Prolixo
Desfaço as rugas do cobertor e componho a geometria da dobra do lençol a gesticular o mudra de um actor de Kathakali, o rosto verde e o enfunar das saias reflectidos no vidro morto da televisão, e no minuto herdeiro moldo cinco almofadas cor de sarampo, que disponho sobre o colchão num cerimonial de xamã suburbano. Depois incorporo o espectro da tia-avó, engavetada num ossário esculpido em mármore de Vila Viçosa, e atiro-me iracundo, a lâmina luminosa de um samurai na ponta de uma agulha de barbela, aos remates barrocos de um paramento e ao bico de um ganso em ponto cruz num pano de cozinha; daí que medite sobre as dores na base da espinha e as suas raízes, sobre as virtudes benzedeiras do parto numa banheira de água tépida; daí que cisme nos murmúrios que Oscar Peterson devolve ao trompete de Clark Terry enquanto escreve no piano uma história sobre Delisle Street, em Montreal, e tenha a fé de que ali, na taramela ancestral de um músico cor de café, haja a profecia redentora que me permita esconjurar o espectro da tia-avó, deixar o lençol e o cobertor num desalinho de filho único e principiar, de uma vez por todas, a intoxicação do leitor circunstancial com palavras ocas, homotéticas ou outras, como me explicou Rolin entre dois tragos de café e aspártamo, de forma que não reste pedra sobre pedra, mas antes palavra sobre palavra, e do desenho modorrento do meu bairro nasçam autocarros verdes numa avenida de Tunes e caleches pintadas de nódoas na marginal de Assuão, as luminárias da árvore de Natal do Rockefeller Center na praceta da churrasqueira e o mausoléu de Lénine encostado à Junta de Freguesia.