Hoje é um dia lúgubre como o escorregar de pontas de dedos no nylon e no filamento de prata de um bordão em
Arieta. Hoje cumpro os mesmos trajectos de ontem, mas purgado do conforto de saber que não é dia de
andante nostalgico, e que por isso não devo ceifar os gravetos de três dias na curva caprichosa do queixo em seis minutos e vinte e três segundos - porque o
concierto madrigal para dos guitarras y orquestra não vai além, hoje, de
Arieta e do
andante nostalgico -, que não devo varrer com cerdas e espuma branca os restos de trigo torrado das frestas entre as penedias de molares em seis minutos e vinte e três segundos, que não devo cobrir de ganga as canelas e as rótulas tolhidas de frio em seis minutos e vinte e três segundos, que não devo medir forças com os botões nos punhos da camisa em seis minutos e vinte e três segundos, não os botões principais, antes os botões minúsculos que escondem as bocas de esgoto de sangue venoso nos estuários dos pulsos, complicativos e cerimoniosos, ciosos das suas missões como anões auxiliares de ilusionista. Porque hoje é dia de tudo isto, em fracções eternas de seis minutos e vinte e três segundos, num
andante nostalgico de passeio para passeio, andante porque contínuo, nostálgico porque lúgubre como o escorregar de pontas de dedos no nylon e no filamento de prata de um bordão em
Arieta.
Hoje é dia de adicionar o sopro triste de uma flauta de bisel a uma escala menor a descer trastos em lugar dos degraus de uma cave, às carícias que um pedaço de crina prolonga num violino; mexer bem e deixar apurar em lume brando por seis minutos e vinte e três segundos. Se este tempo fosse outro, hoje seria um dia de caminho-de-ferro, o embalo da locomotiva a rasgar subúrbios até encostar às pontas de cigarros nas calçadas do Rossio, próxima paragem, estação terminal, há ligação com a linha da vida na palma de uma mão terna; dia de procurar o consolo de uma crosta de açúcar num palmier da Confeitaria Nacional, tropeçando como um trambolho nos pombos constipados da Praça da Figueira, iludindo num golpe de anca a velha gemebunda que cambaleia como as aves entre farrapos de papo-seco e excrementos cor de chaimite. Se este tempo fosse outro, acabaria por me esquecer da sopa ao lume, entretido, entre dentadas no palmier, com o desenho de uma letra num quadrado de palavras cruzadas, a flauta de bisel a chiar no borbulhar da água quente como uma sapateira suplicante, o nylon a consumir-se aos poucos numa chamazinha acanhada, um tropel de doceiras de convento aos comandos das gamelas e dos tabuleiros na cozinha, aprumadas para a inspecção como soldados alemães quando eu irrompesse pelas fitas de plástico no umbral.
Estamos sempre ao seu serviço, dir-me-iam.