
Os resultados da primeira cimeira entre a nova liderança palestiniana e o Governo israelita, em Sharm el-Sheikh (Egipto), são assinaláveis e certamente sonoros. Mas não são, pelo menos por agora, mais "históricos" do que os compromissos diplomáticos predecessores; não podem, por isso mesmo, servir de adubo a um optimismo infrene, ou levar a comunidade internacional a acalentar uma esperança desbragada na boa-fé dos beligerantes.
Para além de (a jusante) andar longe de ser inteiramente inaudito, o acordo para a suspensão das hostilidades assumido a 8 de Fevereiro não depende exclusivamente (a montante) da boa vontade pródiga do primeiro-ministro israelita Ariel Sharon e da legitimidade política do presidente palestiniano Mahmoud Abbas - ambas recém-adquiridas e a aconselharem um prudente cepticismo, em qualquer circunstância.
O chefe do Governo israelita já demonstrou à saciedade - ao longo de uma carreira militar e política que compreende as brutais intervenções militares de 1982 nos campos de refugiados palestinianos de Sabra e Chatila, no Líbano, ou a recente construção de um ominoso muro de separação entre Israel e os territórios palestinianos (meros exemplos curriculares seleccionados
ad hoc) - que não é propriamente um candidato, a curto-prazo, ao Prémio Nobel da Paz. Por outro lado, quando, do alto de uma autoridade governativa com escassa expressão prática nas ruas de Gaza, Tulkarem, Ramallah ou Qalqilya – onde impera a lei das AK-47, dos
rockets Katiucha e dos suspensórios armadilhados dos movimentos radicais -, o presidente da Autoridade Nacional Palestiniana proclama "o começo de uma nova era", está a atribuir à reunião de Sharm el-Sheikh um significado no mínimo imprudente.
Ao cabo destes quatro anos da segunda Intifada, é aceitável dizer-se que Israel e a Autoridade Palestiniana estão perante uma oportunidade única - porventura a derradeira - de alcançarem a paz na região. Percebe-se, nas movimentações diplomáticas da Casa Branca e dos seus interlocutores no Médio Oriente, uma vontade renovada de capitalizar o virar de página da cúpula política da Autoridade Nacional Palestiniana. Mas nem o desaparecimento de Yasser Arafat e a subsequente eleição de Abbas para (I) a liderança da OLP e (II) a presidência da Autoridade Nacional Palestiniana, nem a unção por parte da secretária de Estado norte-americana à nova liderança, nem a retórica da declaração oficial de Ariel Sharon em Sharm el-Sheikh – "Queremos conduzir um diálogo genuíno e honesto por forma a transformar estes primeiros passos numa base sólida para os alicerces das nossas relações" - garantem, separadamente ou em cadeia, a prevalência do mais recente acordo do Mar Vermelho. É a História que demonstra a verdadeira medida da fragilidade da diplomacia no Médio Oriente.
O acervo cronológico de malogros diplomáticos é extenso, mas importa citar um punhado deles: 1) Em 1998 Yasser Arafat e o então primeiro-ministro israelita, Binyamin Netanyahu, assinam o memorando Wye River, com vista à implementação dos acordos de Oslo II; 2) Em 1999 - face à paralisia na implementação dos acordos de Oslo – o chefe do Governo israelita Ehud Barak e Yasser Arafat assinam o memorando de Sharm el-Sheikh; 3) Em 2000 a cimeira de Camp David entre Ehud Barak e Yasser Arafat redunda num fracasso e Ariel Sharon, candidato do Likud a primeiro-ministro, passeia-se pela esplanada das mesquitas, em Jerusalém, acabando por levar os palestinianos a lançarem a segunda Intifada; 4) Em 2001 George W. Bush assume a Presidência dos Estados Unidos e Ariel Sharon arrebata as eleições em Israel. As conversações israelo-palestinianas de Taba acabam sem efeitos práticos e o processo de Oslo queda-se congelado; 5) Na sequência de uma série de atentados suicidas perpetrados pelos movimentos radicais palestinianos, Ariel Sharon lança a Operação Escudo Defensivo, dando início à ocupação de territórios sob o controlo da Autoridade Nacional Palestiniana. Por esta altura o Quarteto (Estados Unidos, União Europeia, Rússia e Nações Unidas) torna público o Road Map (Roteiro para a paz), que prevê a criação de um Estado palestiniano independente até 2005.
Estamos, portanto, conversados quanto às virtudes das iniciativas diplomáticas naquela região do mundo. E desta feita, apesar dos sinais positivos e de certa forma encorajadores – a reactivação das representações diplomáticas da Jordânia e do Egipto em Israel é, certamente, o sinal menos importante, quando comparado com os 390 milhões de dólares que Washington se prepara para entregar aos palestinianos -, não há, em bom rigor, razões suficientemente sólidas para abandonar a prudência e crer que o terreno onde se pretende semear a paz deixou de estar minado. Isso mesmo, aliás, acabam por reconhecer as duas partes nas declarações finais da cimeira: Mahmoud Abbas admite que israelitas e palestinianos divergem em "várias questões", nomeadamente "os colonatos, a libertação de prisioneiros e o muro"; Ariel Sharon sublinha que "esta é uma oportunidade muito frágil, que os extremistas vão querer explorar".
O acordo de Sharm el-Sheikh enferma, sobretudo, de uma deficiência inescapável: o livre arbítrio das diferentes facções radicais palestinianas.
Sentadas à mesa das negociações, as delegações israelita e palestiniana firmaram, é certo, um acordo para a suspensão imediata de "todos os actos de violência contra israelitas e palestinianos em todos os territórios". Contudo, se, por um lado, o poder político de Telavive exerce um controlo efectivo sobre os recursos militares do Tsahal, e por isso Ariel Sharon está em condições de assegurar um cessar-fogo, Mahmoud Abbas é, por seu turno, um líder político com um alcance de poder incompleto e pouco sustentado, incapaz, na prática, de exercer a sua autoridade junto de movimentos como o Hamas ou até mesmo as Brigadas dos Mártires de Al-Aqsa, conotadas com a sua própria formação política, a Fatah.
O Hamas deixou claro que não se considera vinculado ao acordo de cessar-fogo logo após a conclusão dos trabalhos em Sharm el-Sheikh. E responsáveis palestinianos, citados pela agência noticiosa Reuters, avançaram que o Hezbollah xiita libanês estará já a procurar recrutar bombistas suicidas para incinerar a suspensão das hostilidades.
Hoje, três dias após a declaração de tréguas, membros das Brigadas Ezzedin al-Qassam, braço armado do Hamas, dispararam granadas de morteiro contra colonatos judaicos de Gaza, o que já levou Telavive a protelar as conversações de coordenação das questões de segurança com as autoridades palestinianas. O caminho, como se vê, é mais que tortuoso.
Poderá Mahmoud Abbas conquistar as facções extremistas para a "causa política" e cumprir a promessa de "uma lei, uma autoridade, uma arma"? Conseguirá Ariel Sharon concluir, contra uma feroz oposição interna – o próprio ministro israelita dos Negócios Estrangeiros, Sylvam Shalom, assume um posicionamento de insubordinação e exige a realização de um referendo -, a retirada unilateral das forças israelitas e o desmantelamento dos colonatos judaicos da Faixa de Gaza e do Norte da Cisjordânia?
As respostas a estas questões ditarão o verdadeiro significado do dia 8 de Fevereiro de 2005.