O Sedentário

quinta-feira, junho 30, 2005

dois anos



Fotografia: Henri Cartier-Bresson - México, 1964.
Fonte: Peter Fetterman Gallery

quarta-feira, junho 29, 2005

das virtudes do coitus interruptus



..."relações corporais
sem dimensão espiritual
porque o amor e o compromisso estão ausentes"...


O tema da educação sexual nas escolas traz a rapaziada da batina e do solidéu a coçar-se de preocupação. Daí que a Conferência Episcopal Portuguesa - esse conciliábulo de ascetas cuja produção filosófica, imemorial, tem escorado o progresso do rebanho católico e das reses tresmalhadas - tenha entendido remeter ao Ministério da Educação uma "nota" sobre os perigos de uma educação sexual, digamo-lo nestes propósitos, licenciosamente irresponsável.

Vamos lá ver, então, de que é feito o catecismo sexual – poder-se-á escrevê-lo assim? - do bispado. A saber: "A educação da sexualidade não se resume a mera informação sobre os mecanismos corporais e reprodutores, como tantas vezes tem acontecido, com vista a prevenir o contágio de doenças sexualmente transmissíveis e o surgimento de gravidezes indesejadas". Pois. Convém que não se quede por aí. Prescreve, por isso, a Igreja Católica que "a educação para a sexualidade deve basear-se nas necessidades dos alunos". O que, como todos nós, pecadores, sabemos, é capaz de não ser, por si só, o melhor receituário para incutir a tal responsabilidade sexual nas libidos tumefactas dos nossos adolescentes. A não ser que a Conferência Episcopal Portuguesa, munida desses tratados científicos a que normalmente se chama encíclicas e evangelhos – e composta por peritos reputados nas questões do sexo -, saiba o que vai nas cabeças da miudagem. Não sabe. Não quer saber, sob pena de ter de fechar a casa para trespasse.

Na letra da "nota", uma educação sexual levada a efeito nos temos acima descritos "deturpa o sentido da sexualidade, isolando-a da dimensão do amor e dos valores, e abre caminho à vivência da liberdade sem responsabilidade, pela ausência de critérios éticos, e à aceitação, por igual, de múltiplas manifestações da sexualidade, desde o auto-erotismo à homossexualidade e às relações corporais sem dimensão espiritual porque o amor e o compromisso estão ausentes". Aí estão, mais uma vez sem surpresa, os inimigos da felicidade do bom católico: o onanismo; a homossexualidade; as relações sexuais sem amor ou compromisso, leia-se à margem do matrimónio. E a educação sexual, enfatizam os bispos, é, em primeiro plano, uma responsabilidade dos pais, a quem, na sociedade obtusa e monocolor idealizada pela Igreja de Ratzinger, deveria caber a tarefa de "acompanhar o processo de tomadas de decisão, incluindo a selecção e formação dos professores".

Temos, pelo exposto, que para a Igreja Católica a responsabilidade da educação sexual dos adolescentes deve continuar, em grande bitola, a recair não só na verve de colegas de carteira chicos-espertos, mas, sobretudo, nas editoras de revistas e filmes pornográficos, ambos adquiridos à socapa no quiosque ou num clube de vídeo de vão de escada. Em qualquer dos casos deverá ficar salvaguardada, claro, "a sensibilidade e a dignidade dos alunos", para empregar a terminologia da "nota".

terça-feira, junho 28, 2005

instantâneo 2

Tem graça lembrar-me agora de uma lâmpada pisca a acender e a apagar o estuque do centro de dia, agora a sombra de um globo de vidro a alagar a parede numa alegria de consoada e daí a instantes o vazio da tinta de água na telegrafia gaga do casquilho constipado. E já que hoje acordei para aí virada, tem graça lembrar-me, também, das nódoas de café com leite e suor na bata azul grumete da Celeste - varizes como os Hermínios nas pernas e um torreão de malgas de alumínio nos refegos de um braço, ao passo que a mão livre ia enxugando com um lenço de papel os regatos de baba e letrinhas de massa aos cantos das bocas de velhinhos a esboroarem-se de cicatrizes e vincos.
- Ai que menino tão porco que o senhor Martins me saiu – ralhava a Celeste através das dedadas e das pestanas maduras fossilizadas nas lentes.
Certa vez, ao finar de um caldo de galinha, portanto a caminho de uma folhita de pão-de-ló que se me pegava às fendas das placas, a Celeste tentou levar-me a crer que esta minha carestia de gente na saleta do croché, vamos supor um fim de tarde numa assoalhada de rés-do-chão e chinelos de pano apontados à resistência candente de um calorífero, seria ocasionada pela pontinha de azebre que gosto de trazer à beira da língua. Tem graça lembrar-me disto agora, quando me apetece tanto fechar as pálpebras e cessar de respirar com o pesponto abandonado entre as artroses dos dedos.

quarta-feira, junho 22, 2005

instantâneo

Nem sempre consigo desfiar o que murmuram por entre lábios franzidos de segredo, mas percebo que sou eu a razão por que as crianças contorcem as sobrancelhas num pranto de horror. Quando o suão do Pendão inverte a marcha, invadem-me fragmentos de ameaças, ecos subjacentes no cais da estação ferroviária, sussurros de mães untadas de loções e pigmentos em redor das ramelas que o galope próximo das carruagens emudece em crescendo; ainda assim chego a compreender que posso vir a ser evocado a uma mesa de cozinha, instado a administrar judiciosamente o terror bíblico no vermelho hemorrágico das minhas íris, ou no desmaio cromático da minha pele de leite.
- Vais comer a sopinha de feijão verde até à última vagem – ouço-as decretar. – Ai se vais! – insistem. – De outro modo vou ali chamar o albino, que há-de levar-te para um buraco escuro.
Fico, pois, para ali a aguardar o silvo das portas e o estalinho seco do obliterador no primeiro s de Rossio, a conter os mesmos redemoinhos das tripas que, na idade das sopas de feijão verde, sentia acumularem-se no piloro, quando o meu pai me apontava a unha suja e lançava lamentos aos olhos mortiços da minha mãe, consagrados ao detalhe imorredoiro de um loendro bordado.
- É mesmo um imprestável, este pó de talco! – e eu a procurar desaparecer numa página do missal. – Ouviste, pó de talco? – insistia o meu pai a agigantar-se de desdém, enquanto eu me imaginava um pároco em tafetá e erguia, na ponta dos dedos, uma bolacha de água e sal frente a uma assembleia de bichos da seda sobre folhas de alface.
- O corpo de Cristo.

terça-feira, junho 21, 2005

do significado de Summer Sketch

Inteireza. Duas vezes, a inteireza. No alto de uma arriba que nasce da areia distante - a vertigem das balaustradas da praia da Aguda sonegada aos olhos que choram sal - experimenta-se uma inteireza. Nem sempre. Duas vezes, apenas.

Uma vez: um dia sentámo-nos no desconforto das vertentes de dois rebos, numa quelha de terra e saibro, secreta pela metade – a luz denunciava-nos aos excursionistas de domingo e aos namorados mais ou menos adúlteros a espreitar, pasmados de lugares-comuns, a espuma das ondas no miradouro, a pouca distância do nosso casulo de erva seca e salitre -, e havia um sol que não era bem de inverno, um cinzento de múmia nos extremos dos dedos, e nem sequer chegava a roçar os suplícios do verão, a roupa pegadiça e um lustro de azeite a dourar as têmporas. E havia um vento macio que nos despenteava numa teimosia de filho único, o que, lembro-me de anotar em silêncio, fazia das espirais do teu cabelo um bocadinho de mar canelado a serpentear de encontro a uma tela azul, de permeio com um cheiro de búzios que me chegava da metade molhada do areal, lá em baixo. Compus três acordes trémulos, ouvi-te dissertar sobre os cambiantes que o sol ia impondo aos meus olhos e entendi guardar cá dentro a verdade sobre essa paleta de verdes e castanhos, que, aproveito para to revelar agora, é ditada pela medida de ternura e não pela decomposição espectral da luz solar. De forma que saí dali cheio de qualquer coisa que me acendia o peito e adoçava a língua. Inteireza!, desvendei mais tarde debaixo da dobra do lençol.

Outra vez: a contas com o medo de estragar o instante, não volvi aos rebos durante mais de um ano. E olha que em tempos de barba tímida, do alto daquela arriba, na segurança morna da solidão, havia descoberto, por exemplo e entre outras experiências religiosas, o epitáfio de Sansão Carrasco para D. Quixote.

«Yace aquí el Hidalgo fuerte
que a tanto estremo llegó
de valiente, que se advierte
que la muerte no triunfó
de su vida con su muerte.
Tuvo a todo el mundo en poco;
fue el espantajo y el coco
del mundo, en tal coyuntura,
que acreditó su ventura
morir cuerdo y vivir loco.
»

Depois cansei-me de andar cansado, guardei uma certa fotografia num envelope e, um dia, tornei a sentar-me de olhos pousados ora no Atlântico, ora no rebo ao alcance de um abraço no vento vazio. Dessa vez, na tua ausência, coube ao trompete de Chet Baker em Summer Sketch – no egoísmo dos auriculares, uma carícia de mãe a esconjurar a melancolia cabisbaixa do piano de Russ Freeman - devolver-me a paz da inteireza, essa mesma que procuras trazer-me por estes dias.

sexta-feira, junho 17, 2005

secundum legem


- Faço votos para que conte muitos! – proclama-se aqui perto sobre um bocal babado, no superlativo de uma solidão de velhos.

No extremo da mesa um pires em flor, as pétalas numa desordem mundana de guardanapos de papel estropiados e o farrapo de um pacote de açúcar. Do lado de lá, encerrados numa voz de transístor que mal se distingue, ossos como esponjas secas e o miasma de bofes cansados a extinguir chamazinhas de velas entre creme branco e maçapão – muitos parabéns dona Conceição. Aqui, outra coisa: o perianto de porcelana sobe e desce uma, duas, três vezes sem que se consume o beijo de lábios desenhados a lápis de cera da cor dos joelhos de Cristo num Gólgota de altar, apenas uma emanação de ópio de pobre, café curto, nas lentes em meia-lua sobre o cabo do nariz.

- Vais aonde? Ao santuário? Aqui vai chegar aos trinta e cinco graus, pelo menos foi o que disseram – prossegue, a chávena suspensa entre a fealdade das artroses.

Que o diga o infante, de bigode ao sol numa proa exígua em pedra de lioz.

- Hoje estou bonita. Não estou, Augusto? Diz lá que não estou bonita...

E roçaga-se nas espaldas de alumínio, lancetando retinas com uma blusa de hipérbole, uma cameleira trôpega de chapéu de ráfia sobre galhos de cabelo tingido. Numa aresta da mesa, a naufragar no colarinho da camisa, o Augusto aquiesce e conta os contentores amontoados num convés que atravessa o Tejo.

quinta-feira, junho 16, 2005

definição

Tu és o trompete de Chet Baker em Summer Sketch, ou, por vezes, o piano de Russ Freeman em Lush Life.

Adenda: sossega. Hei-de explicar.

quarta-feira, junho 15, 2005

terça-feira, junho 14, 2005

prorrogar




E em noites como esta, ao retinir de sinos de ferro e apelos surdos de tambores, até as mulheres velhas abririam ao céu as suas coxas engelhadas. A dançarina voltou a cabeça, as suas sobrancelhas arquearam-se em arco-íris e os montes e arroios dela revelaram-se claramente aos olhos de Egbo.

- Como um rio que se distende sobre frescas colinas de inhame.


Descubro a África de Wole Soyinka no desconforto bípede de uma carruagem suburbana; suores e vidros baços de hálitos, mistifórios de peles, pregas, vergões purpúreos de fronhas vincadas e papos mortiços nos parapeitos dos olhos; íris esmaecidas de pracetas sem ciprestes, bétulas e amores-perfeitos em canteiros de paralelo e cimento; um parágrafo para cá e para lá numa bissectriz dos carris, a caminho de prédios e muros de tijolo em carne viva, paredes benzidas de urina e um cheiro a dispensário num vestíbulo que definha.

Próxima paragem: os ouvidos de Dehinwa castigados; a mãe reprova-lhe a relação espúria com um homem do norte, um interdito, um Gambari.

«Não trabalhei como uma escrava para te mandar para Inglaterra, nem puxei os cordelinhos para te conseguir um excelente lugar junto do Senior Service, para no fim me dares uma neta Hausa

Não é por causa dessa espécie de untura celestial de um Nobel de Literatura (1986) que aprecio a prosa de Soyinka – africano de Abeokuta (Oeste da Nigéria), dramaturgo, poeta, romancista, ensaísta. Sei que gosto da prosa da Soyinka porque não consigo deter-me num ponto final sem experimentar esta sensação de tempo desperdiçado com livros que não o mereceram, bocejos penosos da obrigação – obstinada e obtusa, reconheço - de chegar ao fim. No caso de Soyinka, chegar ao fim é um exercício de melancolia; o fim é para ser adiado até às raias do tolerável.

Epígrafe: Wole Soyinka - Os Intérpretes.

segunda-feira, junho 13, 2005

Álvaro Cunhal, 1913 – 2005




«Donde nos vem a nós, comunistas portugueses, esta alegria de viver e de lutar? O que nos leva a considerar a actividade partidária como um aspecto central da nossa vida? O que nos leva a consagrar tempo, energias, faculdades, atenção à actividade do Partido? O que nos leva a defrontar, por motivo das nossas ideias e da nossa luta, todas as dificuldades e perigos, a arrostar perseguições, e, se as condições o impõem, a suportar torturas e condenações e a dar a vida se necessário?»

«A alegria de viver e de lutar vem-nos da profunda convicção de que é justa, empolgante e invencível a causa por que lutamos.»

«O nosso ideal, dos comunistas portugueses, é a libertação dos trabalhadores portugueses e do povo português de todas as formas de exploração e opressão.»

«É a liberdade de pensar, de escrever, de afirmar, de criar.»

«É o direito à verdade.»

«É colocar os principais meios de produção, não ao serviço do enriquecimento de alguns poucos para a miséria de muitos mas ao serviço do nosso povo e da nossa pátria.»

Álvaro Cunhal – O Partido com Paredes de Vidro. Lisboa 2002 P. 31

Nota: morreu um líder, o líder do meu Partido, que não logra – não quer – mitigar a orfandade. Morreu um eterno prisioneiro político, incapaz de se libertar da disciplina da clandestinidade - da couraça daqueles que resistiram e sobreviveram à tirania dos algozes do fascismo - mesmo quando os ventos da História vieram impor um repensar dos alicerces ideológicos, a reavaliação dos objectivos, a readaptação de uma estrutura partidária a apodrecer de anacronismo. Morreu um artista, escritor, desenhador, pintor. Acreditou, até ao fim, no testamento político aqui citado. Creio, por isso mesmo, que deve ter partido com tristeza – e é isso que me traz, hoje, enquanto comunista, profundamente comovido. Morreu um derrotado.

domingo, junho 12, 2005

1922 - 2005


«Para mim é gratificante o facto de ter despertado sentimentos tão contraditórios, porque isso significa que a política de que procurei ser obreiro estava (e está) no caminho certo da libertação das classes mais desfavorecidas da nossa sociedade, dos pobres, dos humildes, dos explorados e dos que não têm voz, embora muitos, talvez a maioria, não tivessem consciência disso. E estava no caminho daqueles que, não pertencendo às classes mais desfavorecidas, se identificavam com os seus interesses e as suas justas aspirações, que estavam com os interesses da nossa pátria, que é o nosso povo.»

«Amado por uns... odiado por outros... Como poderão gostar de mim os grandes senhores do dinheiro, os homens dos grupos económicos e suas clientelas, os latifundiários, etc.? Há mais de cento e cinquenta anos, já Marx ensinou que as ideias dominantes são as da classe dominante. Quanto a ser simplesmente ignorado, isso tem a ver com a limitada consciência política da nossa população.»

Vasco Gonçalves

Maria Manuela Cruzeiro – Vasco Gonçalves - Um General na Revolução. Braga 2002 P. 293

sexta-feira, junho 10, 2005

medida de contentamento




A matriz: encontramo-la no ocaso dos anos quarenta, em Nova Iorque; o saber de divindades de altar como Charlie Parker e Dizzy Gillespie nos clubes de Jazz do Harlem, ou, noutras paragens da arte, dos magos das bandas de José Curbelo e Tito Rodríguez, entre os quais o conguero Mongo Santamaría - a cadência açucarada do curtume cubano nos nós dos dedos e nas palmas das mãos. A mesma carta geográfica, somados vinte anos: Ray Barretto, ungido pelos melhores entre os melhores, cria uma jóia do Jazz latino a que dá o nome de Acid. Decorridos trinta e oito anos, num subúrbio cinzento de um país no sul da Europa - em dia de A Portuguesa, medalhinhas e comendas -, entre a brancura do estuque de uma assoalhada, ressoam os trompetes de Roberto Rodríguez e René Lopez, os timbales de Orestes Vilato – cuja mestria está na gestão dos silêncios e nos excessos que subtrai aos temas, como muito bem assinala John Armstrong na edição dupla de 2001 de Acid e Hard Hands - e as congas de Barretto.

Fotografia: © Sophie Le Roux

quinta-feira, junho 09, 2005

أخي العزيز


Lembras-te? Três horas da madrugada num hotel à beira de Quéops, Quéfren e Miquerinos, um palácio esdrúxulo de mármores e dourados, tafetás e estátuas de núbios em gesso ou cimento, um piano de cauda em branco-noiva e o carmim adocicado da água de rosas – o poema intraduzível de um trago de Sakara Gold à temperatura de Krasnoyarsk. De seguida as gargalhadas nas vozes gastas que o ar condicionado ajudava a desbastar, a privação indolor de sono e o casco azul do Achille Lauro na surpresa de um filme em arábico.

- O que quer dizer rabash? – perguntámos a Mohamed à sombra dos abutres de um qualquer templo.
- Dirty! – explicou-nos a transpirar estranheza.

Lembras-te destas coisas? Um minarete grávido de luzes anãs numa margem do Nilo, um muezzin roufenho e melancólico a prostrar-nos sem apelo sobre o vermelho da alcatifa e a brisa morna a profanar-nos as gilabas no tombadilho.

Adeja por aí a teoria de que a irmandade nasceu ali, cozinhada a quarenta graus numa caleche suja de Assuão, o cavalo de Ali a arquejar avenida acima de ossadas em riste e as barrigas das pernas de dois anjos a luzir como o ouro de Tutankhamon. Creio que não. Lembro-me, antes, de uma tarde moribunda de Verão no Largo do Caldas, desse teu olhar de Peter Lorre, azougado e translúcido, que me demoliu as muralhas com uma rapidez que nunca experimentara, do bacalhau à Trigueirinho que levou a conversa para a madrugada.

Nota: «Porque é meu irmão, porra!»

quarta-feira, junho 08, 2005

torpores


Elas aí estão, a lançar sombras e perdigotos de viúva triste sobre as barrocas das bermas: nuvens ilógicas de um Junho de estufa a estiolar caniços que medram ao vento salobro.

Desmorona-se a quarta, ao que um valete de ouros e um ás de espadas respondem com um tombo mortal da seteira mais alta de um castelo, para o efeito serve o de Pombal; daí a nada esvoaçam naipes pelo eirado poeirento de uma cervejaria – somados à esqualidez do vidro, losangos de papel prensado anunciam perceves e caracóis, pregos amarelos de mostarda entre as metades de um papo-seco e um cerrar de portas para descanso do pessoal. O punho aponta a leste num golpe displicente e depois a nordeste: quinta. Deixo morrer os olhos, por uma lágrima de segundo, no voltejar morrediço de uma dama de paus e esqueço-me do alcatrão. É então que da redondeza do volante irrompe, num estampido de charanga em procissão de Páscoa, um Finale, Moderato Assai, de Pequena Rússia. E enquanto a borracha dos pneus desenha uma, duas espirais negras num lago gelado, ilógico como as nuvens, julgo ver as barbas brancas de Tchaikovsky no espelho retrovisor; a mão de Piotr Ilich na confusão da derrapagem a desenhar colcheias abrutalhadas num resto de lenço de papel. Por fim, o fumo dissipa-se e o silvo sossega; sem tempo para perceber ou dominar as minudências da proeza, inverti a rota. Para lá do muro de um quintal, um avô de sacho ao alto reprova-me em silêncio, a cabeça judiciosa a perpetuar um não definitivo.

Adenda
«Susto, m. Medo repentino. Sobressalto. Temor causado por notícia ou factos imprevistos. Ext. Medo, receio.»

Cândido de Figueiredo - Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa P.1313.