O Sedentário

quarta-feira, abril 27, 2005

cinquenta e sete horas

terça-feira, abril 26, 2005

quarto (Ásia Central)


Além, para lá daquele torreão de sacos de plástico e papelão, é Ashkabad, longe para calcanhares dolentes no pano gasto dos chinelos, os meus, encardidos da cera e da poalha que adeja à altura dos rodapés; tão longe que vai para mais de dois sóis e uma lua suja de escapes e tabaco que não somo os meus passos através da depressão aralo-cáspia – e eles a teimarem que é um corredor, que acolá é a sala de jantar, que eu não ando com boa cara -, por onde sopram uns ares mornos de morte entrevada e que vai de uma última ceia a disfarçar buracos na caliça da parede às entalhaduras de tesoura arreliada no móvel de figueira. De forma que não tenho acudido a estas securas da língua – um comprimido ao deitar e metade de outro pela manhã, não se esqueça - no oásis do Murgab, mais ou menos uma gota a pingar da torneira constipada para o extremo de uma pia de mármore e daí para um prato e um garfo, tão-pouco tenho dado atenção à gola de uma camisola de astracã que ando a tricotar para o meu homem, mais ou menos um macacão da Lisnave num corpo só pele e osso, tíbias e perónios terçados, rádios e cúbitos a voltar páginas de classificados em espasmos de hipérbole, e uma cabeça imunda a exsudar azeites para as costas do sofá, um halo de beato pobrezinho na parede que nem água-régia poderia dissolver. Deixo-me estar aqui, entre as aguarelas de suor dos lençóis de flanela e os ladrilhos a preto e branco que emolduram um bidé e um toalheiro de inox, a ver se o Cristo de madeixas cor do milho e zigoma rosadinho acaba de oferecer o bocado de papo-seco ao apóstolo. Aqui, à sombra desta colcha, neste deserto de fronhas e dobras de lençóis e cobertores onde as águas do canal do Caracórum não chegam, comprimimo-nos, o meu homem e eu, pelo menos duas vezes em dois decénios, ele inteiriço e pesado como um tronco de cipreste, somente as ancas afadigadas, a vergar-me as costelas e a babar-se para os sulcos de nojo na minha testa. No fim, uma e outra vez, perguntei-lhe pelo amor e respondeu-me com maus modos, mais ou menos ignoti nulla cupido.

segunda-feira, abril 25, 2005

vinte e cinco

sexta-feira, abril 22, 2005

dezoito horas e quinze minutos


Irrompe das ombreiras do estabelecimento num torvelinho de cabelos mestiços e quebrados, ganchos de plástico purpúreo e eczemas candentes nas azinhagas do nariz; no fundo, nasce ali mesmo como ontem, como na semana passada, como há uma quinzena, que fiquemos todos ceguinhos se assim não foi, os pés atascados numa humidade de placenta sobre o bem-vindo do tapete e a gordura das lentes apontada à eutanásia de uma varejeira choca, velhinha de Inverno, no lilás mortífero do néon. Depois, já de umbigo escorado no bojo do balcão, os bolos de arroz e os pastéis de feijão à sombra dos estampados da blusa, introduz na boca a inteireza de um paralelepípedo de pão torrado e urra um boas tardes entre um esvoaçar de migalhas e uma orvalhada de margarina.

mot du jour - deliquescência



"A man's feet
must be planted in his country, but his eyes
should survey the world".


Fotografia: Bill Brandt.
Citação: George Santayana.

quinta-feira, abril 14, 2005

postal




Escrevo-te esta noite, antes que seja tarde e rumes aos lençóis, para que saibas da minha capitulação ao som das lágrimas no primeiro trecho de Aire Vasco, um pranto em lume brando e a intraduzível ordem cósmica do eco numa guitarra velhinha de Vicente Arias - como se isso fosse crível, lágrimas que se fazem ouvir. Mas estas, digo-to sem me preocupar muito com este tom de delírio do enfermo - que tolice a minha, estarás já a pensar -, ouvem-se muito bem, chegam-me de um canto do quarto; de tal forma que largo a vê-las, sem uma ponta de névoa, a espreitar dos olhos cegos de um menino de Villacarrillo, o próprio Jiménez Manjón a dedilhar uma tristeza resignada aos pés da minha cama, numa ponta do edredão, o compasso dos pés descalços nas franjas do tapete e o vergão ao extremo dos lábios de quem me adivinha as manhas do pensar; e levam-me, o som das lágrimas e este Manjón que hoje jantou cá em casa e comeu duas taças de morangos, a uma mesa de uma casa de chá, não importa em que arco de meridiano, à tua presença tão doce e aos gestos do teu pulso de boneca enquanto desenhas espirais vagarosas no chocolate quente e reinventas o meu mundo com um sorriso maroto e o escorregar de uma meada de cabelo. Uma soma de redenções iguais, Aire Vasco aqui ao lado, à esquina das onze e meia, e a tua mão amiga a descansar de quando em vez na timidez do meu braço, eu para ali retesado de vergonha, aflito por não conseguir explicar que gosto muito de estar assim contigo, e o sol a despontar das tuas pestanas. Queria dizer-te isto. Dorme bem.

terça-feira, abril 12, 2005

intellectu

«O sarcolema tem ao longo da sua superfície muitas invaginações tubulares chamadas túbulos T ou transversais, túbulos regularmente dispostos e que se projectam para dentro das fibras musculares e se enrolam em torno dos sarcómeros, na região onde os miofilamentos de actina e miosina se sobrepõem. O lume de cada túbulo T está preenchido com líquido extracelular e, sendo invaginações do sarcolema, é contínuo com o exterior da fibra muscular. Suspenso no sarcoplasma, entre os túbulos T, está um retículo endoplásmico liso altamente especializado, que se chama retículo sarcoplásmico ou sarcoplasmático.»

Rod R Seeley, Trent D. Stephens, Philip Tate – Anatomia & Fisiologia, Lisboa 1997. P. 300

Nota: admirável, a cabeça em apreço.

segunda-feira, abril 11, 2005

barracão (Pequeno Cáucaso)


Aqui e acolá, entre a nascente e a embocadura do quintal oblongo ou no aconchego morno das assoalhadas, havia fardos de cartão canelado e múmias de papo-seco amortalhadas em serapilheira; às vezes alhures, numa margem por cartografar do lago Sevan, secretamente apontada a esferográfica vermelha no dorso de um bilhete de comboio - a cruz de um tesouro de corsário a sul de Dilijan -, ou num casebre remoto de Etchmiadzine, a menos de uma hora dos Quatro Caminhos, isto quando a carreira cento e cinco para o Monte Abraão aportava à tabela nas poças inquinadas que embebedavam pardais perdidos, às vezes moscas e, dizia-se que ao meio-dia de um certo domingo de ramos, uma rã trazida pela cacimba. Desvendávamo-los, os fardos e as sacas febris de bolor, na despensa, a perfumar cestas de batatas greladas e cachos de cebolas que pendiam dos extremos das sancas como lustres de cristal entre seda babada por aranhiços de rés-do-chão; a doçura vaga do cheiro a cartão orvalhado, a restos de favas e bacalhau com natas, a notas de vinte escudos emparedadas em latinhas de fermento, nas traseiras de esfregões de palha de aço e de barras de sabão azul e branco, à melancolia das nódoas de sopa numa gabardina de pobrezinho, num macacão da Lisnave. Também os víamos a espreitar tornozelos da escuridão intangível, debaixo das camas e atrás das rendas nos cortinados, encostados ao bidé e ao armário das toalhas, à entrada de um quarto bafiento e à saída da sala de jantar. Era, porém, na ilha de Aghtamar, quando o cimento dos muros do quintal convergia numa costela-de-Adão moribunda, sob a sombra de um alpendre de poliestireno, que o cartão forrava, inteiriço, as paredes cor de adobe de um templo erigido contra a sanha do senhorio e dos fiscais da junta de freguesia. Ali, entre as paredes de Santa Cruz, escondiam-se relicários de revistas porcas e sortidos de parafusos, caixas de ferragens e tornos a descascar de ferrugem.

sexta-feira, abril 08, 2005

cozinha


In illo tempore, dos reposteiros de uma camarata de trindade aos autos de fé das iscas nos bicos do fogão, em verdade se dizia, no rumorejo de vizinhas e primas, que as ruínas de óleo tisnado nas paredes da frigideira eram como alcantil de xisto que naufragava no Mondego entre a marinharia minúscula dos alfaiates e as escamas dos barbos. E se aos gemidos dos fígados nas ardências dos óleos sucedesse um casal de rabanadas, cantet nunc aula caelestium, gloria gloria in excelsis Deo, certo era que os esguichos varonis das gemas acudiam trigueiros ao sorumbático pontificado do breu. Ei-los então, os açúcares da natividade, não somente acamados sobre a crista do galo de Barcelos que um operário pequinês desenhara no porão de uma travessa de majólica a martelo, antes ubíquos como as pagelas e os calendários dos pastorinhos em genuflexão temente.

Ficaria por aclarar a justaposição de um autocolante de serralharia aos fulgores paranormais da cabeça da virgem, que empalidecia numa piedade comovida quando os lençóis eram içados nos cabos de aço do quintal, o sol por detrás da flanela a acender os gerânios e os pés de hortelã nos canteiros de cimento, enquanto os céus tipográficos da Cova da Iria anunciavam saraivada depois da brisa. Isso e o par desirmanado de chinelos que varria o cotão de rodapé em rodapé, agora um prato e depois um pires baptizado à pressa no preparado de saponária, também a lanugem que teimava em medrar entre o brilho de um muco eterno nas narinas e as gretas de um lábio violáceo, ou a lagrimazinha tímida que ondeava pela pálpebra sem chegar a cair.

quarta-feira, abril 06, 2005

Tu


Uma circunferência negra a oferecer amparo a um prato e um par de talheres, dois olhos envergonhados e o cabo polposo de um nariz, os meus, desenhados de minuto para minuto na lâmina dentada da faca, a golpes de luz e vento; uma coluna de betão gris, uma montra diáfana, mesas de um extremo ao outro da sala, para lá do presente do indicativo, para lá da silhueta vergada de um eu tolhido e recortado em vidro fosco; quatro mastros, as bandeiras batidas de ar a meio da subida. A leste, a ocidente; a sul a circunferência a tornar-se um disco de vinil e a ponta da minha unha a ler Debussy num embaraço de menino, a arrastar-me pelos sulcos num acorde menor, numa fuga sem sentido e condenada. O âmbar dos teus olhos prendeu-me há muito e já não tenho por onde escapar; daí que sossegue as retinas no teu sorriso, na rebeldia do teu cabelo, e cuide ver-te cá dentro, uma vez mais, a desbravar um silvado de medos e silêncios.

terça-feira, abril 05, 2005

a pergunta

Para quê?

domingo, abril 03, 2005

sala de jantar


Havia pó velho no móvel de figueira. Sobre o pó, no hemisfério norte de um mundo de caprichos inúteis, duas garrafas de vidro espesso copadas à cinta em redor do licor de ginja, numa, e da aguardente de mel, na outra; pó da mesma idade no bojo e no pé de um cálice carmesim, o carimbo de um polegar aposto ao vidro que se eternizava na direcção das rendas sujas nas cortinas, folhagens e trepadeiras de agulha de barbela; os olhos vagos na cabeça de gesso de Herculano, os braços em nenhures, somente um peito de rola a finar-se quadrado à altura do pâncreas, entre uma caixa de latão e um baralho de cartas – vietnamitas de peitos miúdos e grandes dentes flavos no avesso das copas e domésticas polacas de quadris canelados e unhas flamantes no avesso dos paus, carícias do verniz vermelho sonhadas com suores prodigiosos e intumescências nocturnas, ao abrigo dos lençóis. Havia, nas prateleiras da metade inferior, os cisnes de vidro, a terrina em forma de sargo e entalhas de um descuido doloso de tesouras em mãos de filha colérica; um romance virgem de escritor menor, velho de tempo como o pó sobre os veios da madeira, um transístor descoroçoado, um caderno de quadrículas com contas de somar e números de telefone, os quatros e os noves quase iguais, o um reduzido a uma pestana caída no papel e o oito duas circunferências de gelatina que se esbodegavam.

Havia pó na mesa em castanho velho e, sobre o pó, velho como o castanho, mais velho que o móvel de figueira e o livro esquecido, um naperon dobrado ao meio, esmagado por sacos com carros de linhas e botões, uma tigela com figos, uma jarra de gladíolos de plástico, um cinzeiro e torres de revistas. Havia três cadeiras, duas encastoadas pelos anos no rebordo do tampo, a dois palmos da claridade de croché que, ao meio-dia – um silvo aflito da sirene dos bombeiros de Queluz no telhado do quartel, dir-se-ia que aí vinham as hélices da Luftwaffe, rasgando já as nuvens sobre os arcos do aqueduto -, rompia da janela em tríptico; uma camisa de flanela nas costas da cadeira mais sombria, sobre um pó velho como o castanho da mesa e o pó velho no móvel de figueira. Havia um homem sujo, da cor das rendas nas cortinas, sentado no extremo de um sofá forrado a napa creme que escondia as varizes da tinta azul no estuque, a dois palmos do rodapé como as cadeiras a dois palmos da luz; dormia de pálpebras descerradas num ensimesmamento vítreo e libertava um cheiro doce a lixo e a papelão molhado; no céu da parede, em torno da cabeça amodorrada, desenhava-se, a fulgorar de gordura, um halo de profeta.