. Desenhado a lápis. Feito com cuidado. Descuidado. Verdadeiro. A ficção e a meia verdade. Tu, nós, eles. Feito de memórias, fugazes e pertinazes. Chorado. Respirado. As ruas, as curvas, as fachadas. Semáforos sem vermelho. Os rostos, o tacto, o abraço. Feito com vontade. Feito sem vontade. Feito de manhã. Escrito de madrugada. Arquivo. Saudade. Feito de folhas soltas. Meu.

quinta-feira, outubro 07, 2004

Meias solas e uma base de pau preto entrelaçado

Uma gotícula de suor translúcido espreita a partir de um poro escancarado ao ar da taberna, no posto fronteiriço a norte de uma têmpora côncava. O antebraço do sapateiro trepa a corda áspera, os dedos pequenos batem-se valorosamente pelo último impulso. O membro superior, forrado com pele de criança macilenta, puxa a corda para sul e depois para sudoeste, quando a gotícula de suor translúcido anuncia o alquebramento do corpo frágil, precipitando-se suíça abaixo. Mesmo assim, o pano eleva-se e compõe um bambolim perfeito. O sapateiro, artífice de minudências inúteis, prende a corda num nó de marinharia memorizado a bordo de uma traineira ancestral; expulsa as arrelias de permeio com uma baforada acre de aguardente e ginja, ancestrais como a traineira da infância, e desdobra a manga ao longo do cúbito. A gotícula de suor mergulha no colarinho. O cenário mostra-se. Há aplausos.

Uma lâmpada coroa uma base de pau preto entrelaçado; acorda sobre as últimas tábuas do palco, aconchegadas por dois tapetes avermelhados. Entre poltronas gastas e moldadas por torsos envelhecidos, uma mesa rasteira com um tampo de vidro empoeirado; sobre a mesa, uma malga com amêndoas rosadas, um embrião de colete de lã, um catálogo de supermercado manchado de café, uma tampa de esferográfica mastigada até à palidez e uma moldura de plástico isenta de rostos nédios de netos crismados, antes embandeirados com vaidade frente aos olhos piscos da florista, semeada entre jarros à porta do cemitério.
...

Se as meias solas o pedissem com insistência, por vezes com requebros de languidez, os sapatos acabavam por cair no interior de sacos de plástico mendigados ao cozinheiro do primeiro esquerdo, de quem se dizia ter as compotas barradas em carcaças torradas de uma ponta à outra da freguesia. Naqueles preparos, entre restos de nêsperas ou louro, os sapatos seguiam rua acima, balançados pelo galope são de um neto por crismar. Aterravam sobre as cicatrizes do balcão, mal refeitos de uma cesariana apressada – o saco de plástico esquartejado a cair com vagar no lajeado da oficina -, e o sapateiro reservava-lhes um olhar estudioso, medindo o alcance dos danos e o capricho de pés disformes imposto às biqueiras.

- Seja – concluía o sapateiro -, nada está perdido. Já de Gaulle dizia – agora entregava-se a uma erudição desdenhosa – que, "fulminados hoje por uma força mecânica, venceremos amanhã graças a uma força mecânica superior". Diz lá à avó que lhe levo as alparcatas amanhã ao fim da tarde.

No léxico do sapateiro, e estranhamente, dado o pendor para as minudências inúteis, alparcata designava galochas e sapatos de salto alto, sandálias e sapatilhas de ginástica, estas últimas exauridas, no salão nobre dos bombeiros voluntários, em saraus de crianças obesas que resvalavam como penedos instáveis após um pino abaulado de encontro ao espaldar.

Aos primeiros sinais do crepúsculo, como ficara combinado, a motorizada do sapateiro tossia à porta da avó, que por essa altura reabastecia a malga das amêndoas antes de temperar bifes para netos quase crismados.

A desdita sobreveio numa manhã de Inverno, o Sol humilhado pelo vento frio. Magistralmente restauradas pelo sapateiro, as meias solas encaminharam-se como sempre para a gravilha espalhada entre campas e jazigos. E quando a avó tombou convulsiva sobre o regador, não havia vivalma a quem gritar por amparo; os rostos nédios de netos entretanto crismados, sorrisos de fotografia para a florista de olhos piscos, de nada lhe valeram. As meias solas regressaram na manhã seguinte, inertes como os pés que protegiam.
...

Apaga-se a lâmpada que coroa uma base de pau preto entrelaçado e a moldura de plástico, estéril, desaparece com a luz. O sapateiro desfaz o nó de marinharia e recorda o marulhar que o embebedava a bordo da traineira. O bambolim desmorona-se. Há silêncio.

quarta-feira, outubro 06, 2004

Vento críptico

Vejo a minha sombra toscamente recortada no topo da escarpa. Subi a passo difícil, os pés sem sustentação no barro exangue de um Outubro tímido. Vejo-me numa procura afanosa. Remexo arbustos, afundo as unhas na terra, procuro um fiapo de água que não a do mar. Quero água sem espuma, sem os rumores insistentes de ondas desfeitas, que me inundam à revelia do meu ser. Não ser. Quero-o.

Vejo o meu corpo vergado de derrota no topo da escarpa, porque dali vejo o tapete poroso. Todo. O todo de um nada.

Nada resta do curso de águas mansas, agora interrompido por um banco de areias despóticas. Até os canaviais se abraçam sem sinceridade, como se o vento saturado de sal fosse um aborrecimento inevitável. Acolá uma trindade de bandeiras vira a bombordo das arestas da escarpa, para longe dos rumores das ondas, para longe da sombra toscamente recortada que acaba de encontrar a resposta entre dois seixos; a última morada de um nada.

sexta-feira, outubro 01, 2004

Frases

George W. Bush: I decided the right action was in Iraq. My opponent calls it a mistake. It wasn’t a mistake. I think what is misleading is [when] you can say you can lead in Iraq when you keep changing your positions.

John Jerry: He misled the American people when he said we’d go to war as a last resort. We did not go as a last resort. And most Americans know the difference.

George W. Bush: Under my leadership, we’re going to win this war in Iraq.

John Kerry: Iraq was not even close to the center of the war on terror before the president invaded it. Saddam Hussein didn’t attack us. Osama bin Laden attacked us.

George W. Bush: They're not going to follow somebody whose core convictions keep changing because of politics in America.

John Kerry: The president has made, I regret to say, a colossal error of judgment, and judgment is what we look for in the President of the United States of America. I would not take my eye off of the goal: Osama bin Laden.

George W. Bush: Of course I know Osama bin Laden attacked us.

John Kerry: We had him [bin Laden] surrounded, but we didn't use American forces, the best-trained in the world, to go kill him. The president relied on Afghan warlords that he outsourced that job to.

Nota: Ao contrário do que aparenta, O Sedentário segue na vereda da verdade temperada.