O Sedentário

segunda-feira, dezembro 20, 2004

Prolixo

Desfaço as rugas do cobertor e componho a geometria da dobra do lençol a gesticular o mudra de um actor de Kathakali, o rosto verde e o enfunar das saias reflectidos no vidro morto da televisão, e no minuto herdeiro moldo cinco almofadas cor de sarampo, que disponho sobre o colchão num cerimonial de xamã suburbano. Depois incorporo o espectro da tia-avó, engavetada num ossário esculpido em mármore de Vila Viçosa, e atiro-me iracundo, a lâmina luminosa de um samurai na ponta de uma agulha de barbela, aos remates barrocos de um paramento e ao bico de um ganso em ponto cruz num pano de cozinha; daí que medite sobre as dores na base da espinha e as suas raízes, sobre as virtudes benzedeiras do parto numa banheira de água tépida; daí que cisme nos murmúrios que Oscar Peterson devolve ao trompete de Clark Terry enquanto escreve no piano uma história sobre Delisle Street, em Montreal, e tenha a fé de que ali, na taramela ancestral de um músico cor de café, haja a profecia redentora que me permita esconjurar o espectro da tia-avó, deixar o lençol e o cobertor num desalinho de filho único e principiar, de uma vez por todas, a intoxicação do leitor circunstancial com palavras ocas, homotéticas ou outras, como me explicou Rolin entre dois tragos de café e aspártamo, de forma que não reste pedra sobre pedra, mas antes palavra sobre palavra, e do desenho modorrento do meu bairro nasçam autocarros verdes numa avenida de Tunes e caleches pintadas de nódoas na marginal de Assuão, as luminárias da árvore de Natal do Rockefeller Center na praceta da churrasqueira e o mausoléu de Lénine encostado à Junta de Freguesia.

sexta-feira, dezembro 17, 2004

Prémio Pessoa 2004

«Dispõe-se agora ao silêncio. Um rasgão dourado, desses que se manifestam após as torrenciais chuvas da meseta, descerrou-se-lhe à esquerda da pintura. Aflora ainda a procissão dos fiéis, mais limpos entretanto da sua miséria, dignos de que por eles haja morrido um profeta intrigante e interpelador. E as brutas mães parideiras empurram as crias idiotas, e fazem com que batam com a testa no andor do Santo, e imploram uma luzinha que cintile nas sombras da bronquidão. Ajoelham por fim, magrinhas e marcadas pelas escrófulas, e prometem em nome do pequeno a quem chamam "Menino Jesus", o qual se baba e se borra ali mesmo à beira, passar uma semana a água-pé e a caroços de azeitona, jazendo naquele chão onde nenhum bicho se deita.»

Mário Cláudio, Gémeos, Lisboa 2004, p. 60.

Nota: descobri a prosa de Mário Cláudio sobre o tampo de uma mesa de sala de jantar, numa casa onde descubro muitas prosas. Esperavam-na três ou quatro horas de bagageira rumo às margens do Gilão. Com a generosidade de sempre, emprestaram-ma. Trouxe-a para casa e devorei-a numa tarde, numa noite e numa madrugada.

quinta-feira, dezembro 16, 2004

Amanhã há mais

Caminhas pelas ruas do teu bairro a gerir o silêncio. Cala-te agora, sossega daqui a pouco, não respondas e aquiesce com um golpe rápido do crânio no sentido das botas, sempre no sentido das botas, que é ao mesmo tempo, não sei se já o expliquei, o sentido do chão. E por isso não incomodas, não interpelas, não questionas, não discordas, não discutes, não contrapões. E por isso todos gostam de ti, como vês. Crês mesmo no ardil das minhas palavras? Caminhas pelas ruas do teu bairro a esculpir gentilmente a gravilha que os passeios tossem para a borda da estrada, a remexer as brasas do medo, que se extinguem volta e meia num fialho de fumo, que levitam à altura do teu estômago e aí ficam a pairar, para o caso de não te lembrares, para o caso de te esqueceres; amanhã há mais, as coisas são o que são e tu já foste mais que isso, essa silhueta alquebrada que pede desculpa às pontas de cigarro, se por distracção as pisa, a centelha minúscula e condenada que lobrigo a ferros nos teu olhos quando me espreitas cabisbaixo do lado de lá do espelho.

quarta-feira, dezembro 15, 2004

Sons da manhã

It doesn't matter how much artistry one has; it's how it's presented that counts. Those who criticize me for playing jazz too simply and such are missing the point; there is a jazz concept to what I'm doing, but I'm playing popular music and it should be regarded as such (Wes Montgomery).

A epifania das seis cordas tocou Wes Montgomery aos 19 anos, em 1943. Ouviu Charlie Christian a tocar Solo Flight e não conseguiu resistir à febre - não pôde sequer ouvir, durante um ano, outro mago que não Christian, como viria a explicar numa entrevista à Guitar Player. Hipnotizado, correu a gastar 350 dólares numa guitarra eléctrica e num amplificador. E daí a 365 dias, no 440 Club de Indianapolis, já falava pelas pontas dos dedos de um extremo ao outro da escala. Em Junho de 1968, um ataque cardíaco fez calar as oitavas; dizem que morreu insatisfeito com a qualidade da sua técnica. Esta manhã, Wes materializou-se num prédio suburbano da linha de Sintra e tocou Twisted Blues com Hank Jones ao piano, Ron Carter no contrabaixo, Lex Humphries na bateria e Ray Barretto nas congas. Bom dia!

terça-feira, dezembro 14, 2004

Instante

Nunca tinha ouvido aquilo; aquilo, dito daquela forma - sem que se lhe visse o tremor repentino de quem acaba de medir o alcance do que disse e não promulga a sentença da fita métrica -, soube-me a recheio de mil-folhas. Jantar à vista, no estertor da semana; fragmentos de ave, amêndoas salteadas de permeio com uma alga, um resto de moliço apanhado no Mar da China Meridional ou no epicentro do sismo à hora da sesta, a sudoeste de Sagres; tanto faz. Espanta-me é que nunca tenha ouvido aquilo, assim dito daquela forma. De telemóvel encostado ao ouvido, explica que vai este, vai aquele, vai aqueloutro e vai o meu Carlos. E eu não vejo como discordar, ou como não gostar de que gostem assim da gente.

segunda-feira, dezembro 13, 2004

Petit plaisir

O frio de um Inverno robusto desce sobre o casario no lugarejo de Mancelavisa. Os cavacos de sobro e pinho estalam a meio da sala de jantar. O Executivo de Santana Lopes perfila-se no ecrã, os rostos graves, os semblantes de ofensa, a pose de Estado e o estado a que isto chegou. O primeiro-ministro aproxima-se do púlpito: "Devemos perguntar porque não foi dissolvida a Assembleia da República quando havia ministros do governo socialista que se demitiam sucessivamente". Então, a panela da tibornada irrompe da cozinha entre vapores com cheiro a alho. Daí a pouco, as lascas de bacalhau adernam nos pratos, a broa mergulha no azeite e o vinho branco escorre dos jarros. E ninguém quer saber o que diz ou pensa o primeiro-ministro.

sexta-feira, dezembro 10, 2004

A caminho


- Olha que aqui faz muito frio.
- Muito frio?
- Sim. À noitinha a temperatura desce aos dois ou três graus negativos. Traz agasalhos.

terça-feira, dezembro 07, 2004

Assoalhadas

Esta casa já não cabe cá dentro, a esquadria branca do estuque a moldar-me as paredes das tripas numa contorção em ângulo recto. Falta-me a moela a sul do papo para triturar os tijolos das divisões e o betão das placas e dos pilares. Tivesse eu a moela - e na moela pedrinhas roubadas aos intervalos da calçada - e não veria no espelho, manhã sim manhã não, a maçaneta da porta da despensa a espreitar de uma narina, ou um fragmento de sanca a despontar entre a unha e o sabugo, ou a meia-lua de um bico do fogão a semear abcessos nas raízes de um molar, às vezes de um incisivo, ou a folhagem de uma costela de Adão a ocupar os folículos capilares, e por isso o pente inepto a tentar arar um risco no crânio ajardinado, e por isso o Substral a mudar-se para o armário da casa de banho. Eu a explicar à médica de família que não há meio de os rodapés me passarem nos rins e ela maravilhada a repetir panegíricos ao viço do meu penteado.

domingo, dezembro 05, 2004

Quatro caminhos

Aqui montaram andaimes com tábuas velhas e sujas de cimento que os pares de botas ásperas poupam por ser domingo, por ser Inverno, por fazer frio, por fazer calor à beira de um calorífero a gás de botija num prédio de esquina, de uma rua com nome de médico, de um bairro bastardo sem nome algum. Aqui adejam farrapos de plástico soprados pelo vento frio que passa entre os dentes de uma boca de cria de ave a pedir o último cigarro do maço; da calçada para o lancil, do lancil para a tampa do esgoto e dali para o nada debaixo do convés de um autocarro azul e branco grávido de apatia repartida por cinco, repartida por seis quando o volante aponta aos cinzentos do subúrbio e o acordar da manobra pinta de cinza o olhar de quem conduz. Aqui não ficou ninguém, filho algum de alguém que tenha escolhido aqui ficar. Se aqui ficam, aqui morrem, aos bocados de passeio em passeio, pé ante pé entre o lixo que não levaram por ser domingo e fazer frio, para não perturbar o sossego dos sais de banho na montra moribunda da drogaria. Daqui não levo nada, a não ser este fio doce de tristeza que escorre rua fora e vai parar à porta da minha avó.

sábado, dezembro 04, 2004

11h30, café de bairro

O meu vizinho arrasta meio pé mastigado pela diabetes. Apoia-se numa muleta oxidada que estala num quase silêncio e range de vergonha alcatrão abaixo; o arrastar da metade de um pé, o clique discreto da muleta, o arrastar da metade de um pé, o clique discreto da muleta; isso e o braço livre num balanço furioso de magala que rende o camarada já dormente entre as chapas rebitadas da guarita. O meu vizinho irrompe pelo café num mostruário de mazelas e num requinte pirotécnico de ais e uis, balidos de carneiro velho, como que lançados aos ventos mornos das grelhas de ar condicionado entre o clique discreto da muleta e o arrastar da metade de um pé ao compasso de Maurice Ravel. Os ossos do meu vizinho rangem de vergonha como a muleta ao acostar no contraplacado da cadeira. O meu vizinho recebe a mulher de braços fechados e vira uma página de classificados com a gravidade de um sacerdote. Hoje comes aqui um bitoque comigo, decreta o meu vizinho sem perceber se quer, realmente, que a mulher coma ali um bitoque com ele, ou se prefere tê-la por perto só para o caso de os bofes tornarem a claudicar à passagem dos mamilos arrebitados da empregada. A mulher do meu vizinho desenha-lhe um não com a cabeça e o pescoço. Metes nojo a um cão, sentencia, para fim de conversa, o meu vizinho.

quinta-feira, dezembro 02, 2004

Inquietação

A ideia de que as vicissitudes do jogo político dos nossos dias pedem menos democracia pode ser permeável ao rebate mais ou menos escandalizado. Mas não deixa de favorecer a reflexão, se passarmos os olhos, por exemplo, pela degradação qualitativa dos profissionais da política que, periódica e mecanicamente, elegemos para a gestão da res publica. Se a ideia é válida para o quadro político norte-americano, também o é para as democracias europeias. Entre as quais a portuguesa, que, 30 anos depois da Revolução de Abril, aparece-nos macerada por uma enfermidade degenerativa que não é de agora, tão-pouco da exclusiva responsabilidade do inenarrável bando que o Presidente da República trata agora de cilindrar, ou de uma única cor partidária obstinadamente inábil; paremos por um instante e imaginemos as distribuições de forças partidárias, nos últimos 10 anos (número redondo), pelo hemiciclo de São Bento: alguém pode dizer, com um pingo de honestidade intelectual, que a inabilidade não é transversal?

É um prurido do espírito perceber que a "desregulação da democracia" (também) está – em maior ou menor medida, consoante os pontos de vista (conservador ou liberal, para usar a terminologia norte-americana) – na raiz deste(s) atoleiro(s). As conclusões que Fareed Zakaria explana em O Futuro da Liberdade provocam isso mesmo: um prurido do espírito, uma inquietação.

Extrapolemos mais uma vez, com todos os prejuízos para o rigor que daí advêm; a verdade é que os partidos políticos portugueses, em particular as formações com vocação de poder são, hoje, meros gestores do curto-prazo, dos interesses corporativos que as chaimites não chegaram a calcar, da conjuntura, da obra pública calendarizada a par de actos eleitorais, da pequena medida de circunstância, normalmente de efeito perecível; constituem-se, cada vez mais abertamente, sob a forma de clãs que protegem os seus, à revelia de requisitos como a honestidade, o desprendimento, a competência, o mérito, a dedicação, o valor intelectual; totalmente incapazes, ipso facto, de formular um único projecto mobilizador que dê resposta aos problemas endémicos que acorrentam o país às "caudas" de tudo e mais alguma coisa. Cada país tem, porém, os políticos que é capaz de gerar.

Dizer-se que hoje, em política, "precisamos de menos democracia" não implica, como escreve Zakaria, "apoiar autocratas e ditadores". Mas a solução terá forçosamente de passar pela regeneração dos "quadros de comportamento", os nossos e os deles.

País adiado

É preciso sofrer de uma forma aguda de demência para sustentar que o Executivo de Pedro Santana Lopes mostrou, ao longo de quatro meses de dislates em catadupa, competência para assegurar o "regular funcionamento das instituições democráticas". E que, por essa razão insofismável, cabe por inteiro à Presidência da República arcar com o ónus e a mácula de uma decisão sem fundamento constitucional. É o que escreve, na edição desta quinta-feira do Diário de Notícias, o jornalista(?) invertebrado que melhor cavalgou a charneca santanista.

O antibiótico para esta bactéria - cuja adaptabilidade às alterações climáticas e às marés é de uma eficácia assinalável, como veremos em breve - vem enunciado aqui.