O Sedentário

segunda-feira, janeiro 31, 2005

Édito

O escriba de serviço vai entregar-se a um estado de hibernação até ao próximo dia 22 de Fevereiro. Sem mais explicações – era só o que faltava! -, adianta-se que a manutenção desta baiuca mal frequentada deverá ser vítima da mais despudorada negligência; os sinais vitais serão ténues, muito ténues.

domingo, janeiro 30, 2005

Interruptus

- Sempre a ler, sempre a ler… Qualquer dia gasta as letras todas! – atira em jeito de faina como quem espera abrótea gorda na volta das artes, muito a propósito do que leio. Pronuncia-se assim mesmo, sem o prólogo de um boa tarde, como está, sem um discreto e cordial desmaio da cabeça – uma cimalha geométrica e desproporcionada como um zimbório transplantado de urgência para o topo de um casebre -, ou um espasmo eléctrico e cúmplice numa das pálpebras - um par de olhos minúsculos por detrás de lentes sujas de impressões digitais e a sombra de uma pala azul celeste cuja cinta, traçada na latitude das orelhas, parece impedir o esboroamento dos parietais.

Decido responder com um sorriso vago, e espero, por essa via, dissuadir o mergulho de mais um engodo. Então, experimento uma desobstrução da laringe quando cuido ficar a salvo e novamente a sós com a página noventa e cinco, à medida que os sapatinhos pretos da criatura somam estalidos de leveza na direcção dos folhados no balcão, a uma distância segura. De forma que torno a orientar as retinas para o parágrafo de Raul Brandão, abortado sem um grânulo de sensibilidade; de forma que fico contente, pois não tarda nada saberei por que motivo a velha Rata da Corguinha, que vive num buraco que empesta a graxa de peixe e a raias escaladas, olha sem um pestanejo as vagas que se despedaçam nos penedos. Depressa compreendo, porém, que os estalidos de leveza ganham alento na rota inversa, acabando por estacar à beira da minha chávena de café.

- Eu cá não gosto de ler. Não tenho paciência, nem tempo… - acrescenta, insatisfeita com os frutos da primeira abordagem. Enquanto ensandeço por dentro, vomito uma rajada de banalidades, explico-lhe que isto dos livros não tem cura, que é um vício tramado, que o dinheiro não dá vazão às crises mais piréticas. Aborreço-a, ao que parece. E por isso desampara-me com a mesma medida de desembaraço que aplicou há pouco. Sem mais demoras, fico a saber que a velha Rata da Corguinha não reage porque o mar levou-lhos todos. Nesta fase, ressequido e estuporado, estou tal e qual a velha a olhar as vagas.

sexta-feira, janeiro 28, 2005

Até logo

Não gostei da tua escolha. Ires assim embora logo de manhã, sem outro aviso que não uma febre obstinada e um rumor cansado a rastejar pelo tubo de um estetoscópio; podia ser um lembrete apontado a fórceps numa viela esquecida de uma página de jornal – Já não me apetece acordar e ficar aqui deitado, hoje não quero sentir os grumos da farinha láctea e por isso não contem mais comigo -, ou um daqueles golpes do olhar que aprendeste a distribuir, da mesa de cabeceira aos pés da cama, para compensar o recato tardio da língua - eu para ali perdido a traduzir-te o mirar e tu a escreveres ensaios sobre as lajes e a giesta sem que se te despegassem os lábios. Nada. Assim não gostei. É que não te assentam nada bem, esses acetinados nédios muito a jusante da mácula, o trapo de linho passado a ferro que as vizinhas, em lágrimas de vinha de alhos e num fungar pronunciado, desarrumam para te examinarem o repouso das pálpebras e a compostura do fato. Preferia ver-te à mesa a encher de pão e vinho a boca de quem aparecesse, a preencher vazios e a aquecer peitos tristes com as tuas gargalhadas; voltar a observar, maravilhado, a arte da tua lâmina descartável enquanto ceifavas os pêlos grossos do queixo sem um floco de espuma, o último centímetro de um cigarro Definitivos a crestar-te o lábio e a chorar cinzas ao domingo de manhã e tu indiferente com um coto de giz entre os dedos, a traçar o recorte das abas de um chapéu numa peça de fazenda. Preferia ser pequeno e caminhar de mão dada contigo na Praia da Rocha, encher um saco de conchas que despejaríamos sobre a toalha numa contemplação enlevada, sentar-me ao teu lado no banco de um autocarro azul perfumado de diesel e ver-te a escolher moedas para o cobrador. Preferia que me guiasses a atenção no corredor de um expresso, estamos na recta de Grândola, aqui é Alcácer do Sal, vê ali aquele ninho de cegonha, já falta pouco. Percebo que já não te apetecesse acordar. Apesar disso, ainda queria que te perguntassem, à beira do teu cárcere de lençóis: E este quem é? E ouvir-te responder por uma vez, o sorriso a acender-te o rosto: É o meu neto.

quinta-feira, janeiro 27, 2005

Auschwitz, 27 de Janeiro de 1945


Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelos e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou então que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entreve,
Que os vossos filhos vos virem a cara.


Primo Levi - SE ISTO É UM HOMEM

segunda-feira, janeiro 24, 2005

Meio-dia e meia

O pulso e a mão de Valdemar formam um gancho de talho forrado a pele desmaiada e pêlos débeis. É nessa ferramenta que equilibra um tabuleiro preenchido com pires, chávenas e pacotinhos de açúcar, trocos miúdos e um saca-rolhas roído pela ferrugem. Valdemar veste uma camisa branca de mangas a meia haste e um par de calças pretas recortadas em poliéster; há nódoas de hoje e de ontem; também as há de outrora, quando perguntaram a Valdemar se seria capaz de resgatar travessas de restos ao papel prensado das toalhas de mesa com o pulso e a mão num gancho assim teimoso e grotesco; há mucos secos que desenham cartografias nos colarinhos e no remate de um bolso costurado ao peito, círculos imperfeitos de tinto da casa, um bago de arroz a carpir solidões e pedaços de pestanas no desterro.

Valdemar administra com presteza as circunscrições da sua potestade, num território que compreende o delta da sopa de feijão e do caldo verde, os cerros acidentados de tachos e testos sobre as bancadas e no mármore velho do lava-loiça, os tufos de musgo debaixo das alpercatas de barro de José e Maria, que patrulham as fraldas de um menino Jesus com um olhar cataléptico, e a cristaleira de pinho onde repousam toalhas, galheteiros e prismas triangulares de palitos.

Valdemar fez do pulso e da mão um gancho quando, pela primeira vez, analisou de entre as pernas da mãe a humidade esverdeada nas paredes e os rostos compungidos dos santinhos na cómoda, alinhados, todos, na direcção da cabeceira para que pudessem fiscalizar a invenção de Valdemar da sementeira à colheita, a primeira apressada e limpa de preparos libidinosos e a segunda prolongada e supliciante. Durante oito horas, urrou desgostoso com o que lhe foi dado a ver, num timbre cavernoso e sobrenatural, acabando por ganhar uma tonalidade de carimbo que muito afligiu as tias e a avó. De tal forma que correram barroca abaixo com Valdemar ao colo, transportando-o à pressa aos cuidados do prior e à pia baptismal, certas de que um banho de cristandade reporia a ordem natural dos tendões e da goela do recém-nascido. Em verdade se diz que a água benta aliviou o fragor dos gritos pedregosos de Valdemar. Mas o pulso e a mão, esses, não desfizeram o gancho disforme, talvez porque na urgência do sacramento as tias e a avó se tivessem esquecido de convidar um padrinho mais próspero que o sagrado coração de Jesus.

O pai de Valdemar, inconformado, ainda procurou corrigir o defeito à revelia da padroeira, a quem as tias e a avó haviam entretanto dedicado uma dezena de velas e terços em sessões contínuas; não logrou outro desfecho que não um acesso revigorado de urros cavos, pois o gancho de Valdemar, mal imobilizado no torno de ferro, resistiu às torções administradas com a turquês.

Valdemar opera a máquina do café, distribui bitoques e jarros de vinho pelas mesas e nunca se queixa, do mesmo modo que nunca estende o gancho de talho forrado a pele desmaiada e pêlos débeis para cumprimentar quem passa, do mesmo modo que nunca deixa de sorrir, como se tivesse esgotado as lágrimas aos cuidados do torno e da turquês na oficina do pai, do mesmo modo que nunca levanta a voz, do mesmo modo que nunca levanta a cabeça.

domingo, janeiro 23, 2005

Nascituro

Observem com atenção os movimentos que ele ensaia à chegada: as costas verticais, o aprumo construído de um nada; o rocio a acomodar armadilhas antes e depois da escadaria de aço esburacado e os sapatos encolhidos de escrúpulo a percorrerem os linóleos e a pedra. Vejam bem aqueles gestos de mancebo incipiente, a reprodução amadora de um temerário. Atentem na voz sumida que desenha um bom dia, como se os dias, por serem os primeiros, pudessem ser bons.

Aquele ali sou eu, avançando em brenha nova trémulo de verdura. Estudem-me, apertem-me a mão direita e sintam-lhe a firmeza calculada num ábaco, a geometria do encaixe; apurem o azimute dos meus domínios e visitem-me; estou já ali, por detrás de um pilar de betão, encaixado numa secretária que não conheço de parte alguma.

Aquele ali, que multiplica os questionários de ignaro, sou eu, preso por uma laçada, perdido nas malhas de um pesqueiro marroquino, achado numa assoalhada protectora, ao abrigo do vento.

Repetem-me que pertencerei a esta ordem, que em breve descreverei rotações e translações, e eu esforço-me por acreditar, palavra que o faço. Desunho-me a depositar, no parapeito da janela, um fragmento baço de crença, na esperança de que passem por ali, cuidado com o pilar, cuidado com o rocio nos linóleos e na pedra, e apreciem a poeira que se liberta da refrega.

sábado, janeiro 22, 2005

Papel

Subitamente, a substância amontoa-se na ponta da esferográfica: os astros e os percursos que descrevem, o que sou, o que fui, os planos, as conquistas, as derrotas e as capitulações, as conquistas que redundam em derrotas, os arqueiros que já diviso no topo dos torreões, apesar de um capítulo que é o primeiro, a perda recente, a arrumação de um vazio e a criação de um novo espaço – que fazer, como reagir -, o estilo, as regras, a semântica, a sintaxe, a caligrafia e a ortografia. Subitamente, um tudo e um todo na ponta de uma esferográfica que ainda se detém por segundos, indiferente à impaciência dos dedos que a transportam ao papel virgem e já esmaecido - o cheiro de um cefalópode que borbulha no ventre de um tacho, a tosse de uma mãe cercada de especiarias e cebola picada, o uivo do aspirador a soprar pelos rodapés. E a meio da página percebo que gosto de escrever no papel virgem e esmaecido, que a ponta da esferográfica desliza com doçura pelas linhas e não importa a desarrumação do que exprimo, o parágrafo lodoso, o bocejo da adjectivação, os medos mais ou menos disfarçados e a promessa de uma sublevação privada que me dizem ser difícil. Importa perceber que a ponta da esferográfica desliza com doçura linha após linha e que gosto de escrever no papel, neste papel, apressado ou com vagar.

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segunda-feira, janeiro 10, 2005

Segunda-feira

Agora o som dolente já me acode
fazendo-se sentir; eis-me descido
lá onde muito pranto me sacode.
Vim a lugar da luz emudecido,
que muge como o mar no temporal
se é de contrários ventos combatido.
Turbilhão sem sossego, de infernal,
os espíritos leva de rapina:
voltando e fustigando-os por seu mal.


Excerto do Canto V de A Divina Comédia, de Dante Alighieri (tradução de V. Graça Moura).

domingo, janeiro 09, 2005

Domingo

Sento-me a uma pequena mesa redonda. Distribuo uma caixa de guardanapos, um cinzeiro e um desdobrável de sumos exóticos pelas tangentes mais longínquas do tampo de vidro e cismo nesta existência de subúrbio, no subúrbio que é a minha existência. Ergo a chávena de café com dois dedos sujos, o polegar e o indicador em tarefas de pinça e os dígitos remanescentes semicerrados como um leque de tia solteira tomada de afrontamentos. Tenho a tinta de um Expresso de véspera entranhada nos sulcos da pele, um negrume de corpo exumado da turfa que agravo de página em página, de domingo em domingo. Porquê?

sexta-feira, janeiro 07, 2005

Sopor

Às vezes acordava num sobressalto e era invadido pela suspeita de que os lápis e as esferográficas, velhacamente mancomunados no ventre de uma caneca de barro, decretavam greves e outras acções de protesto sem gota de mesura. Certa noite, a coberto do edredão e do lençol de flanela, pôs-se à coca a ver se surpreendia sediciosos em preparos clandestinos na mesa de trabalho. Ouviu um rumorejo e esticou de imediato o braço na direcção do interruptor. Sentiu-se aliviado. Sobre a capa do Moleskine que recebera no Natal, um Faber Castell número dois e uma Bic cristal recriavam Tolstoi, ele Nekliudov e ela Katerina Maslova.

quarta-feira, janeiro 05, 2005

Avenida da Liberdade, 170

Ho Chi Minh saúda-me, seráfico e amarelo, quando ouve as três pancadas envergonhadas que os nós dos meus dedos atiram à porta e divisa a minha cabeça a espreitar-lhe os domínios - duas paredes, quatro demãos, cinzento aqui, café com leite ali; um tampo de secretária a sucumbir ao peso e ao aborrecimento de três tomos das Obras Escolhidas e à desordem de um mistifório de quotas e recibos, de cotos de lápis e cinzeiros grávidos, de um telefone sarapintado de baba e uma ruína de pastel de nata.

De esguelha, Ho Chi Minh talha a custo um sorriso por detrás da barba ridícula, e só me ocorre uma malga de arroz branco e um guerrilheiro pele e osso a semear a mina que há-de rasgar as virilhas de um americano. Ho Chi Minh a sorrir daquela maneira, seráfico e amarelo, e a escrever quadras de manjerico no cárcere: É preciso armar de aço os versos do nosso tempo. Seja. Mas não hoje, não agora, que trago o estômago sacudido pelo caminho-de-ferro e começo a medir com languidez os restos de bolo espalhados sobre uma pagela de Che Guevara.

Imprimiram a expressão de aço de Ho Chi Minh no noroeste de uma contracapa vermelho-bolchevique, domada, até ver, por um dos cinzeiros que compõem o tugúrio em que exerce, ele e as demais divindades, a sua potestade. Continua a sorrir, seráfico e amarelo, e rabisca mais um verso nas costas de um bilhete de comboio, ida e volta: Também os poetas devem saber combater. Seja. Mas não hoje, não agora; não eu, que não sou poeta e nunca consegui disparar a espingarda de pressão de ar, os piscos em voos rasantes de pinheiro para pinheiro e o meu dedo a tremelicar de mariquice em contacto com o gatilho.

segunda-feira, janeiro 03, 2005

Dois mil e cinco

Doze uvas mortificadas entre os dentes postiços de um velho baboso; o tasquinhar metódico, o compasso das placas, um par de castanholas movidas a golpes de mandíbula que embalam o rodopiar da sevilhana de plástico no vértice da televisão. O espumante módico de Castela, sumo de maçã reineta a que somaram três lágrimas de álcool e duas medidas de embuste. Dedos reluzentes de gordura roçam bigodes de camarão; o ventre de um pastel de bacalhau a esbodegar-se nos incisivos de uma mulher que transborda da cadeira, um fraguedo de nádegas e coxas polposas; o ventre de um servente de pedreiro a torcer-se de espasmos no sentido do silvado, a sopa quente de vinho tinto e aguardente de mel a trepar-lhe o esófago num urro medonho e o jorro apoteótico a fumegar ao frio. Doze garrafas de cerveja para doze badaladas, um canal de televisão que podia ser aquele ou outro, pouco importa ao jarreta que já dorme a um canto da sala, os perónios descarnados tostados pelo azinho na salamandra e o queixo bordejado por destroços de passas e pevides de melão. Meu amigo Charlie, Charlie Brown; o pandeiro fanhoso a moer o que resta de dois pares de colunas e um comboio de gente ululante a explodir em serpentinas que vão morrer sobre as cascas rapinadas do marisco, a explodir num refrão de amizade a Charlie Brown, a explodir em álcool e arroz de tamboril, a explodir em juras intestinas de amor ao cônjuge e ternura pelo tio manco que deixa pêlos no ralo da banheira e restos de unhas no lava-loiça. Dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um, dois mil e cinco. Paul Gauguin a morrer sifilítico, na página 393, às mãos de Vargas Llosa; o gelo da madrugada beirã a acumular-se na janela e eu em Hiva Oa com Tioka, Vernier, Ky Dong, Frébault e Ben Varney, eu à cabeceira do pintor moribundo porque o frio e a azia do espumante manhoso não me deixam poisar as pálpebras.